Ensaios

A EXPRESSÃO DOS AFECTOS NA CULTURA CHINESA

Maria de Lurdes Marques*

INTRODUÇÃO

Uma das fórmulas votivas mais difundidas para se desejar o nascimento de um filho. Ela é assente na homofonia dos caracteres 蓮 lian —lótus e lian —continuamente; 生 sheng — nascer e sheng — instrumento musical; 貴gui —ilustre e gui—ramo de caneleira (o caracter gui, caneleira, reporta-se à fó rmula "partir um ramo de caneleira", ou seja, ser colocado no cargo de fun cionário); 子 zi—filho e zi—semente. — A fórmula "lian sheng gui zi"—o lótus produz preciosas sementes— equivale, foneti camente, a:"Que dê à luz, uns após outros, a filhos ilustres!"O caracter central 喜 xi, em duplicado, significa dupla felici dade. Estampas desse tipo podem ser encontradas afixadas à porta às vesperas do casamento. In L'imagerie populaire chinoise, Léningrad, Aurora,1988, n° 47.

Tema tão vasto quanto complexo, mas indispen-sável a quem formula a pretensão de melhor compreen-der a vivência do outro na sua diferença.

A grande questão para a qual não há resposta única será identificar e compreender o que nos diferen-cia e por isso nos distingue. O que nos une e por isso nos aproxima, quando a distância geográfica, só por si, não esgota a explicação da diferença. Os horizontes alargam -se incomensuravelmente, quando olhamos o facto atra-vés de diversas abordagens, e não é já possível acanto-narmo-nos de um modo exclusivo no nosso próprio ter -reno científico para a compreensão dos factos.

Pisamos o terreno da antropologia psicanalítica, quando percorremos estas questões de um modo mais amplo, do inconsciente através do expresso, do vivido, na procura da génese, da estrutura e na organização da expressão do pensar, do sentir e do agir.

A psicanálise, para além de ser um instrumento de trabalho que completa, também se completa com outras abordagens e outros olhares (antropologia, etnologia, psi-cologia, filosofia, sociologia, linguística, etc.) detentores de objectos de estudo próprios. Instrumento tão rico e prometedor quanto manipulável, a antropologia psicana lítica corre o risco de se tomar frágil, quando se deixa ten-tar por interpretações selvagens, ao partir do nosso pa-drão de funcionamento como paradigma. A solução po-derá estar na construção de uma nova psicanálise.

SER biologicamente semelhante e psicologica-mente com certos denominadores comuns, o homem partilha, independentemente da sua cultura, de um certo número de necessidades, expressas em comportamentos e atitudes que se podem interpretar sem riscos de se adulterar o sentido desses mesmos comportamentos. Ar-quétipos são chamados certos comportamentos ances-trais cuja explicação vai para além da memória dos ho-mens, e cultural bound ou variantes culturais, comporta-mentos que a cultura modelou. No entanto, a análise des--ses mesmos comportamentos e atitudes revela também a presença da complexidade biológica, psicológica e so-cial naturalmente inacessível na sua totalidade.

DETERMINANTES CULTURAIS NO DESENVOLVIMENTO DO INDIVÍDUO DETERMINANTES HUMANOS NO DESENVOLVIMENTO DA CULTURA

1 - Cultura - Sociedade - Personalidade

Cultura e a sociedade são enquadramentos dentro dos quais se modela (patterning), se organiza e se ex-pressa o ser vivido, sentido, portador de uma determina- da personalidade que, por sua vez, só deverá ser enten-dida dentro deste mesmo referencial dinâmico. Mas se a cultura é a fornecedora dos padrões de comportamento, ao modelar o ser que cresce, este não se esgota aí.

Numa visão psicanalítica, a cultura pode ser com-preendida, também, como a entidade fornecedora dos modelos de conduta, que contém em si os mecanismos de defesa estruturantes e capazes de preservarem a inte-gridade do EU.

A cultura cria, assim, nos membros dessa mesma sociedade, um sentimento de pertença, por se identifi-carem com um mesmo sistema complexo de respostas padrão, comuns aos membros dessa mesma sociedade. Este sistema vai verificar mudanças, exibir especificida-des, que o tempo, o momento e a dinâmica inerente ao próprio objecto da cultura se encarregam de introduzir.

A cultura vista deste modo poderá ser entendida como um processo ontogenético e o desvio seria a ex-pressão da desadequação, que pode dar lugar à mudança, ou da incapacidade em fazer face a um quotidiano peja-do de códigos, que pode significar doença. Esta inca-pacidade resultante ora de um défice orgânico, de um EGO que não se organizou (enculturou), ou de um meio deficitário na transmissão das referências e estímulos que promovam o desenvolvimento, pode traduzir-se no acto de adoecer.

Um comportamento desejado e esperado é natu-ralmente mais facilmente construído e apreendido do que um comportamento rejeitado, sendo a sua promoção feita através de um mecanismo de reforço positivo ou negativo. Esta acção normativa exerce assim a pressão desencorajadora das condutas que se afastam dos com-portamentos definidos como recomendáveis e desejá-veis, por isso promovidos, sendo assim gratificado quem os assumir. A sociedade e o homem tranquilizam-se quando os comportamentos são facilmente reconhecidos e por isso previsíveis.

A preparação do adulto para um determinado papel social conta com a existência previamente estan-dardizada e reconhecida desse papel nos comportamen-tos dos indivíduos dessa sociedade. Deste modo, uma sociedade se edifica e funciona — cultural patterns.

"Em Roma sê Romano."

Esta "estandardização" não impede o apareci mento da infinita variação individual, dando assim lugar a um agregado de pessoas únicas capazes de partilharem um sentimento de pertença, comungar valores, referên-cias, projectos e significados das suas vivências.

A cultura é, por um lado, o enquadramento vital do indivíduo e, por outro, o alvo de modificações suces--sivas, realizadas não pelo indivíduo como entidade no singular, mas enquanto elemento activo enquanto grupo responsável pela criação e expansão de ideias, ideolo-gias, modas, modelos, que por vezes transportam a carga de ideais. Estas abstracções, elaboradas pelos indivíduos da própria sociedade para promover um modelo Supere -góico, são ambivalências de um quotidiano social que, juntamente com o ID, estabelece um conflito de forças permanente, do qual resulta um EGO, instância prefe-rencialmente relacional.

Mas se a cultura retrata a trama que nos forma e enforma, ela é também um produto do indivíduo. O indi-víduo, como pessoa no singular, raramente é importante na vida e no funcionamento da sociedade à qual perten-ce, ou à cultura que o identifica; no entanto, o mesmo se situa na base de todos os fenómenos sociais e culturais através da expressão das necessidades e capacidades (potencialidades) que o caracteriza.

Enquanto unidade simples no tecido social, o in-divíduo tende, na generalidade, a perpetuar o seu status, pois é a sua defesa, mas, enquanto indivíduo insatisfeito, ele pode contribuir para a mudança.

Torna-se assim um agente que preserva, que des-trói, constrói e transmite e, neste movimento de encul-turação e aculturação, ele partilha de uma forma próxi-ma de um determinado habitat com o "outro", que é por sua vez portador de outros modelos.

Neste processo, a mudança surge com um motor próprio alicerçado na necessidade (primária/secundária) do indivíduo, que carrega e "mastiga" o desejo de outra coisa (motivação), gerando o movimento no sentido da mudança, e o comportamento difere e diverge na procu-ra de soluções novas para problemas velhos.

No entanto, as múltiplas sociedades partilham de características comuns que permitem a investigação e extrapolação, quando se procede ao estudo deste fenó-meno cultura/sociedade/personalidade. O indivíduo é o ponto de partida de toda a investigação sobre a socie- dade/cultura e o ponto de chegada de todas as con-clusões.

Todas as sociedades verificam a universalidade dos códigos, valores e da sua ética, a durabilidade des--ses elementos quando permanecerem para além do indi-víduo. São unidades funcionais e operacionais que lhe dão plena autonomia, mas a nível do indivíduo verifica-se uma diferenciação interna que cria a diversidade.

2 - Personalidade - Cultura

A personalidade como objecto de estudo é relati-vamente recente e a tentativa de uma definição perma-nece complexa dependendo muitas vezes dos fins a que se destina e quem a utiliza.

Assumindo esta contingência, poder-se-á pers-pectivar a personalidade como uma expressão de um sentir organizado, de um conjunto de processos e de es-tados psicológicos que identificam a individualidade de cada um.

Esta definição não sendo pacífica é no entanto uma referência que nos permite compreendê-la como a estrutura que se organiza ao longo da existência e que determina a forma e o modo como agimos e sentimos num determinado enquadramento. O comportamento se-rá assim o gesto, a atitude, igualmente útil e económico, que se toma perante a necessidade sentida por um lado, e a exigência que o facto de se estar vivo nos coloca a to-do o momento.

A estruturação da personalidade tem sido avan-çada pelas mais diversas escolas e correntes científicas. O argumento biológico, com pesos diversos ao longo da história da ciência, toma o seu real valor hoje, quando se considera que os factores inatos, biologicamente deter-minados, não esgotam a explicação da diversidade da personalidade no seu global, nem a diversidade de res-postas verificadas numa mesma personalidade portadora de uma determinada individualidade.

É no meio circundante, fornecedor dos modelos e de toda a gama de estímulos que o caracterizam, que reside um dos pilares fundamentais na construção da personalidade individual e dos traços comuns que se ob-serva no colectivo como grupo étnico. Traçar o perfil de uma personalidade predominante numa determinada comunidade, que é por si um fenómeno profundamente dinâmico, exige que seja sempre interpretada no próprio contexto cultural/social.

A individualidade significa a presença de um nú-mero infinito de especificidades que conferem a possibi-lidade da construção do temperamento, do carácter que faz de cada pessoa um ser único.

A importância desta identidade que constitui ca-da ser dentro de um determinado grupo social mais se nota quando o indivíduo se movimenta, e se confronta com a diferença cultural, em que as trocas acontecem dentro de uma complexidade notável. Os mecanismos de defesa irão actuar no sentido da preservação, e a infor-mação de diferentes códigos serão tendencialmente in-terpretados dentro das referências de origem.

Avaliar, dimensionar e quantificar a personali-dade tem sido uma tarefa pejada de dificuldades quanto à escolha dos instrumentos de medida e na análise, para além de ser inevitavelmente limitados, quanto à sua ca-pacidade de dar valores precisos e rigorosos sobre o co-nhecimento do comportamento humano na sua múltipla expressão.

É no entanto a psicologia que mais tem evoluí-do no sentido de permitir uma certa aferição do perfil da personalidade em diversas culturas, e os testes que de um modo parcial e pontual nos podem traçar esboços de cortes transversais.

Um outro método utilizado tem sido o estudo comparativo de histórias da vida dos indivíduos como resultantes e obreiros de dada cultura.

Cultura e personalidade são duas dinâmicas pro-fundamente entrosadas.

3 - Recordar o Esquecido

A relação interpessoal, tão pejada do sentimento e emoção, tem no crescimento e na maturação uma im-portância vital que poderá ser melhor compreendida no jogo do desejo, da angústia, do prazer/desprazer e saber--se condenado à morte com uma pena suspensa.

Vamos inexoravelmente à procura do outro que nos (pre)enche, reforça, confirma, e a força dessa ligação será tanto mais notável quanto o outro responder às nos--sas mais prementes necessidades.

O poeta confirma "a angústia é a ausência do outro".

É também no terreno da relação interpessoal que o Ser adquire, elabora, sente e cria o que a relação inter-pessoal (mãe/pai/família/amigo/outro...) progressiva-mente ajudou a estruturar, juntamente com o complexo desenvolvimento psicomotor permitindo o aumento da capacidade de modelar o instinto à realidade (princípio da realidade/princípio do prazer).

Qualquer que seja a relação interpessoal, mesmo a mais simples, exige, para que se dê, um padrão, um modelo que a identifica perante todos. A criança que a presencia vai, por processos adaptativos, interiorizá-la através dos sinais, dos movimentos, dos símbolos, das atitudes, dos gestos que observa, do seu significado e para assim mais tarde os poder identificar e repeti-los com um cunho de individualidade. Interioriza o que vê, o que percepciona, mas sempre da forma como é vivido e sentido por cada. A satisfação do desejo será progres-sivamente mediado pelos limites da realidade, mas pro-curando preservar sempre a realidade interna e as suas necessidades.

Crescer é uma actualização pela repetição de partes do modelo de interacção aprendido ao procurar o prazer e a satisfação e evitando o desprazer. A socializa-ção é um processo de (en)culturação permanente e dinâ-mico.

Este modelo foi por sua vez apreendido pela mãe/pai ao longo da sua vida no meio cultural/educa-cional em que cresceram ("O fardo da cultura" — Freud).

A extrema lentidão do desenvolvimento humano até atingir a forma adulta (uma das mais longas de todas as espécimes que existem à face da Terra) é uma das ca-racterísticas de maior importância para o próprio tipo de desenvolvimento humano, permitindo a acção prolonga-da de uma vasta gama de influências, estímulos, interac-ções que o meio possa exercer.

Este longo período de influências e cuidados parentais, numa situação de grande dependência, resulta num SER individual, complexo, único, estruturado com identidade própria mas nunca acabado.

Bolk atribui ao lento crescimento humano a exis-tência de um sistema endócrino com hormonas que retardariam a maturação física. Verificar-se-ia assim uma desigualdade na velocidade de desenvolvimento entre o soma (físico) e o genoma (estruturas responsáveis pela procriação) e o psíquico.

Isto traduz-se no facto de o ser humano passar de uma infância demasiado prolongada para uma puber-dade em que é já portador de um corpo sexualmente capaz de procriar, mas emocionalmente não equipado para a relação amorosa genital. A sexualidade (força libidinal) é uma dessas forças instintivas cuja importân-cia foi e tem sido clarificada pela psicanálise. Os sis-temas físicos sensório-motores, desencadeadores do sen-tir libidinal, surgem precocemente ao nível do corpo bio-logicamente maturo mas habitado por um ser ainda ima-turo quanto à sua individuação, autonomia e identifi-cação de género.

É apenas na adultícia que a mesma pulsão, então predominantemente genital, se completa na relação se-xual, mas embora uma vez mais aí não se esgota.

Assim se justificaria em parte o aparecimento do complexo de Édipo na estruturação da relação objectal (no sentido psicanalítico do termo). A nossa imaturidade emocional contribuiria para o carácter traumático das vivências sexuais brotadas pela imaginação infantil como única forma de serem vivenciadas.

Os mecanismos de defesa exercem aí a sua acção ao conter um instinto sexual não organizado num ser infantil dependente e impotente, portador de um apare-lho psíquico imaturo.

A paralela socialização e aprendizagem que vai acontecendo são os instrumentos vitais para a progressi-va aquisição de competências no domínio da energia instintiva que, sem se perder, passa a ser investida em objectos cada vez mais realistas (princípio da realidade) e gratificantes face às necessidades do ser que cresce.

É o corpo que se consciencializa, que se conhece, que se experiencia, fonte do prazer (quando satisfeito) e de desprazer (quando não satisfeito). Na procura eterna do prazer e fuga ao desprazer organiza-se o desejo quan-do se dá espaço e tempo para tal. As personagens da cena (figuras parentais e outras), quando nos seus papéis bem definidos e inequívocos, fornecem a todo o momento os modelos de conduta que a sua própria cultura por sua vez lhes forneceu.

Paulatinamente dá-se o abandono do processo primário para dar lugar ao processo secundário que ca-pacita o indivíduo com os instrumentos necessários para lidar com as regras, normas, princípios, códigos (SU-PER-EGO), mas mantendo vivo o ID.

O recalcamento das forças pulsionais (narcísicas, libidinais e agressivas) não significa a sua morte mas, pelo contrário, o seu reinvestimento em objectos cons-trutivos e estruturantes da personalidade.

O instinto de autoconservação exige assim o domínio da força libidinal (processo secundário). A for-ça da necessidade afectiva cria o sentimento de pertença que assim desencadeia as capacidades de integração e favorece as diferentes formas de socialização:

— casamento — necessidade dual restaurada;

— amigo — necessidade do outro.

O social, numa perspectiva emocional do termo, seria assim percebido como uma resposta ao trauma irre-parável da separação vivida no nascimento.

O conflito neurótico, pedra de toque na organiza-ção do EGO, é permanente, tem uma função adaptativa. Identificá-lo, compreendê-lo, geri-lo será uma forma de equilíbrio. A terapia tem a função de forçar o EU a auto-nomizar-se face ao SUPER-EGO, como uma nova en-culturação, mas agora de um modo mais económico do ponto de vista da economia emocional.

E se extrapolar nos é permitido, dir-se-á que as diferentes culturas terão assim surgido como fruto dos traumas específicos que em determinado meio nasceram.

A antropologia psicanalítica pretende compreen-der o tipo de desenvolvimento das instâncias (EGO, SUPER-EGO, ID), dos mecanismos de defesa mais pre-sentes e transmitidos numa dada cultura.

O olhar etnopsiquiátrico deve ser lançado sempre no sentido da compreensão do desenvolvimento do indi-víduo enquanto retrato da longa interacção entre os estí-mulos exógenos, os determinantes orgânicos e o modo como se processa a sua síntese a nível do EGO.

Esta linear mas riquíssima dinâmica que se veri-fica no processo filogenético e ontogenético foi a grande descoberta da antropologia psicanalítica à volta da qual a cultura de uma sociedade se corporaliza ("A inibição do primitivo" — Freud).

Não faz assim qualquer sentido que no processo compreensão e entendimento do outro, portador da diferença, se ignore qualquer uma das outras vertentes: INDIVÍDUO — SOCIEDADE — CULTURA.

O PARADIGMA CONFUCIANO/TAUISTA E O CARÁCTER CHINÊS

O maior grupo étnico do mundo (Han), a que pertence maoritariamente os chineses, está longe de ser homogéneo. Ao tentar-se compreender alguns dos seus traços psicológicos mais marcantes, toma-se obriga-tório conhecer certos aspectos da cultura chinesa tal como do pensamento de Confúcio (551-479 b. C.) e do Tauismo.

Sem a pretensão de escalpelizar a doutrina de Confúcio, poderemos conceptualizá-la como um cons-tructo complexo e rico com origem no Séc. V, constituí-da originariamente por 72 disciplinas, que defendia uma perspectiva própria do mundo, uma ética social, de-bruçava-se sobre a política e constituiu uma tradição es-colar que se perpetuou até aos nossos dias.

Vista às vezes como uma filosofia, às vezes como uma religião sem uma estrutura organizada como tal, ou mesmo uma corrente humanista, marcou profundamente os modelos de educação, de governação, de sociedade e da própria dinâmica familiar de numerosas gerações não só da China como de outros países da Ásia Oriental e do Sul (Japão, Coreia, Taiwan, Singapura).

No sentido de que Jesus não foi o fundador do Cristianismo e Buda não foi o fundador do Budismo mas contaram num determinado contexto histórico indo be-ber alguns ensinamentos de outras fontes, também Con-fúcio recebeu de Chou Kung (1094 b. C.), fundador do sistema ritual feudal, os ensinamentos essenciais para consolidar o seu próprio pensamento.

Este sistema era baseado nas ligações de consan-guinidade, nas alianças por casamento, nas conveniên-cias antigas assim como nos novos contratos èlaborados na actualidade, criando um sistema de dependência complexo. Fazia a defesa dos valores culturais e das normas sociais para a manutenção da ordem quer de es- tado quer a doméstica, reforçando o peso da autoridade como líder universal, investido pelo mandato dos céus de um poder religioso e ético. Assim a solidariedade so-cial será atingida não por imposição legal mas pela ob-servância do ritual.

Profundamente inspirado por este legado filosó-fico, Confúcio embora não realizando o seu sonho políti-co, as suas concepções tomaram-se bem influentes nas gerações vindouras, permitindo aos numerosos seguido-res estruturar e enriquecer este pensamento.

Tomando como referência alguns dos princípios mais significativos na clarificação do tema acima pro-posto (o paradigma confuciano no carácter chinês), re-fere-se o movimento progressivo que se verificou quan-do a concepção cosmológica deste pensamento passou a aplicar-se ao desenvolvimento da moral do homem. Na sua metafísica, a humanidade, como receptáculo preferencial das forças celestes, é ela mesma o centro da criatividade cósmica. É assim que os seguidores fa-lam em "energia vital" (ch 'i), princípio sempre pre-sente, comparável à ideia de lei da natureza, como for-mas de expressão universal de algumas forças respon-sáveis pelos fenómenos verificados na humanidade e que esta deve considerar para uma boa gestão dos seus conflitos.

"O Céu" é o meu pai e a Terra, a minha mãe, e mesmo um ser tão pequeno como o indivíduo encontra o seu lugar algures no cosmo. Por essa razão, aquilo que preenche o Universo tem uma representação no corpo, e aquilo que dirige o Universo vê-se projectado no orga-nismo. Todas as pessoas são irmãos e irmãs, e todas as coisas são meus companheiros.

"O autodidatismo requer humildade; aumentar a sabedoria requer o conhecimento sobre as coisas."

Este tema da mutualidade entre o Céu e o ser hu-mano, consanguinidade entre os homens, a harmonia en-tre o homem e a natureza levaram à concepção de huma-nidade como "formando um só corpo com todas as coisas".

Na actualidade, a intelligentsia da China que se moderniza mantém de um modo pouco reconhecido e denegando, por vezes, uma certa continuidade com a tra-dição do Confucionismo a todos os níveis do funciona-mento no quotidiano comportamento, atitudes, crenças, relações, medos, projectos, desejos, constituindo ainda uma parte integral no constructo psico-cultural da socie-dade chinesa, qualquer que seja o meio (intelectual, rural).

Naturalmente que certos valores ainda presentes na sociedade actual — governo paternalista, um sistema educacional baseado na memorização, na competição, e noção de família dando ênfase à lealdade e cooperação, sofreram naturalmente adaptações aos imperativos da mudança que em parte a abertura implica.

Os académicos modernos da China continental iniciam agora a possibilidade de uma frutuosã interacção entre o humanismo confucionista e o liberalismo demo-crático num contexto socialista.

No Confucionismo, a noção de Homem surge preferencialmente com uma orientação social, em que o grande objectivo será atingir a harmonia com as coisas e com o "outro" (sociedade, família, grupo, natureza). Pa-ra a atingir toma-se prioritário que cada indivíduo, como pessoa, se comporte não como elemento isolado mas co-mo parte de um todo indissociável.

Assim a noção de personalidade, indivíduo, indi-vidual, não faz muito sentido quando tomados como entidades únicas e isoladas, mas sim um existir em re-lação a. É como se o homem, como entidade autónoma, não tivesse existência própria, e a sociedade, que é por sua vez o agente humanizante, a lei máxima da sua exis-tência. A única situação em que se lida com o indivíduo como entidade individual é no apuro de responsabili-dades perante o julgamento do bem ou mal praticado. Julgar e responsabilizar cabe ao poder que assim premia ou castiga sem ter uma noção muito presente da impor-tância do meio ou das circunstâncias eventualmente atenuantes do acto praticado.

O individualismo que se pode encontrar no Con-fucionismo significa a maximização do desenvolvimen-to do indivíduo não em nome da autoexpressão mas por-que só assim ele poderá preencher totalmente as expec-tativas que a sociedade põe nele.

Perante uma situação de litígio entre o indivíduo e o grupo (família, trabalho, sociedade), a solução espera-da é o auto-sacrifício em nome da integridade do EGO colectivo.

A grande via para a interiorização desta atitude verifica-se na interacção intensa ao longo de todo o pro-cesso de desenvolvimento infantil em que a família re- presenta o primeiro e mais importante veículo.

Uma das consequências mais marcantes é a exis-tência de um sentimento de pertença não só étnico mas e sobretudo familiar.

Para Confúcio a família é o paradigma de todos os modelos de organização social e que assim se mostra capaz de fornecer todas as respostas para as necessida-des do indivíduo. Confúcio define cinco tipos de rela-ções cardinais:

soberano-súbdito;

pai-filho;

irmão mais velho-irmão mais novo;

marido-mulher; amigo-amigo.

De entre estas cinco relações, três são familiares e as restantes são do tipo familiar. Neste contexto rela-cional o indivíduo vai assumir um papel definido no grande código de conduta das relações (Li), papel esse que deve honrar.

A relação não é simétrica e o poder está clara-mente definido. Um dos aspectos mais marcantes deste código está na força que é transmitida ao amor filial e à autoridade paternal. Houve mesmo quem lhe atribuísse a qualidade de base ideológica da sociedade tradicional chinesa.

A qualidade desta relação não é só constatada na estrita relação filial mas observa-se igualmente na inter-relação em que o factor idade e proximidade familiar es-tejam presentes de modo a recriar um clima de relação filial (idade, geração, relação de parentesco, etc.).

À noção de autoridade está intrínseca o saber, a sapiência, e a experiência, que é utilizada não só na es-colha da orientação educativa, na resolução de conflitos, como no pedido de um conselho ou protecção. Uma vez mais e sempre em nome da harmonia que o Li (Gra-mática das relações) orienta e clarifica.

A criança é ensinada (5-6 anos) a respeitar as hierarquias ao longo de um processo de socialização contínuo e prolongado. Por isso, não deve tomar inicia-tiva na conversação e só fala quando abordada. A atitude passiva é assim desejada, promovida, esperada.

"Ouvir para falar."

Na educação procura-se conter a expressão emo-cional de hostilidade ou de confrontação face à autori dade. Contenção e controlo da expressividade é uma das características mais presentes na mensagem educativa. Se a paixão o assalta, ele será provavelmente incorrecto, cometerá erros, pois perde a capacidade de crítica e de raciocínio. Além disso, ele vai carregar um rótulo bem pesado de egoísta.

O pensamento de Confúcio não será tanto de um conformismo mas sim de promover a harmonia e não a uniformidade. No entanto, a rebelião contra um chefe tirânico é no entanto considerada no pensamento político do Confucionismo. Esta forma de conformismo é para alguns autores mais um mecanismo adaptativo do código cultural, do que um valor interiorizado, que permite que o indivíduo construa a sua relação harmoniosa com o mundo exterior. Será um conformismo formalístico?

Neste grupo étnico poderemos localizar outras características importantes na compreensão do seu perfil:

— sentimento de pertença (chinatown, procura das mesmas zonas residenciais quando emigram);

— uma lealdade para com o grupo (políticos, sei-tas, sacrifício diferente do japonês);

— predomínio do colectivo em detrimento do in-dividual;

— noção de face desenvolve-se a partir da ances-tralidade desta atitude e ela mesmo é alargada à família.

O erro cometido por alguém da família implica igualmente perda da face da família. A face de cada um é propriedade colectiva. Mesmo os erros das crianças são vividos pelas famílias como sentimento colectivo. A própria deficiência mental ou doença mental tem uma carga de punição face a uma falta cometida por um pa-rente antecessor. Assim, a única coisa a fazer será escon-dê-la da comunidade.

"Um homem necessita de face como uma árvore necessita de casca."

O primado da hierarquia. A família como reali-dade social primitiva, primado de toda a socialização para a criação da harmonia. A aprendizagem e interiori-zação deste modelo irão ser permanentemente actuali-zadas na construção e vivência da sociedade aos seus diversos níveis (bairro, escola, fábrica, país). Esta di-nâmica tem-se alterado com a industrialização e a fuga para as grandes zonas urbanas vem introduzir alterações importantes, mas sempre dentro deste contexto.

No espaço e ambiente urbano, as relações alar-gam-se e o amigo (uma das relações cardinais) surge como uma relação fraternal (irmão mais velho), poden-do ser mesmo apresentado como irmão.

"Em casa confiar nos pais, fora no amigo."

"Os amigos são tão próximos como irmãos."

As seitas do crime organizado são formações fe-chadas, fortemente hierarquizadas, com códigos de leal-dade onde se verifica uma estrutura de família. Do mes-mo modo, quando se emigra, há um intermediário que intercede como elemento de inserção na comunidade. Mas mesmo aqui a relação não é simétrica:

jia = família;

jia = clã.

O discurso, expressão por excelência do pensa-mento e do sentir, é por sua vez pejado de simbolismos e profundamente descritivo quando se refere ao concre-to. A preocupação é descrever e não tanto classificar (pensamento sintético/pensamento analítico). Verifica-se uma fusão, por vezes, entre o objecto e as suas quali-dades (adjectivo/substantivo).

As palavras são a visualização do sentir com uma grande riqueza de vocabulário descritivo, com uma evo-cação ao concreto e a escrita figurativa toma-se repre-sentação simbólica estilizada. É assim que uma palavra pode traduzir por si só uma imagem. As palavras são ca-racterizadas pela presença de uma grande percentagem de monossílabos com uma grande mobilidade fonética.

A escrita antiga é figurativa, simbólica e estiliza-da. Os caracteres destinados a fixar uma atitude, um mo-vimento, um estado, associam diferentes imagens para obter a representação sintética.

"A chegada da Primavera ouve-se quando che-gam as aves selvagens, no momento em que o dia dê lu-gar à noite.

O homem vai à procura da mulher, quando o gelo já não está a derreter-se."

Chen — água profunda;

Fen — água que fervilha;

Tchou — água salgada.

O pensamento não se preenche com ideias mas com imagens, daí a necessidade da presença do concreto.

Os sinólogos sublimam o peso das noções con-cretas no quotidiano e no pensamento. As ideias surgem apenas e tão somente através das imagens e aquelas surgem através da experiência estabelecida entre duas ou mais imagens. Por outro lado, o reduzido número de pa-lavras significando conceitos abstractos é notável.

A poesia e a literatura quando dissertam sobre noções abstractas socorrem-se da filosofia para obter os significantes.

Yin e Yang — símbolos com grande poder anti-teticonascidos da filosofia e que hoje foram adaptados por diferentes formas de expressão e acrescentados de atributos concretos conforme a utilização do mesmo ter-mo (medicina, poesia, filosofia, etc.)

Tao — princípio regulador do movimento vital, é a via que põe em comunicação o Céu e a Terra, regra para toda a moral, ordem que reina o mundo e a fonte do poder.

O conteúdo escrito é ele mesmo uma estreita so-lidariedade entre a ordem natural e a ordem social, uma simbiose entre os dois mundos que se traduz pela força do ritmo, pelo poder do verbo, das imagens gráficas, etc.

A noção de Tao ultrapassa as noções de força e de substância e o Yin e Yang, vistos indistintamente co-mo substâncias e géneros, são ainda uma outra coisa, já que estes emblemas têm por função classificar, agrupar em conjuntos os aspectos antitéticos de ordem universal. Tao, Yin, Yang evocam sinteticamente e apelam global-mente à ordem rítmica que preside a vida no mundo e a actividade do espírito.

Os chineses atribuem aos seus emblemas um po-der de figuração que não distinguem da sua eficácia rea-lizadora. A função soberana de alguns deles é prova ma-nifesta de que o pensamento chinês se recusa fazer dis-tinção entre a lógica e o real; mesmo as noções quan-tificáveis do tempo, espaço e número estão pejadas de abstracções que fazem com que por vezes 2+2 não sejam 4.

O pensamento chinês parece fortemente coman-dado pelas ideias de ordem, totalidade e ritmo tomadas de um modo global, cujas origens remontam à época da dinastia Han, em que se verificava uma escolástica que construiu paralelamente uma disciplina ortodoxa de vi-da. No entanto, conserva simultaneamente e de um mo-do espantoso uma atitude concreta, poética, plástica e igualmente uma espécie de jogo livre que se dissimula e por vezes manipula.

A FAMÍLIA CHINESA E A SUA DINÂMICA

O desejo de se ter um filho é na família chinesa um dos projectos mais importantes. O filho irá venerar o pai, e a mãe espera que este seja o futuro representante da família. A família e muito especialmente a mãe ad-quire assim um novo estatuto que de outro modo não iria obter, quando a mulher engravida.

Dar à luz será sempre prova ansiosamente espe-rada da fertilidade da mulher, já que a do homem nunca esteve em causa.

O casal, quando a mulher engravida, faz por nor-ma uma separação das suas camas e a partir do 4. ° mês é alvo de atenções, privilégios, com sem número de proi-bições (hábitos, alimentos, atitudes, e tabus).

Por vezes, o próprio enxoval da criança é prepa-rado pelos outros. Se nasce uma rapariga, a rejeição pode ser observada ou denegada, ao passo que a vinda de um rapaz é sempre majestosamente celebrada. O pensamen-to mágico criador do sentimento de se poder interferir na escolha do sexo da criança leva mesmo à prática de um conjunto de rituais e de crenças muito diversificado.

O factor económico é também importante para este desejo nem sempre confessável. Um filho poderá constituir um certo income, já que uma filha há que casá--la desesperadamente. Para a mulher, ter um filho varão significa a hipótese de adquirir pela primeira vez a au-toridade, poder e prestígio que sempre lhe foram nega-dos, quando um dia for sogra. Uma filha, um dia casada, irá obedecer à mãe do marido, e debaixo do telhado des-ta irá viver. Este estatuto poderá ser ligeiramente altera-do se der à luz um rapaz.

Alimentar o filho recém-nascido é um ritual que obedece apenas ao critério da sua vontade e apetite, sem horário e sem disciplina.

A alimentação ao peito faz-se sempre e por um longo período (mais ou menos um ano) e nem sempre é só a mãe que amamenta.

Há igualmente a noção de que os rapazes benefi-ciam de um período de amamentação mais prolongado ou que se deve amamentar até ao aparecimento da mens-truação, o que pode prolongar-se por anos. No desmame, recorre-se a um aporte suplementar da nutrição com for-tificantes, no caso do rapaz. Os cuidados matemos estão sempre presentes e a função maternal é multas vezes exercida pelas outras mulheres presentes (avó, tia, vizi-nha, etc.). O recém-nascido é levado frequentemente pa-ra o trabalho (campo/fábrica) e os rapazes são alvo de mais atenções, investimento e disponibilidade. Quando se inicia os alimentos sólidos, o aleitamento pode perma-necer por imenso tempo, mesmo anos, e de um modo in-tercalado.

As refeições são dadas à mão, não se promoven-do a autonomia. A fralda é colocada não só para a sua função inerente mas também para imobilizar tanto quan-to possível os membros inferiores e por vezes mesmo as mãos. Diz o costume que é para se não tomarem demasi-ado "malandros". Aos rapazes, normalmente ao fim de um mês, é-lhes retirada a fralda e às raparigas apenas mais tarde. Recordemos a posição de grande respeito numa situação social perante a autoridade; sentado na ponta da cadeira, tronco recto, corpo bem alinhado, joe-lhos juntos e mãos sobre os mesmos. O imobilismo e a limitação dos movimentos ajudam a interiorizar a neces-sidade de controlo sobre si. O andar é ele mesmo feito de pequenos passos e monótono. Esta necessidade pode ser constatada em outras áreas: caligrafia, objectos de arte e sua miniaturização, etc.

O processo de educação é estruturado no sentido da interdição, contenção do desejo e disciplina do pen-samento. Crianças de poucos brinquedos (a oferta é tam-bém limitada, assim como o poder de compra), com pou-cos movimentos e onde a fantasia, se tiver algum lugar, deverá ter uma função utilitária.

As necessidades fisiológicas não são alvo de uma grande disciplina. Defecam e urinam aonde e quando lhes apetece, enquanto são crianças. Os produtos do cor-po (urina e fezes) não são lidados com repugnância. A higiene é menos rigorosa e a lavagem apenas quando sentida como necessária. Não se aplica, como no Oci-dente, a disciplina do bacio, porque as crianças não são passíveis de entender (sic), além disso é sempre um acto que não se sente a necessidade de controlar. Cabe no en-tanto à mãe entender o momento.

O bebé permanece muito tempo no leito dos pais e quando o deixa vai dormir com a avó ou outro parente. Só quando a idade de cinco anos é atingida é que se co-meça a lidar com a criança como uma pessoa capaz de entender para logo começar a aprender a estar com os adultos. Cresce assim o investimento na sua educação, que por vezes se faz de um modo brusco, movendo-se de uma atitude de total tolerância e permissividade para uma exigência extrema:

— corpo que se deve esconder;

— apetites e desejos que se têm de controlar;

— obrigações permanentes perante o/os outro/s;

— obediência total aos pais e figuras parentais;

— contenções da expressão emocional.

Já na fase de latência, a criança que pertence à fa-mília, às gerações passadas e vindouras, pode expressar comportamentos de uma agressividade mal gerida para em breve dar lugar ao adolescente que não toca, não me-xe e fortemente estimulado a obedecer. Esta forma de contenção desvia o investimento e a atenção para si, para o corpo e seu funcionamento. Este "olhar" desviado para dentro é uma dominante nas preocupações do quotidiano do indivíduo chinês.

As matérias educativas privilegiam aquelas que possam incutir a promoção da boa conduta social e dos bons costumes. A escola é exigente, severa e punitiva. A família, embora protectora, é um forte veículo de trans-missão que se harmoniza com a escola, tornando-se o seu prolongamento.

A distância entre pai e filho é instituída e este apenas se lhe dirige quando solicitado, sem o desafiar e nunca o olhando de frente.

É uma relação carregada de tensão e de dene-gação das hostilidades e agressividade criada pelo número de restrições e interditos.

A obediência filial estrutura-se, organiza-se e sedimenta-se, alargando-se mais tarde a outras figuras sociais do imago parental.

Com as raparigas a atitude é diferente. A preocu-pação máxima é casá-la e esta preocupação pode-se tomar obsessão causadora de ansiedade de parte a parte. Há que esconder os defeitos e valorizar as virtudes para que seja suficientemente sedutora nos seus atractivos de futura esposa, mãe e dona-de-casa. A educação é assim menos investida. A relação com o pai pode porém per-mitir-se a ser mais próxima e menos restrita. Este não ministra o castigo físico. É a mãe que se incumbe dessa tarefa. Quando chega a hora de se casar já o projecto se iniciou muito antes. Movimentam-se as casamenteiras, apressam-se os pais nos detalhes da troca e ela é espera-da que aceite o conversado. A futura esposa foi certa-mente escolhida a contento da mãe dele. Contra a von-tade desta é que não há casamento pela certa.

"Se ela agrada à minha mãe, agrada-me."

"As raparigas têm um sentimento de vergonha e a sua pele é mais fina."

Ela deverá apresentar-se recatada, tímida, sub-missa. Há uma carga sádica/masoquista neste jogo amoroso.

As relações sexuais após o casamento podem levar alguns dias a consumarem-se e a prova da virgindade é muitas vezes celebrada com um presente aos pais dela.

A atitude de submissão deverá doravante esten-der-se à sogra e é claramente começada a ser vivida na cerimónia do chá, servido de joelhos perante a sogra, no ritual do casamento. No evoluir da relação do casal, a participação da mulher irá aumentar e o marido cada vez cultiva aquele distanciamento que a toda autoridade con-vém. Entretanto, logo que haja um filho, a tarefa mais vital da mulher estará cumprida. Ter filhos é a forma de dignificação da mulher que assim assegura o seu estatuto.

"Se não tem filhos alguém se ri de vocês."

"Se não tem filhos é-se alvo de piedade."

O homem, à medida que envelhece, vai progressi-vamente retirando-se das responsabilidades quotidianas passando a adoptar um papel passivo e contemplativo.

A imagem da beatitude letárgica dos idosos tor-na-os paradigmas detentores da sabedoria da vida e não da ciência. São assim chamados nos conflitos, nos pro-blemas e nas reflexões que envolvem as grandes deci-sões da família. A erudição é de grande apreciação e re-conhecida em público. É uma erudição diversificada: moral, filosofia, ética, etc.

Para se ousar abordar esta personagem pode ter que se recorrer ao intermediário que é uma personagem constante no negócio, nos casamentos, nas trocas ou pe-didos. Pode ser um parente ou um amigo que se tomou numa instituição cultural.

Esta procura do outro, para a solução dos proble-mas de cada, deu lugar a diversos fenómenos conheci-dos: ao associativismo dos movimentos de imigração, à estrutura da seita, às sociedades, aluguer de casa, etc.

O homem erudito, longe das necessidades mate-riais, é muitas das vezes o herói dos contos folclóricos. O homem forte, com poder destrutivo, dominador e de-vastador, não faz por norma o perfil do herói das his-tórias para contar. A mulher, por sua vez, é frequente-mente personificada nas histórias populares como per-versa, dominadora, vingativa e castradora (material pro-"jectivo). Em termos linguísticos, o feminino aparece por vezes nos ideogramas para dizer ciúme, desleal e pérfida.

CONCLUSÃO

O perfil do homem chinês é fortemente marcado por um certo número de traços em que pesa a dependên-cia e a passividade:

— abstenção de opinião própria;

— idealização do descanso;

— pouca iniciativa individual;

— submissão sobretudo às figuras parentais.

Estas características estão bem presentes na li-nha cultural do processo educativo, sobretudo na pri-meira infância. Será basicamente a fase oral que se ac-tualiza ao ser-se permissivo e com grande investimento oral e corporal.

A mãe, sempre e demasiado presente quer no seu papel específico, quer através do grupo, pelo seu carácter maternal, contentor e securizante. Durante o desenvolvi-mento, a mãe por norma não lhe cria espaço para edificar o seu próprio desejo, dando lugar frequentemente a uma posição passivo-receptiva. A prioridade é dada à satisfa-ção oral como fonte de força, saúde e equilíbrio.

Os movimentos de autonomia foram desencora-jados ou mesmo impedidos, promovendo assim o único movimento possível: para si, para dentro e para o passa-do. O mecanismo defensivo preferencial é a regressão e a denegação. A passividade essa que não está em con-tradição com os hábitos de trabalho intensivo que se po-de observar sobretudo junto de mulheres "executivas".

Podemos estar perante um mecanismo de acting-out, como pseudo-actividade, que fantasia a construção de um poder e um património.

Na mulher, a oralidade está associada a uma ati-tude activa-ofensiva com sinais de uma certa agressivi dade por vezes mal contida. Ao longo da sua vida, pro-vou todo o tipo de rejeições e desvalorizações face ao se-xo masculino. Sobrou o sentimento de ambivalência face ao nascimento de uma filha que constitui sempre um ris-co. O casamento é a única meta possível e ambição má-xima igualmente partilhada pela família. Um defeito é uma ameaça dolorosa ao projecto.

Pode-se observar chinesas detentoras de uma ambição desmedida, desejo de poder, atitudes de agres--sividade e mesmo grande espírito de competição com grande necessidade de reconhecimento público do seu poder, atitude esta que será atenuada com o nascimento de um filho. Corre assim alguns riscos de se tomar uma mãe ambivalente, superprotectora e dominadora.

O desejo narcísico de reparação e o seu ideal do Eu corroboram para o desejo utilitário de um filho como prolongamento de si, e quando for sogra poderá então exercer, com toda a autoridade que a cultura lhe permite, o poder que nunca teve.

Em ambos os géneros, o ritual das refeições são longos, complicados e sempre em grupo. O jogo é sem-pre vivido de um modo obsessivo, com rituais comple-xos, apaixonante e compulsivo e a fantasia da sorte (mãe) benfazeja irá privilegiá-lo um dia.

Comportamento com características sadomaso-quistas de origem pré-genital. A vontade de controlar pelo pensamento mágico (religião, fong-soi, arte de adi-vinhação, etc.) traduz o movimento regressivo a estádios de dependência face ao destino.

Da mesma história faz parte o comportamento de alienação pelo consumo de drogas, sucção de substân-cias que lhe permitem retirar-se, repousar e não pensar nem sentir. É a fuga pela fixação oral. A obediência e submissão filial com a criação de distâncias pode ser mais do que uma convenção cultural. Um modo de im-pedir os conflitos de gerações, conter o desejo edipiano" e a hostilidade do filho contra o pai.

A tradição exige do homem que se faça para ser venerado depois da sua morte, e assim satisfazer o seu desejo de continuidade. "Vinte e quatro exemplos de obediência filial." É um conjunto de prescrições impor-tantes para educar convenientemente as crianças nas suas obrigações, deveres e responsabilidades alargadas aos outros elementos da família presentes e passados.

*Licenciada pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; especializou-se em Psiquiatria no Hospital Miguel Bombarda. Médica do Centro Hospitalar Conde de São Januário.

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