Ensaios

O LUGAR DA MULHER NO OCIDENTE E NO ORIENTE ESPARTILHOS VERSUS PÉS ENFAIXADOS

Sandra Adams*

"Duas mulheres mais velhas, de poucas posses, e no entanto com os típicos lótus dourados (pés enfaixados)." In FONDAZIONE CIVILTÀ BRESCIANA, La Cina: nelle lastre di Leone Nani (1904-1914), a cura di Giuliano Bertuccioli, [Brescia], Grafo, cop.1994, p,113. ReproduçÃo gentilmente autorizada pelo Pontificio Istituto Missioni Estere, Milão.

Os ocidentais que visitaram a China no Séc. XIX e início do Séc. XX vinham de uma sociedade domina-da pelo homem onde o estatuto da mulher dependia, pri-meiro do pai e, depois do casamento, do marido. A lei concedeu-lhe pouca independência até quase finais do século. Ela era vista como sendo o sexo fraco, intelec-tual e psicologicamente, e até a roupa era feita de forma a dificultar os movimentos. Neste artigo são examinados um certo número de textos originais do Séc. XIX e iní-cio do Séc. XX, escritos por pessoas que viveram e via-jaram pela China. Contudo, devemos lembrar-nos que estes são relatos de ocidentais sobre Chineses, baseados em experiências e observações contemporâneas. As citações seleccionadas para inclusão neste trabalho foram extraídas de um mais lato, e escolhidas pelo seu interesse histórico e não por este autor partilhar das mes-mas ideias. É frequente os relatos realçarem a superiori-dade da diferença. A cultura deles não é igual à nossa e é, per se, inferior. Não foi meu propósito pôr em foco o etnocentrismo ocidental, mas sim apresentar algumas imagens dominantes de mulheres chinesas. No trabalho que se segue, os termos "ocidente" e "ocidental" são usados como uma estenografia cómoda para indicar ape-nas os escritores em inglês, na sua maioria de naciona-lidade inglesa ou americana.

A fim de apreciar a posição destes escritores, é útil ter uma ideia da posição assumida pelas mulheres e raparigas na sua própria sociedade. Ao mesmo tempo, apresentarei alguns dos debates sobre espartilhos e, mais tarde, material que compara o espartilhar com os pés enfaixados. Faço-o, primeiro porque os espartilhos, tal como os pés enfaixados, tinham uma conotação sexual, e, em segundo lugar, porque alguns autores referidos fi-zeram paralelismos entre os dois. A posição dos escri-tores aqui referenciados, em relação ao espartilhar, enca-rando-o como uma moda ridícula e perigosa, levou-os a encarar também os pés amarrados apenas como uma mo-da tola, mas enquanto o espartilhar era usado como pro-va da palermice das mulheres, os pés enfaixados eram geralmente apresentados como prova da brutalidade e insensibilidade chinesa.

As vidas das mulheres ocidentais do Séc. XIX estavam circunscritas a convenções e noções de posse que, na sua maioria, ambos os sexos não questionavam. Poucas mulheres escaparam à repressão do domínio masculino em casa e ainda um menor número tinha apoio dos maridos, mas até as excepções, as que duvi-davam da superioridade do sexo masculino, não eram numerosas. Mary Kingsley, que viajou "sozinha" por toda a África e que não foi devorada, mas se tornou ami- ga dos canibais, declarou que o parlamento não era lugar para mulheres.1 Florence Nightingale, cujos feitos e in-fluências foram monumentais, opôs-se ao movimento das mulheres. Algumas das mulheres não-convencionais eram a favor dos direitos das mulheres, mas tinham re-servas em relação ao movimento das mulheres.

Se o movimento feminista tinha os seus chefes e os seus adeptos, as forças reaccionárias não tinham me-nos apoios. Sarah Stickney era uma ensaísta, mais co-nhecida por Mrs. Ellis, e veio a ser vista como uma autoridade em matéria feminina. Tendo casado com o missionário William Ellis, em 1837, trabalhou com ele no movimento de moderação. A essência da sua filosofia era que o dever da mulher era servir os que a cercavam, sobretudo os homens, e garantir a influência moral esta-bilizadora que impregnaria a sociedade, através da acção dos homens, sobretudo dos maridos. Como mulher, o seu bem mais valioso deveria ser a sua grandeza moral. O seu altruísmo seria muito mais apreciado do que a ca-pacidade de traduzir Virgílio e deveria cultivar uma de-voção abnegada pela felicidade dos outros.

O ponto de vista de Mrs. Ellis é exagerado, mas o conceito de servir os homens abnegadamente era ape-nas natural para muitas mulheres; era evidente ser este o papel que se coadunava à mulher. A par do uso da "pro-va" científica, tendo em conta as diferenças raciais, o ar-gumento científico, de que o conteúdo cúbico do cérebro das mulheres era menor do que o masculino, era usado para provar a sua capacidade mental inferior.

O familiar e "inquestionável" argumento científi-co era similar ao usado para provar que as outras raças eram inferiores à caucasiana. Era sem dúvida refutado por elas próprias ser a mulher uma "criatura relativa".

A ênfase dada ao decoro, tanto no vestuário co-mo no comportamento, era uma das formas de manter a mulher no seu lugar. Durante todo este século, ambos eram aconselhados em todas as circunstâncias, chegando ao ponto de revistas e livros falarem constantemente de etiqueta e de protocolo. No fim do século, por exemplo, Mrs. Humphreys escreve:

"Ninguém sabe, tão bem como as próprias mu-lheres, como o vestuário moderno é pouco confortável. Só não nos queixamos dele quando vemos uma irmã-mulher com um fato 'racional' (...) Comparamos esses sapatos decotados com os nossos de boa apresentação: que horríveis que são, bicudos e de solas estreitas. Com-paramos o seu aspecto sem forma com as nossas linhas elegantes (...) Em breve voltamos a sentir onde o sapato aperta -- e talvez também o espartilho -- a sofrer com o peso de saias muito largas e a apiedarmo-nos de nós pró-prias pelos embaraçosos chapéus e alfinetes de cabelo."2

Se uma mulher não quisesse ser considerada vul-gar, a adesão aos códigos de vestuário era obrigatória e até as classes mais baixas faziam um esforço, dentro das suas possibilidades, para copiar as mulheres da "socie-dade". Uma componente obrigatória do guarda-roupa de uma mulher bem vestida era o seu espartilho. Esta peça, não só apertava o corpo e lhe dava o aspecto a que alude Mrs. Humphreys, como também tinha um significado mais profundo.

O ESPARTILHO--A MULHER

Parecido com uma armadura, o espartilho ia do peito até meio da anca. Era feito de fustão ou tela, rígi-do, com barbas à frente e atrás, amarrado nas costas, feitas de um osso duro ou de barba de aço. Alguns espar-tilhos tinham dois suportes arredondados e almofadados para o peito. O espartilho tinha como objectivo puxar o peito para cima e comprimir a cintura e as ancas, porque a moda era ter uma cintura fina, ancas pequenas e um peito cheio. Dizia-se às mães que a melhor forma de aplicar o suporte ou espartilho era deitar a filha no chão e puxar o atilho com a ajuda de um pé, na parte estreita das costas das raparigas.

Existiam muitos tipos de espartilhos à venda. Um, que parece particularmente incómodo, era apelida-do de "o espartilho do divórcio" -- feito para "divorciar" um peito do outro (não o marido e a mulher), através de "uma peça de ferro ou aço triangular, almofadada e de lados curvos, o vértice projectado para cima, entre os seios, empurrando-os para os lados para dar uma forma grega". Quanto ao "suporte de gravidez", descrito em 1811, envolvia a futura mãe desde os ombros até abaixo das ancas, elaboradamente reforçado "de forma a com-primir e reduzir à forma desejada a natural proeminência da figura feminina no estado de fertilidade".3

Segundo Willet e Cunnington em The history of underclothes, os espartilhos, no fim do Séc. XVIII e durante as primeiras décadas do Séc. XIX, eram excep-cionalmente apertados. Contudo, David Kunzle, refutan-do algumas declarações de um artigo de Helene Roberts, sugere: "O tema espartilhar e corpete têm sido o bode expiatório da história do vestuário".4Roberts afirma:"Durante o Séc. XIX, o uso do espartilho amarrado era quase universal em Inglaterra e na América." Embora ela admita que o espartilho fortemente apertado dependia, provavelmente, da "ocasião, da idade e do estado civil", a sua tese sugere terem os espartilhos um propósito si-nistro: "Desde o berço, a mulher estava condicionada ao papel submisso-masoquista simbolizado pelo esparti-lho." 5 Citando amplamente a "Englishwoman's Domes-tic Magazine", ela demonstra que os defensores do cor-pete "usavam uma linguagem sadomasoquista; [falando de] 'disciplina', 'prisão', 'submissão' e 'sujeição'". Su-gere ainda que, no que diz respeito ao corpete, alguns correspondentes masculinos tinham inclinação "pelo culto e pelo fetichismo" e cita exemplos onde homens se confessam escravizados à cintura fina. Usar espartilhos, diz ela, acabou também por ser visto como um imperati-vo moral.6

Contudo, Kunzle refuta esta afirmação:

"Como Roberts afirma, não era uma mulher sem espartilho que se arriscava a ser acusada de 'moral duvi-dosa', mas sim a que se espartilhava pois, por vezes, esta prática era obscuramente ligada à prostituição."7

A alegação de Kunzle é que o corpete muito apertado, além de não ser generalizado, era prática de uma minoria vulgar da classe média baixa. "Uma cintu-ra demasiado marcada", assevera, "era (para fazer um trocadilho e contradizer Veblen) sinal de novo-riquismo, de vulgaridade, de classes trabalhadoras."8 Ele sustenta:"Os conservadores do Séc. XIX viram no espartilho apertado uma invenção de expressão sexual que critica-ram como imoral e anti-natural."9 Isto pode ser a chave para o porquê de tantos homens, entre os escritores no-meados no estudo, compararem o corpete apertado com os pés amarrados e ser evidente terem aversão pelo primeiro.

Além do mais, nenhum dos escritores masculinos alude a uma conotação sexual dos pés amarrados, en quanto várias mulheres mencionam um significado ocul-to, mas sem fundamentarem a opinião. E apesar de vol-tarem a estabelecer, mais uma vez, o paralelo entre pés amarrados e o espartilhar, nenhuma discussão ocorre. Se Kunzle está certo, isto é por que o espartilhar, por opo-sição ao uso "normal" do espartilho (visto por muitos como benéfico), era uma expressão pública de sexuali-dade. Quer fosse muito apertado ou só rotineiramente amarrado -- e as provas contemporâneas, tais como as que a indubitavelmente respeitável Mrs. Humphreys dá de que todos os espartilhos eram incómodos -- é eviden-te que tanto homens como mulheres achavam a linha de-senhada pelo espartilho mais atraente do que a natural.

Muito adequadamente, a maioria da profissão médica estava mais preocupada com a saúde das mu-lheres, do que se elas tinham cinturas de vespa. Contudo, isto não quer dizer que desaprovassem totalmente os es-partilhos, mas achavam que os extremamente apertados prejudicavam a saúde das mulheres. Madam Capelin es-tava evidentemente muito influenciada pela opinião do marido sobre o espartilhar e cita um livro de medicina, talvez da biblioteca do marido, Medical dictionary, do Dr. Copeland, p. 855, para sustentar a eficácia dos seus espartilhos "higiénicos":

"Em relação ao uso do corpete, vulgarmente a sua construção requer alguma atenção, embora sejam feitos para pressionar e juntar as costelas inferiores; re-duzir a cavidade do peito, sobretudo na base; premir bru-talmente o coração, os pulmões, o fígado, o estômago e o cólon e até deslocar parcialmente esses orgãos vitais (...) Estes artigos de vestuário, perniciosos e desne-cessários -- estas aplicações nocivas à forma feminina, úteis apenas para encobrir defeitos e reduzir, aparente-mente, deficiências -- são ainda mais injuriosas pelo número de suportes rígidos, ou apenas parcialmente rígi-dos, com os quais todos os lados são construídos. Barbas nas costas e nos lados, aço na frente, indo do topo do externo quase até ao púbis."

Copeland descreve o deslocamento das vísceras e os efeitos sobre o esqueleto, mas também descobre outro efeito interessante:

"[A parte metálica] actua como condutor do ca-lor animal e da actividade electromotora que, ao passar pela armação, transporta por polarização para o exterior (...) a electricidade do corpo, um processo necessário às descargas das funções nervosas (...)."10

Copeland parece estar a sugerir, através de eufe-mismos tipicamente vitorianos, "calor animal", "electri-cidade do corpo" e "funções nervosas", que a parte me-tálica do espartilho conduzia a paixão sexual (correcta-mente) para fora do corpo, onde não causava danos. A mulher ideal tinha que parecer imune à paixão sexual. É contudo provável que o conceito de estar deitada e pen-sar em Inglaterra, enquanto o homem fazia o seu papel por cima, na (correcta) posição "missionária", fosse ape-nas uma noção idealista. O grande número de panfletos e livros adquiríveis por correio ensinando às mulheres o que fazer na cama, como evitar uma gravidez indesejada e anunciando mecanismos de contracepção são uma in-dicação de que o sexo estava vivo e bem, ainda que mui-to escondido. Contudo, nenhum dos escritores deste es-tudo alude ao sensualismo ou a algo relacionado com isso, embora, como se mencionou atrás, alguns escri-tores façam alusão ao verdadeiro propósito dos pés amarrados.

Quando Isabella Bishop viajava pela China, ado-rou ver-se livre das apertadas vestes ocidentais e foi até ao ponto de dizer que o vestido da mulher chinesa com-pensava, em parte, as desvantagens dos pés amarrados:

"O extremo conforto do vestido da mulher chine-sa, em todas as classes, sem espartilhos, coses ou prisões de qualquer espécie, permitindo mesmo o total desenvol-vimento da figura, por oposição à angústia dos pés amar-rados, mitiga ou obvia os males que, poder-se-ia pensar, resultariam da alteração dos membros inferiores. Tão confortável é o fato chinês, permite uma tal liberdade que, desde que o usei na Manchúria e nesta viagem, não sou capaz de aceitar o vestido Europeu de bom grado (...) Todas as mulheres chinesas usam calças, mas mos-tram muito pouco, por vezes nada, abaixo da saia, que é lisa atrás e à frente e plissada dos lados."11

Isabella Bishop (1831-1904), também conhecida por Isabella Bird, subiu o rio Yang Tze e foi até Burma por terra, em 1894, na companhia de George Morrison, o escritor australiano e correspondente do "Times". Via-jou no Tibete e na China, sem companheiros ocidentais, muitas vezes a cavalo e esteve em lugares inacessíveis, que teriam feito qualquer homem hesitar. Mrs. Bishop considera as mulheres menos robustas que os homens, sendo essa a sua natureza, ainda que ela não se possa contar entre esses seres fracos. Ela confidencia:

"Depois do tumulto de Liang-Shau, pus o revól-ver que trazia na bolsa da minha cadeira 'no meu vestuá-rio normal', colocando-o dentro de uma bolsa de algo-dão e preso ao meu cinto por baixo desta ampla vesti-menta [um vestido chinês de corte largo] esperando ar-dentemente que as seis balas repousassem para sempre em paz nas suas câmaras."12

Notamos que o "tumulto" não fez a intrépida Isa-bella abandonar nem adiar as suas viagens, para procu-rar um lugar seguro. A sua reacção foi andar com a arma dentro do vestido em vez de debaixo da [liteira] cadeiri-nha e é presumível que soubesse usá-la.

Quando Isabella Bird se tomou Mrs. Bishop, em 1881, com 49 anos, já era uma viajante experimentada e escritora, contando entre os seus feitos: ter escalado as montanhas Roxi da América do Norte, um vulcão no Havai e explorado a Malásia num elefante. Estas proezas foram conseguidas apesar de um problema de coluna, a que tinha sido operada quando tinha 22 anos, mas que lhe continuava a causar dores frequentes. Embora o ma-rido, um médico, fosse 10 anos mais novo do que ela, morreu em 1886, deixando-a livre para continuar as suas perambulações. Continuou a viajar pela Ásia descreven-do tudo o que viu. Foi a primeira mulher a ser feita mem-bro da Sociedade Real de Geografia, em 1892, e iniciou uma viagem de 1600 quilómetros através de Marrocos, em 1901, com setenta anos. Esta notável senhora não era realmente "fraca", mas, como verdadeira cristã, apesar de moderada, parece não ter equacionado a fraqueza, como sendo uma característica real das mulheres. Não há notícia de muitos com o seu tipo de coragem, porque ela não era apenas uma Europeia que viajava na compa-nhia de guias e carregadores de raças e costumes desco-nhecidos, mas uma mulher sozinha nos lugares mais lon-gínquos, tendo como companheiros apenas homens. Não podemos deixar de nos interrogar se a companhia do seu próprio sexo lhe agradaria, porque muitos dos seus feitos chocariam as sensibilidades da mulher típica. Ter tido as aventuras que teve, sem o tipo de protecção aconselhado pela Sociedade Europeia, é realmente extraordinário.

Bishop explica que a versão "Sze Chuan" das calças é algo diferente e acha-a horrível e anti-feminina porque as calças são muito largas em baixo, e por baixo, os joelhos vêem-se. A não existência de espartilhos foi bem recebida, mas calças e túnicas eram demasiado masculinas até mesmo para ela. Contudo, alude a outro ponto importante: algumas das missionárias adoptaram a roupa chinesa e vestem a versão local. É sabido que os Jesuítas tiveram ordens para adoptar a roupa chinesa e para "achinesar-se" em vez de "europeizar", em vão, os Chineses.13

Embora os Jesuítas tivessem perdido há muito a sua influência na China, sabe-se que subsequentemente continuou a haver missões, ainda que por pura aparência, na tentativa de se misturarem com os Chineses. No en-tanto, as missionárias que apareciam assim em público não ficavam muito bem vistas aos olhos da comunidade Europeia e, de qualquer forma, eram uma minoria.

Era imensa a necessidade de manter a superiori-dade e de preservar as diferenças fundamentais entre as raças, porque estas diferenças eram a essência da ideolo-gia colonial ocidental. A adopção de vestuário, cos-tumes, ou companhia "nativa" tinham um estigma tão terrível que, até quando o bom senso o aconselhava, o medo de "viver como indígenas" impedia qualquer tipo de acção que fosse contra o comportamento ocidental. Esta estratégia defensiva também é evidente em regula-mentos contra casamentos entre raças diferentes (que até hoje estão em vigor no Corpo Diplomático Inglês), em-bora a miscegenação, sem matrimónio formal, fosse aceite.

Os ocidentais do Séc. XIX consideravam a mu-lher subordinada ao homem e as outras raças subordi-nadas aos ocidentais. Os ocidentais, no estrangeiro, comparavam tudo o que viam com as suas instituições e perspectiva moral. Se não era igual, tinha de ser mau ou de carácter inferior. Estranhamente, quando o espartilhar e os pés amarrados eram comparados, a opinião geral era que os pés amarrados eram menos perniciosos. Neste ca-so, a moda ocidental não era apresentada como sendo su-perior à chinesa. Por que seria este o aspecto único da vida chinesa que, não sendo melhor, não era considera-do pior? Provavelmente, por estar relacionado com as mulheres. Eram os padrões masculinos que represen-tavam os modelos de perfeição, pelos quais os outros ti-nham de ser julgados. Como as mulheres eram vistas como subordinadas do homem e com carências na maio-ria das áreas, não era vergonha admitir que as mulheres de outra raça, no que diz respeito ao vestuário, pudessem ser um pouco menos tolas. Contanto que o status quo não fosse alterado, o orgulho do homem ocidental não era afectado.

ALGUNS PARALELOS ENTRE PÉS AMARRADOS E O ESPARTILHAR

Embora se fizesse frequentemente o paralelo en-tre o espartilhar e os pés amarrados, nenhum escritor examina os dois estilos. Pelo contrário, os escritores masculinos sugerem o paralelismo, para depois o aban-donarem como prova de estupidez das mulheres. Tais modas apenas evidenciam a sua inferioridade.

Médicos que visitaram a China acharam ambas as práticas tanto perigosas como perniciosas e fizeram o paralelo entre as duas. Um desses observadores foi o Dr. J. Mantignon, em La China hermetique (1899), que tra-balhou num hospital de Pequim por volta de 1895:

"Consideramos esta deformidade dos pés ridícu-la, mas agrada aos Chineses. Que diríamos nós na Eu-ropa, se um grupo de chineses fizesse uma campanha contra o espartilho? Deformidade por deformidade, qual é mais ridícula: a que produz uma certa dificuldade a andar ou aquela que, comprimindo o estômago, deslo-cando os rins, esmagando o fígado e pressionando o coração, impede muitas vezes as mulheres de terem fi-lhos saudáveis?"14

Mantignon equaciona um ponto importante. Por que haveriam os estrangeiros de lutar contra os pés-amarrados se, na realidade, isso se passa fora dos seus países? Talvez fosse razoável, se tivesse sido dado aos Chineses o direito idêntico de lutar contra o espartilhar no estrangeiro, embora a noção de "violação dos direitos humanos" devesse ser preocupação de todas as nações, nessa altura não era comum. É claro que, de facto, não se teria tolerado qualquer interferência nos assuntos ingleses ou americanos. A preocupação estrangeira com a situação das mulheres chinesas era vista como uma espécie de prerrogativa dos colonizadores. Em termos de saúde, Matignon sugere que a maior desvantagem dos pés amarrados é a dificuldade em andar. Por compara-ção, o mal causado pelos espartilhos, que ele descreve, representa uma ameaça mortal para as mulheres e para os seus filhos.

Justus Doolittle foi um dos escritores ocidentais mais imparciais e complacentes. Como missionário, a sua contribuição pode ser considerada única. Os seus dois volumes intitulados Social life of the Chinese (1866) oferecem o estudo mais completo dos hábitos sociais da altura, sem contar com o trabalho do intole-rante A. H. Smith. Na sua discussão longa e bem docu-mentada sobre pés amarrados, os comentários finais de Doolittle são dedicados à igualmente absurda moda Ocidental:

"As leis do Império não se pronunciam sobre o enfaixamento dos pés das raparigas. Amarrar os pés é simplesmente um costume; mas é um costume com uma prodigiosa popularidade e poder, como é fácil de con-cluir pelo que acima foi dito -- um costume tão impe-rioso como o do espartilho, usado pelas senhoras em alguns países do Ocidente, e talvez não mais ridículo ou anti-natural e muito menos pernicioso à saúde e à vida. Enquanto as senhoras estrangeiras se interrogam quanto à razão das senhoras chinesas amarrarem os pés das fi-lhas tão anti-naturalmente, lamentando-as talvez por se devotarem a uma moda tão cruel e inútil, as últimas in-terrogam-se sobre a razão das primeiras usarem os vesti-dos de estilo tão volumoso; para elas, o resultado era conseguido, utilizando uma gaiola por baixo dos vesti-dos, tal como nas saias de crinolina, onde por vezes con-seguiam vislumbrar um instrumento conhecido para aprisonar aves."15

Doolittle refere-se ao espartilhar no passado, porque o Século XVIII foi conhecido pelo carácter exagerado da sua moda, mas, muito antes do meio do século, o espartilho voltou a estar em voga, acompa-nhado pela crinolina, caracterizada pelas suas enormes saias redondas por baixo de uma cintura fina. A volumo-sa saia era realmente levantada através de uma armação parecida com uma gaiola de galinha. A comparação feita pelos Chineses é tão apropriada quanto divertida, embo-ra não seja relatada pelos outros escritores ocidentais. Os estrangeiros, opositores do hábito de amarrar os pés, parecem ter deparado com o uso frequente, entre os Chineses, da analogia entre isso e a compressão da cintura. Headland cita um exemplo divertido em Court life in China (1909):

"É sabido que nenhuma mulher Manchu enfaixa os pés e a Imperatriz viúva opunha-se tanto aos pés amarrados como qualquer outra mulher. No entanto, não permitiria a um súbdito que pensasse sequer em aventar formas de interferência nos costumes chineses, como uma das suas súbditas fez. Esta senhora, era mulher de um ministro chinês num país estrangeiro e adoptara, tan-to ela como as filhas, o mais extravagante estilo de vestir Europeu. Um dia disse a Sua Majestade:

'Os pés enfaixados da mulher chinesa fazem com que sejamos a chacota do mundo.'

'Ouvi dizer', disse a Imperatriz viúva, 'que os estrangeiros têm um hábito que é criticável e, já que não temos aqui nenhum estranho, eu gostaria de ver o que usam as estrangeiras para apertar a cintura'.

A senhora era muito gorda e parecia uma ampu-lheta, voltando-se para a filha, uma rapariga alta e es-guia, disse: 'Filha, mostra a Sua Majestade'.

A jovem senhora fez objeções até que a Impe-ratriz viúva disse: 'Não percebes que um pedido meu é o mesmo que uma ordem?'

Depois de ter satisfeito a curiosidade, mandou cha-mar o Grande Secretário e deu ordem para que arranjassem roupas manchus para as filhas da senhora, dizendo:

'É realmente patético o que as estrangeiras têm de suportar. São atadas com barras de aço até quase não poderem respirar.

Deplorável! Deplorável!'

No dia seguinte, esta jovem não apareceu na cor-te e a Imperatriz viúva perguntou à mãe a razão da sua ausência.

'Ela hoje está doente', respondeu a mãe.

'Não me surpreendo', replicou Sua Majestade, 'depois de retirarem as ligaduras, deve ser necessário um certo tempo para ela voltar a ter as mesmas dimensões', indicando assim, que a Imperatriz viúva pensava que as estrangeiras dormiam com as cinturas amarradas, tal como as Chinesas fazem com os pés." 16

A ideia de que a vulnerabilidade da mulher exci-ta os homens e que por isso constroem a sociedade de forma a realçar o seu desamparo, parece ser inerente a muitas culturas. Analisando a versão vitoriana desta ati-tude, Stone sugere que as mulheres não eram natural-mente fracas, mas que lhes era pedido que o fossem para que os homens pudessem reforçar a sua imagem na sociedade. Está convencido que as mulheres se subme-tem a modas prejudiciais ou incómodas, apenas para agradar ao homem e não para seu próprio prazer. Poucos foram os que viveram no Séc. XIX e não se opuseram abertamente à teoria das mulheres serem "naturalmente" o sexo fraco. Contudo, tal como mostra o trabalho do Dr. Foote, Headland é explicado ao observar que, em sociedades em estudo, a forma extravagante de vestir pode ter sido um factor negativo na vida das mulheres. É também aceite que muitas mulheres compartilharam do ponto de vista de Headland, tendo prejudicado muito a causa da emancipação das mulheres no Ocidente. Podem ser comparadas com as mulheres chinesas que lutaram por preservar o costume dos pés enfaixados.

"Lótus dourado" sem as ataduras. In MACGOWAN, John, How England saved China, London, T. Fisher Unwin, 1913, p. 33. Biblioteca Central de Macau, Secção Leal Senado.
Outro aspecto do "lótus dourado". O 1° dedo é proeminente por nunca ter sido atado, enquanto os demais estão voltados em direcção à planta do pé. In MACGOWAN, John, How England saved China, London, T. Fisher Unwin, 1913, p. 33. Biblioteca Central de Macau, Secção Leal Senado.

Wells Williams é mais um dos escritores que sus-tenta a ideia de que enfaixar os pés pouco diferente é de comprimir a cintura. Tem a noção de que as mulheres são um pouco estranhas, sejam elas ocidentais ou chine-sas, porque por amor à moda obrigam os corpos a formas que a natureza não contemplou:

"Embora a operação possa ser menos dolorosa do que aquilo que foi descrito e talvez não tão perigosa como comprimir a cintura, as pessoas estão tão habitua-das a ela, que a maioria dos homens recusaria casar com uma mulher cujos pés fossem de tamanho normal, em-bora pudesse aceitá-la para concubina. Os sapatos usa-dos pelas que têm kin lien ou 'lótus dourados' são de se-da vermelha e belamente bordados."17

A sua mensagem é que as mulheres chinesas usam um tipo de "compressão" que não é mais estranho do que o praticado pelas suas irmãs ocidentais. A igual-dade de tratamento dos dois fenómenos dá uma objec-tividade superficial ao trabalho de Wells William, mas ele não comenta a exigência feita pelos homens da sub-missão das mulheres à "moda", ou então serem desde-nhadas como parceiras matrimoniais. A explicação dada para o enfaixar dos pés, a que os Chineses estão habitu-ados, dificilmente se pode considerar uma análise erudi-ta. Provém do conceito familiar dos costumes chineses desafiarem o racional. Lendo o livro dele, ficamos com a impressão de que considera que as pessoas na China fazem coisas que "nos" parecem estranhas, simples-mente por serem Chineses. Faz parte da "chinesice" deles. Apesar da sua imparcialidade e desejo de encon-trar um paradigma ocidental, o tom de Wells William é de protecção em relação às mulheres e aos Chineses em geral. Que se saiba, não há nenhuma prova de que uma cintura fina fosse exigência, entre os Chineses, para o casamento, embora Mrs. Humpreys observe:

"E por que é que as mulheres se vestem tão irra-cionalmente? Bem, no maior dos segredos, posso apre-sentar uma série de boas razões. Se assim o não fizésse-mos, seríamos singularmente desagradáveis. Os nossos homens chamar-nos-iam desmazeladas e negar-se-iam a levar-nos aos nossos restaurantes e teatros favoritos e até mesmo à Igreja. Os homens são assim. São mais sensí-veis à opinião pública do que a mulher (...) O homem gosta que as mulheres da sua casa sejam elegantes e modernas na aparência e no vestir. Ele pode dizer 'Que tens tu vestido?' numa voz terrível, com um tom de desprezo e de desaprovação que nos toca profundamente (...)."18

Ora a irracionalidade do espartilho, as amplas sai-as e penteados elaborados e incómodos têm o objectivo de manter as aparências perante os que nos rodeiam. Mrs. Humphreys não é sincera quando conclui que é apenas por causa dos homens que todos estes incómo-dos devem ser suportados e mantidos. Há provas de que as mulheres se horrorizavam tanto com a quebra dos có-digos convencionais do vestuário, quanto os homens. No entanto, podemos inferir que a mulher, como "relativa" e subordinada ao homem, necessitava de manter os seus padrões, o que resultaria no benefício desses mesmos ho-mens. Uma bela cara não era menos importante para o ho-mem do Séc. XIX, do que para o seu correlativo chinês.

Ao contrário do homem ocidental, o homem chi-nês não tinha oportunidade de saber como era a figura da mulher. Normalmente, antes do casamento, ele só lhe ve-ria os pés e a cara e talvez nem isso. Não há dúvida de que muitos cavalheiros vitorianos consideravam os pro-nunciados seios e ancas das senhoras sexualmente esti-mulantes e o andar das mulheres era muito afectado, tal como o das Chinesas era afectado pelos seus pequenos pés. Em ambos os exemplos de "moda" feminina, en-contramos no andar o elemento comum da ênfase exa- gerada do movimento das ancas e das nádegas. Ao afec-tarem o modo de andar, os dois estilos sugerem o para-lelismo.

Contudo, no quarto, o cavalheiro chinês tinha vantagens, porque a sua companheira podia manter a beleza exterior dos pés (apenas os epicuristas queriam os pés desenfaixados), enquanto que as mulheres ocidentais poderiam estar em perigo de asfixia se mantivessem o seu corpete, para além do facto da rigidez, que seria in-cómoda para o cavalheiro. Pode-se imaginar que ela te-ria oportunidade de tirá-los, na intimidade do seu bou-doir, e os muito ricos tinham sempre quartos separados. Durante o Séc. XIX, o fato ocidental feminino permitia sempre pouca espontaneidade. Espartilhos longos, até à anca e, no meio do século, imensas crinolinas, o que tor-nava o sentar praticamente impossível; no fim do século, grandes anquinhas para enfatizar as nádegas. Tal como quanto mais pequenos fossem os pés, maior o status da mulher chinesa, por que mal se podia mover de sítio para sítio sem a ajuda da ama, muito menos trabalhar ou fazer o que quer que fosse em casa, assim também, quanto mais incómodo fosse o fato da mulher ocidental e maior fosse a sua incapacidade de fazer qualquer tipo de tra-balho, melhor exibia a sua riqueza e posição. É claro que esta riqueza e status se reflectiam no marido. É interes-sante notar que não era necessário às parentes solteiras ou a outros familiares andarem vestidos com roupa cara, mesmo quando lhes era oferecido um lugar na casa de algum membro da família. Na verdade, na maioria dos casos, era até mais importante serem vistos como "o pa-rente pobre" (normalmente tinham um pequeno ou ne-nhuma espécie de rendimento).

Não é inesperado ver que Chineses e estrangeiros comparam, similarmente, pés enfaixados e cinturas aper-tadas. As provas sugerem que o nível imediato de dor que o primeiro envolvia deve ter sido maior do que o das cinturas bem apertadas e, é claro, que os pés enfaixados resultavam em deformações permanentes. Contudo, ape-sar da dor horrível durante o processo de enfaixamento dos pés e do perigo de gangrena, crê-se que era raro o re-sultado final ser a morte. Uma vez concluídos, parece que os pés não tinham qualquer tipo de implicação em termos de saúde. No entanto, a cintura apertada, embora não fosse uma deformação permanentemente, causava frequentes danos nos orgãos internos e muito dificilmen-te poderia conduzir ao desenvolvimento ideal do feto.

Os que fazem a comparação entre pés amarrados e espartilhar, enquanto demonstram ostensivamente que são capazes de fazer comparações "científicas" dos cos-tumes, estão na realidade a pleitear contra as mulheres. As mulheres são capazes de tudo por vaidade. Poucas condenam os homens que exigem pés enfaixados e o papel do homem no espartilhar também é totalmente ignorado. O conceito vitoriano das mulheres ocidentais é também o conceito que define as mulheres chinesas.

No seu estudo das percepções ocidentais do "Oriente", Edward Said propôs o conceito binário, no qual o Ocidente compara a sua própria cultura com ideias observadas no Oriente. As fontes de trabalho deste estudo formam um depoimento que suportaria esta ela-boração pessoal (embora tivéssemos que rejeitar algu-mas outras asserções no que diz respeito ao Ocidente face à China). Os vitorianos acreditavam firmemente que a sua sociedade era um modelo da comunidade humana, tendo descoberto o verdadeiro caminho da Natureza. O ponto central desta crença era a assumpção de que só o Cristianismo poderia gerar um apropriado estar moral e espiritual. Consequentemente, na China, o visitante era incapaz de ver a sociedade a não ser em termos compara-tivos. A dualidade da visão é tão evidente que se pode desenvolver uma síntese completa da sociedade vitori-ana e dos seus valores como uma imagem-espelho das representações negativas da vida chinesa: são ateus e adoram ídolos (nós conhecemos o verdadeiro Deus); são injustos e brutais (nós somos justos e bons); são cruéis e não respeitam as mulheres (as nossas mulheres são tra-tadas com bondade e respeito)... a lista é infindável. Mas de todos os costumes apresentados como "prova" do bar-barismo e inferioridade dos Chineses o enfaixar dos pés das mulheres era tido como o maior dos exemplos.

IMAGENS OCIDENTAIS DOS PÉS ENFAIXADOS

Como nem todos os leitores estão familiarizados com o processo usado para enfaixar os pés das raparigas, incluo aqui um relato do missionário médico William Lockhart (1861). Lockhart pensa que o amarrar dos pés começa algures entre os seis e os nove anos. Há provas de que em algumas famílias podia iniciar-se aos três, embora fosse muito menos comum. Cinco ou seis anos era a idade normal, ainda que nas famílias pobres, e sobretudo no campo, pudesse começar muito mais tarde, para que o trabalho da rapariga rendesse o máximo pos-sível. Em alguns destes casos, o enfaixamento podia começar aos treze anos, é claro que o resultado ficaria muito longe do ideal, tanto em tamanho como em for-mato. A ilustração mostra um "lótus dourado" ideal. O discurso de Lockhart é de veia científica:

"Lótus dourado" ideal - os pés são pequenos o bastante para caberem numa chávena de chá. Repare-se na comparação ao sapato de senhora inglesa. In MACGOWAN, John, How England saved China, London, T. Fisher Unwin, 1913, p. 17. Biblioteca Central de Macau, Secção Leal Senado.

"A prática é começada quando a criança tem en-tre seis a nove anos. Depois desta idade, o sofrimento aumenta proporcionalmente. Grandes ligaduras de algo-dão de 2.5 cm de largura são passadas em forma de oito à volta dos pés, indo do calcanhar até ao peito do pé e passando por cima dos dedos; depois, vão por baixo do pé, à roda do calcanhar e assim sucessivamente, sempre o mais apertadas possível. Este processo é doloroso e acompanhado de lamentações amargas por parte de quem o sofre. Os pés ficam muito frágeis e mal aguen-tam a pressão do andar; por vezes, como resultado da in-flamação, o pé e a perna incham muito. Depois de alguns anos, se as ligaduras tiverem sido bem aplicadas, para que a pressão se mantenha constante, a dor desaparece totalmente e a sensibilidade do pé fica amortecida de tal maneira, que as partes enfaixadas quase não têm sensibi-lidade. Contudo, uma manipulação mal feita, causa pres--sões irregulares que fazem com que surjam vários pro-blemas. Há uma classe de mulheres cuja vocação é en-faixar os pés das crianças e que fazem um bom trabalho; e pelo que eu vi, as Chinesas que tiveram um tratamen-to cuidado na infância, além da fraqueza dos pés devido à destruição do arco simétrico e do inconveniente de não poderem andar, quando os pés estão desamarrados e sem apoio, não sofrem muito. Sendo o tornozelo da mulher geralmente frágil, se os pés forem mal enfaixados na in-fância, andar muito fará o pé inchar e doer imenso."19

Era natural que, à medida que os ocidentais de língua inglesa fossem podendo residir na China, sobre-tudo em Xangai, Cantão e Hong Kong, muitos quises--sem contar as sua experiências aos leitores da sua terra. A nível privado, publicavam-se relatos com circulação limitada e muitos outros, tal como diários e cartas que não foram publicados. Há uma grande variedade de tópi-cos subentendidos nos trabalhos publicados, mas o hábito de amarrar os pés provocava fortes emoções nos observadores estrangeiros. Outros incluíam o infanticí-dio e métodos de punição (nós valorizamos a vida huma-na e a dignidade, "eles" não o fazem). O Reverendo J. Macgowan, que chegara a Amoy com a mulher em 1863, foi até ao ponto de sugerir que os Chineses escarneciam deliberadamente da lei de Deus, ao desfigurarem os pés das mulheres, porque a moral e as leis cristãs eram fac-tos imutáveis e os valores dos outros deviam ser compa-rados e julgados por eles. O que se segue tem como ob-jectivo demonstrar a forma como os pés enfaixados eram apresentados aos leitores do Séc. XIX e as imagens que predominavam nesse período.

A forma de ver do Séc. XIX era invariavelmente negativa e muitas vezes de tom moralizante. Em geral, a aparência das mulheres chinesas era comparada, desfa-voravelmente, com as noções de beleza feminina oci-dentais, tal como o modo de andar ocasionado pelos pés pequenos. Em contraste com o Ocidente, o mau trata-mento dado às mulheres era tido como uma prova de inferioridade e de falta de civilização dos Chineses. Para justificar a razão das mulheres enfaixarem os pés, os observadores explicavam que os pés pequenos eram ne-cessários para que uma mulher pudesse arranjar um ma-rido e as que o não fizessem seriam desprezadas e con-sideradas de baixa condição. Os relatos falam constante-mente no andar, na beleza da cara, na necessidade de ter pés enfaixados para conseguir um companheiro matri-monial, e na posição das mulheres na sociedade.

O Reverendo Mr. Charles Gutzlaff, um missio-nário erudito e Secretário Chinês para o Governo Bri-tânico, não consegue entender a ânsia pelos pés pe-quenos. Usa o discurso da observação imparcial e, no entanto, afasta-se dele, usando "macho" e "fêmea"; entende-se a sua opinião sobre o Chinês, quando o defi-ne de acordo com padrões laboratoriais; não nos surpreen-deríamos se o víssemos a discutir o "habitat". Primeiro, observa a noção chinesa de beleza, em que a cintura pe-quena e as feições pálidas eram comuns à visão ocidental:

"São considerados sinais de beleza uma cara lar-ga, cintura fina, feições pálidas nas mulheres e orelhas compridas e corpulência nos homens. Mas nada adorna tanto o belo sexo como os pés pequenos. A operação de comprimir os pés é começada na tenra infância, os dedos são virados para trás e o crescimento é reprimido com ferro. Para um olhar de leigo, os pés parecem mais de-feituosos do que outra coisa. Do calcanhar ao dedo gran-de, o pé é extremamente pequeno e, nas senhoras do nor-te, muitas vezes não excede sete centímetros e meio; a superfície superior é convexa; o revestimento do calca-nhar é normalmente denso e duro e é frequente o pé infla-mar. Contudo, o desejo de partilhar desta distinção é tão grande, embora produza um andar claudicante, sujeitan-do-as à doença e reclusão, que se submetem alegremente a estas penas. Não se sabe quando é que este costume foi introduzido. Contudo, é muito antigo. As mulheres que o não seguem são desprezadas e as de moral duvidosa dei-xam os pés crescer."20

O tom irónico de "esta distinção" revela a opi-nião de Gutzlaff de que os pés pequenos são tudo menos uma distinção. Embora torne claro que o seu é um "olhar leigo", reconhecendo que a opinião chinesa seria a opos-ta, percebemos o seu desdém por um conceito tão absur-do de beleza. Ele sustenta que as mulheres não aceitam as desagradáveis "penas" alegremente, no entanto, acaba por dizer que as que não seguirem o costume serão des-prezadas. Parece querer responsabilizar as mulheres pela "deformação", mas contradiz-se ao sugerir que se tive-rem pés normais serão desprezadas, sem, no entanto, identificar quem as despreza.

Escrevendo aparentemente para mulheres, Cons-tance F Gordon Cumming, viajante e autora de vários livros, publicou dois volumes que entitulou Wanderings in China (s. d.). Embora não se saiba a data da publi-cação, é provável que tivesse sido por volta de 1886. Escrevendo em tipo missiva, a primeira das quais data de 1878, o seu estilo é alegre e interessante, pretendendo claramente divertir o leitor sem o fazer pensar muito. A sua descrição de pés enfaixados é deliciosa:

"Mas o seu maior orgulho centra-se evidentemen-te nos seus pobres e pequeninos pés, 'lótus dourados', reduzidos ao mais pequeno dos cascos, prova da sua alta posição. Claro que o assim denominado pé pouco maior é do que o dedo grande, fechado num belo sapato peque-nino, que aparece por baixo das calças de seda bordada. Não sei se para chamar a atenção para estas belezas ou apenas numa tentativa instintiva para atenuar a dor, nas zenanas,21 vimos que a posição favorita é a de cruzar as pernas e apoiar na mão o pobre pé deformado.

Como sem ajuda mal podiam mover-se, as suas prestáveis servas, fortes e de grandes pés, mantinham-se por perto, prontas a fazer de bengala ou de póneis, con-forme desejado. Por muito pouco gracioso que seja o bambolear vacilante dessas senhoras quando tentam an-dar, não é certamente tão deselegante como a forma de transporte, o ponto culminante do refinamento das se-nhoras de bem (...) A senhora encavalitava-se nas costas da ama, agarrando-se com os braços à volta do pescoço, enquanto a ama a segurava pelas mãos e lhe apertava os joelhos. Muito cansativo para o pobre pónei humano que, por vezes, tem que carregar este árduo fardo durante uma distância considerável, no fim da qual é a senhora e não a ama que refresca as forças com algumas baforadas tiradas de um longo cachimbo!"22

"Cascos" é a forma mais popular de descrever os pés pequenos. Cumming também usa os familiares epítetos -- "deselegante" e "vacilante" -- para descre-ver o andar das senhoras e tem a convicção de que os pés as fazem sofrer. O tom irónico tem como propósito apresentar uma original brincadeira para entreter as se-nhoras em casa, que são implicitamente muito mais sensatas e não pretenderiam tornar-se tão ridículas. "Estas beldades" talvez provoquem o riso às suas irmãs mais civilizadas, que podem sentir-se confortavelmente superiores, conscientes do que é decoro e comporta-mento refinado e do que é palermice ou vulgar. As se-nhoras chinesas são ignorantes, sem nenhuma ideia do que são boas maneiras.

Foi atestado pela maioria dos observadores, que geralmente as mães achavam necessário enfaixar as fi-lhas e muitos culpam as mulheres pela continuação desta prática. Tal como Colquhoun, Isabella Bishop sentia-se atraída pelas mulheres chinesas, mas escreve com uma certa irritação em The Golden Chersonese and the way thither (1883):

"Gosto das caras das mulheres das classes bai-xas. São fortes e amáveis e é agradável ver mulheres sem qualquer defeito, vestidas com um fato que permite uma total liberdade de acção. As mulheres com pés pequenos são raramente vistas fora de casa; mas a criada de Mrs. Smith tem pés aleijados e eu tenho os sapatos dela, de-masiados pequenos para um bebé Inglês de quatro meses de idade! A filhinha do mordomo, com sete anos, está a enfaixar os pés pela primeira vez; é um suplicio, mas su-porta-o com coragem, na esperança de 'conseguir um marido rico'. A sola de um pé devidamente reduzido tem cerca de seis centímetros e meio de comprimento, mas a mãe desta criança sofredora diz, com um verdadeiro ar calmo e de triunfo, que as mulheres chinesas sofrem me-nos durante o processo de se tornarem aleijadas do que as mulheres estrangeiras com o uso dos espartilhos! Para estas Orientais, a ideia da deformação da figura apenas por pura aparência é inexplicável e repulsiva. A defor-mação dos pés tem outra causa."23

A imagem de jovenzinhas sofredoras, suportando a dolorosa compressão dos pés para conseguirem um bom casamento, torna-se vulgar nos escritores que ten-taram explicar o propósito do costume. Bishop vê os pés das mulheres, deformados, aleijados e torturados, e agra-da-lhe ver que as "classes baixas" têm pés normais, pois descreve o que viu em Cantão onde as mulheres dos bar-cos não se enfaixavam. Esta "complacência" pelo cos-tume, apesar de partir da necessidade, fez provavelmente com que não fosse exigido o enfaixamento a outras mu-lheres da classe trabalhadora baixa. A consciência de classe de Bishop é meramente típica do seu tempo e não é necessário tomá-la como desdém. De facto, ela gosta da cara das mulheres e é claro que acha que, tendo pés normais, têm uma vantagem sobre as classes mais altas. A sua última frase é torturante, parece estar no limiar de comunicar a "verdadeira" razão do enfaixar dos pés. In- fere-se que ela alude a assuntos de ordem sexual que, infelizmente, não pôde pôr no papel. A falha por parte de todos os escritores do Séc. XIX em tocar neste assunto deixa-nos uma lacuna no retrato que gostaríamos de cons-truir sobre as atitudes e imagens com que a mente oci-dental envolve os Chineses. A recalcitrância vitoriana, no que diz respeito aos assuntos de ordem sexual, é res-ponsável por isto e não se pode responsabilizar as escritoras pelos padrões de dualidade e hipocrisia dos homens. É evidente que sabiam algo do significado se-xual dos pés pequenos e talvez as intrigasse a diferença entre os conceitos eróticos ocidentais e os da China. É frustrante que as noções vitorianas de decoro as impe-disse de tocar neste assunto fascinante.

Colquhoun aborda a razão de certas classes de mulheres enfaixarem os pés e também ele enfatiza a ne-cessidade de o fazer, se uma rapariga "respeitável" qui-ser encontrar um marido decente:

"Tem-se a impressão que os pés pequenos são apenas prerrogativa das filhas das classes mais altas; mas é um erro completo porque, tal como nenhum homem respeitável da classe mais alta (dizem os filhos de 'um oficial') sonharia em casar com uma mulher que os não tivesse, eles são a ambição de todas as mulheres. Alguns pobres, sobretudo a imensa classe que ganha a vida nos barcos, não têm possibilidade, pelo trabalho que fazem e por necessidade, de os enfaixar."24

É evidente que uma rapariga não teria categoria se os seus pés fossem normais. Isabella Bishop relata:

"Até agora, uma mulher chinesa com 'pés gran-des' ou não possui qualidades ou é miserável: uma rapa-riga sem os pés enfaixados não teria hipótese de se casar e se um noivo descobrisse que a noiva tinha pés grandes, quando ele esperava que fossem pequenos, justificaria completamente, perante a opinião pública, a sua devolu-ção aos pais."25

F. H. Nichols é outro que refere a necessidade dos pés enfaixados, se uma rapariga procurasse um par-ceiro adequado para casar. No Through hidden Shensi (1902), ele escreve:

"Para uma mulher, não ter pés apertados e defor-mados é quase uma desgraça, capaz de impedir o seu casamento e certamente ter como resultado ser conside-rada 'esquisita', ao ponto de se tornar objecto de aversão e ridículo na sua aldeia. Espera-se que este, o mais bár-baro hábito chinês de todos, seja um dia abolido pela lei, mas até lá as mães chinesas não podem ser justamente acusadas de crueldade, por torturarem efectivamente as filhas. Em Shensi, qualquer mãe que se coibisse de sujeitar a sua filha às agonias dos pés deformados estaria a condená-la a uma vida de humilhação, infortúnio e talvez de desgraça."26

A natureza obrigatória do hábito é escolhida por uma série de escritores, alguns dos quais acusam os homens chineses de serem a causa dos pés enfaixados. Macgowan expressa a convicção de que as mulheres não tinham outra escolha senão a de perpretar a tortura às suas próprias filhas ou condená-las ao celibato. Como prova disto, descreve como um dia ele e a mulher fica-ram aflitos, ao ouvir um choro convulsivo de dor vindo da casa de um vizinho. De certeza que era uma rapariga a quem enfaixavam os pés, disse-lhe a mulher. Por-fim, não podendo suportar por mais tempo os gritos, a mu-lher resolveu suplicar à mãe da criança que parasse com o enfaixamento:

"O seu coração tremia de emoção, sentida até ao mais profundo do seu ser pela agonia da criança (...) ela ficou paralisada pelo que viu. Uma miúda com cerca de sete anos estava deitada numa cadeira, enquanto a mãe segurava com firmeza um dos seus tornozelos e envolvia o pé, bem apertado, com uma ligadura comprida para o comprimir até ao limite do possível. A dor era tão grande que a cara da criança estava congestionada e, fincada ao braço da mãe, gritava: 'Pára. pára! Vou morrer de dor!' 'Vim', disse a minha mulher,'para lhe pedir e suplicar que pare com a tortura que está a infligir à sua filha (...) É a sua filha e o seu coração de mãe certamente lhe diz para não a deixar sofrer (...)'.

Enquanto a minha mulher estava a falar, surgiu um olhar de indignação na cara da mulher e os olhos faiscaram literalmente de raiva quando respondeu:

'Quem é para me vir ensinar a cuidar da minha filha? Pensa que não gosto dela, mas gosto tanto como gosta dos seus. É uma mulher inglesa e não compreende as responsabilidades que recaem sobre nós, mulheres da China. O enfaixar dos pés é a má sorte que herdámos do passado, que os nossos pais nos transmitiram e não há nin-guém, neste nosso grande Império, que nos possa valer.

Pede-me para desistir de enfaixar os pés da mi-nha filha, mas quem protestaria veementemente contra isso seria a pequenita que está à sua frente (...) se eu ace-desse ao seu pedido; daqui a uns anos ninguém me con-denaria mais do que ela. A sua vida tornar-se-ia intole-rável, rir-se-iam dela, seria desprezada e tratada como escrava. Quando fosse à rua, não poderia pentear o ca-belo para cima, artisticamente, de acordo com a moda permitida às mulheres com pés enfaixados. Nem tão pouco consentiriam que usasse saias bordadas ou boni-tos vestidos, adorados pelas mulheres na China. Ela teria que se submeter às regras para as escravas impostas pela sociedade (...).

E agora, deixo que a criança decida se quer ou não que eu continue a enfaixar (...).'

Voltando-se para a filha, perguntou-lhe com voz doce: 'Não queres mesmo os pés enfaixados? Diz-me, não tenhas medo de dizer o que pensas!'

(...) Quão patética ficou, ao expressar com um quase imperceptível movimento da cabeça, que não que-ria enfrentar o futuro como escrava, mas sim com os pri-vilégios e condição social que os seus pés enfaixados lhe dariam (...)."27

Macgowan continua-nos a mostrar o provável re-sultado do que seria o ela aventurar-se na rua com o ca-belo arranjado e roupas bonitas, mas com pés normais, exposta ao ridículo público, incluindo ofensas verbais e agressões físicas. Uma mulher assim seria abordada co-mo escrava, diz ele, e provavelmente ser-lhe-iam reti-radas as jóias e ornamentos. Sem dúvida, durante os vá-rios anos passados na China, ele deve ter tido um conhe-cimento directo disto, embora não cite nenhum exem-plo. Também se mantém alguma dúvida quanto à respos-ta da rapariga querer realmente os pés enfaixados. Se ela tivesse respondido "não", teria envergonhado a mãe em frente a um estrangeiro por ela ser aparentemente men-tirosa e impiedosa. No entanto, é impossível concluir se foi uma resposta sincera ou apenas a resultante de uma necessidade cultural e filial.

Quando Miss Gaunt visitou a China, a prática de enfaixar os pés começava já a desaparecer nas cidades, mas verificou que no campo, o status de uma rapariga e as suas perspectivas de casamento, ainda eram definidos pela perfeição dos pés:

"A prática, dizem eles, está a desaparecer entre as mais instruídas nas cidades, mas no campo, a cerca de vinte e quatro km de Pequim, ainda se mantém. Estes 'lótus dourados' não só eram considerados lindos, como também era suposto, entre o povo, a mulher de pés enfaixados interessar-se mais pelas carícias do seu se-nhor do que a de pés normais. É claro que um homem pode não escolher a sua mulher, a mãe fá-lo por ele e até pode nem sequer vê-la, mas pode e naturalmente acon-tece muitas vezes, fazer perguntas sobre ela. A pergunta que geralmente faz, não é: 'Ela tem uma cara bonita?', mas: 'Ela tem os pés pequenos?' Mas se ele não pensar nisso, as mulheres da sua família encarregam-se de fazê-lo por ele.

Uma mulher contou-me que, no Norte do Chihli, o hábito era as mulheres da família do noivo juntarem-se à volta da noiva recém-chegada, que se sentava silen-ciosa e submissa, enquanto elas faziam comentários sobre a sua aparência.

'Ela é horrorosa!' Ou, pior que tudo, 'Que pés tão grandes que ela tem!'28

Muitos dirão que não são os homens a insistirem no enfaixar dos pés, mas sim as mulheres. Se é assim, para mim, isto só vem aumentar a tragédia. Imaginem quão distantes estão as mulheres dos homens quando pensam, sem sombra de verdade que, para agradar a um homem, a mulher tem que ser aleijada. Dificilmente se pode culpar as mulheres. Se são ignorantes ao ponto de acreditar que nenhuma mulher com pés normais pode as-pirar a ser esposa e mãe, que outra coisa podem fazer, senão enfaixar os pés das miúdas? A mulher da China é cruel, brinquedo e escrava do homem. Preferia mil vezes ser uma negra, uma mulher do Tarquah para ser trocada ou uma das eficientes e independentes mulheres do Keta. Mas ser uma mulher chinesa, Deus me livre!""29

Miss Gaunt parece confusa acerca do papel dos pés pequenos na sociedade. Ela tem a certeza que os homens não os exigem, no entanto admite que um noivo em perspectiva é mais capaz de perguntar pelos pés da noiva do que pela cara. Não concorda que uma mulher tenha que ser aleijada para agradar a um homem e, no entanto, reconhece que ela não tem hipótese de ser espo-sa e mãe, se não tiver os pés enfaixados. A pobre Miss Gaunt disse lamentar não ter tido hipótese de se casar. No entanto, se ela se tivesse limitado aos deveres fami-liares, não poderia ter experimentado a liberdade que lhe permitiu viajar e escrever. Ela vê as mulheres chinesas como criaturas fracas, condenadas a vidas de privação e dor e totalmente subordinadas aos homens. Quando Miss Gaunt prefere ser negra a ser chinesa, revela o seu desagrado pela posição delas na sociedade. Uma mulher com o passado de Gaunt teria olhado as raças negras como muitíssimo inferiores à branca; ter nascido negro não é geralmente considerado uma benção. Parece que a íntima mágoa de Miss Gaunt torna-a muitas vezes am-bivalente; deseja o estatuto de casada e, no entanto, acha que não chega. Alude a um segredo, o propósito sexual dos pés pequenos: a que os tiver dá mais importância às carícias do marido, no entanto, horroriza-se por poder ser um brinquedo e escrava dos homens. A necessidade de reprimir a sua própria sexualidade, sendo uma res-peitável senhora sozinha, não lhe coarctou a curiosidade acerca dos mistérios da cama do casal, mas ela é total-mente incapaz de pensar objectivamente no assunto do sexo. O pouco que fala sobre isto, apesar de tudo, é mais do que outros escritores, que dizem menos ou nada. O sexo parece estar na sua mente, atraindo-a, mas rejeitan-do-o. O seu relato acerca das mulheres chinesas torna-se uma forma disfarçada de falar dela, das suas desilusões e desejos.

Uma amá (criada) a regatear com dois vendilhões. Apesar da idade, orgulha-se da intensidade do seu trabalho, assim como dos seus pequenos pés e da maneira esmerada como os atou. In HOSIE, Lady, Two gentlemen of China, 1926, [página de rosto]. Biblioteca Central de Macau, Secção Leal Senado.

O tratamento das mulheres na sociedade foi abor-dado por muitos vitorianos como um padrão de civiliza-ção. Alguns utilizam o baixo nível de tratamento das mulheres como mais uma prova da inferioridade chine-sa. Gutzlaff confessa não se surpreender com o trata-mento infligido pelos Chineses às mulheres; já é de esperar:

"Os Chineses surgem sob uma óptica negativa, quando equacionamos o seu modo de tratar o sexo fraco. No entanto, neste aspecto, o seu carácter é comum a todos os semi-bárbaros e não são os piores de todos."30

Gutzlaff não fundamenta o seu ataque aos Chi-neses; o leitor, sem qualquer prova, deve aceitar a sua pa-lavra. O seu barbarismo é tão deplorável como as suas características. Ensinar o caminho da verdade aos pobres e incultos pagãos é tarefa de missionários como ele.

Colquhoun dá a impressão de culpar os homens chineses pelos sofrimentos das mulheres e das classes trabalhadoras que ele descreve em termos piedosos, em-bora menospreze as maneiras e a aparência das suposta-mente bem-nascidas. Está familiarizado com as cidades e as modas das citadinas e faz comparações com as mu-lheres das aldeias. Descreve parte de uma viagem na província de Yunnan e o que viu na pequena aldeia de Sam-Kong-hu:

"Passeávamos pela margem do rio, através de zonas de cultivo, onde algumas mulheres e crianças tra-balhavam arduamente num campo de feijão. Estas po-bres mulheres e crianças, estafadas do trabalho, não têm nada dos ares afectados de modéstia das suas irmãs mais civilizadas, com pés de 'lótus dourado'.

Pobres criaturas! Sem alegria, com vidas tristes, que consistem num trabalho constante de sol a sol, no campo ou em casa, pelo menos não pertencem ao 'clube dos pés', essa deformidade ditada por uma moda néscia. Têm até a liberdade de ver um estrangeiro passar e de lhe dirigirem a palavra (...)."31

Colquhoun compadece-se das mulheres e cri-anças trabalhadoras do campo que não têm descanso "de sol a sol". Parece ter mais respeito por elas do que pelas mulheres ricas que não precisam de trabalhar, por quem, pelos seus afectados ares de modéstia, ele sente apenas desprezo. Embora a vida das mulheres do campo seja dura, Colquhoun considera a questão de elas não terem que enfaixar os pés como um factor compensador de uma existência sem alegrias. Ao mesmo tempo, critica implicitamente os homens chineses, porque são eles que apreciam os pés "lótus dourados". Mais tarde, visitando a cidade de Ping-ma, também em Yunnan, ele descreve:

"Quando voltávamos, as mulheres juntaram-se à porta de casa e reparámos que no portal de um insigni-ficante mandarim local, por onde passáramos antes, um grupo das suas mulheres se tinha amontoado para con-seguir ver os estrangeiros. Entre elas, havia uma jovem cujos pés gostaríamos de ter examinado para descobrir se eram 'lótus dourados', como eufemisticamente se denomina a monstruosidade dos pés comprimidos. O seu trajar indicava um certo refinamento, pouco vulgar neste povo simples do campo."32

"Insignificantes mandarins locais", é uma descri-ção depreciativa para designar um poderoso funcionário local e suas "mulheres", faz com que as senhoras da família pareçam sub-humanas. A repulsa de Colquhoun pela "moda imbecil" de enfaixar os pés parece ter colo-cado os Chineses fora dos limites da humanidade civi-lizada. O seu desprezo inclui as mulheres que o prati-cam, embora possam ser "extravagantemente" pudicas -- ele não acredita na sua modéstia. Apesar disso, dá-nos a impressão de ter simpatia pelas "naturais", muito embora menos "civilizadas" mulheres do campo.

R. Logan Jack, um geólogo, compartilha a opi-nião de que as mulheres são menos consideradas na China e que geralmente a sua sorte não é invejada:

"Um padrão normal pelo qual nos tempos mo-dernos a civilização de um povo é medida é o grau de respeito para com as suas mulheres e, até certo ponto, os Chineses podem exigir uma cotação alta quando avalia-dos por esse padrão. Por tudo o que vi, uma mulher na China está tão livre de injúrias ou insultos como de galanteios, delicadezas ou mesmo lisonjas. Suspeito, no entanto, que o sentimento é mais de tolerância do que de respeito e que a mulher é meramente olhada como ani-mal doméstico demasiado útil e valiosa para ser mal-tratada."33

R. Logan Jack provavelmente viu alguns arcos decorativos construídos para honrar filhas e viúvas cas-tas. Isto eram formas de respeito formal pelas mulheres, mas ele suspeita que, em termos da vida quotidiana, elas eram consideradas como meras e úteis trabalhadoras domésticas. Por outras palavras, ele não constatou o tipo de deferência para com as mulheres, que associa com o respeito e cortesia no Ocidente. Jack transmite-nos mais a falta de compreensão das regras chinesas do que pro-priamente a sua condenação. Ele conclui que as mulhe-res de pés pequenos representam tudo o que o homem chinês conseguia achar desejável, mas não partilha dessa admiração e considera-a inexplicável.

Miss Gaunt, quando era criança na Austrália, estava a par dos contratos de casamento dos "cules" chi-neses no estrangeiro e tinha pena deles. Ainda é maior a sua compaixão pelas mulheres com pés pequenos que viu durante as suas viagens. Ela verificou que mulheres de todas as classes tinham os pés enfaixados, apesar de terem de fazer trabalhos pesados de toda a espécie, que os seus pés não aguentavam. Odiava ver as mulheres das aldeias moer o milho como bestas de carga:

"Às vezes um burro, e um burro pode ser com-prado por pouco dinheiro, rodava a pedra, mas habitual-mente parecia que eram as mulheres da casa quem, com os seus pequenos pés, dolorosa e titubeantemente roda-vam a pesada pedra (...) Pobres mulheres! Existe um provérbio na China dizendo que a mulher come fel, e não há dúvida, se o pouco que vi da sua vida serve de padrão."34

Ela vê o sofrimento infligido às mulheres, atra-vés do enfaixamento dos pés, como símbolo da sua posi-ção na sociedade e cita um médico com quem falou que teria dito: "As mulheres têm uma vida horrível na China! Não acredito que exista outro lugar no mundo onde seja pior." 35 Gaunt concorda totalmente e dá-nos a sua narra-tiva como suporte dessa asserção:

"Em regra, não vi os inícios, porque embora as mulheres saiam um pouco, as miúdas são mantidas em casa. Mas uma vez nesta viagem, numa pobre estalagem nas montanhas, entre a multidão que se juntou para ver uma mulher estrangeira, estavam duas miúdas entre os oito e nove anos, evidentemente as filhas da estala-jadeira. Entre os pedintes, estavam bem vestidas. Os bi-bes eram de algodão azul claro, as pequenas calças lim-pas, de algodão vermelho, eram apertadas nos tornozelos e os pés, em pequenos sapatos bordados, deviam ser do tamanho de uma criança de três anos. Tinham as boche-chas pintadas para esconder uma palidez que infundia pena e as caras apresentavam um aspecto que só a dor pode provocar. Quando em pé, apoiavam as mãos nos ombros das companheiras e, quando se moviam, faziam-no com enorme dificuldade. Ninguém reparava nelas. Eram apenas miúdas que sofriam as agonias normais que o hábito obrigava uma mulher a sofrer, antes de ser con-siderada joguete e escrava de um homem. Uma mulher que quisesse ser qualquer coisa tinha que sofrer."36

O ar triste da rapariguinha é mais uma vez apon-tado, mas o mais interessante é o conceito de Gaunt so-bre a posição das mulheres. Mais uma vez ela aflora o propósito de uma conotação sexual dos pés pequenos, convencida que o destino da mulher chinesa é ser um joguete e uma escrava do homem. A perda da infância e a sua substituição pela dor, no futuro, servirão para gozo de algum homem.

Um livro do estudo original do qual este artigo foi tirado foi escrito para um mercado muito específico: crianças. O Reverendo I. T. Headland, um americano, apresenta um retrato alarmantemente negativo dos Chi-neses. O livro é alegadamente documental, centrando-se à volta de uma menina de nome Chenchu e da sua vida em família. O tom do trabalho é benevolente e, logo na introdução, a antipatia de Headland é evidente:

"No outro lado do mundo, vivem os nossos pe-quenos primos chineses com a sua pele amarela, olhos oblíquos e cabelo preto brilhante. Levantam-se de ma-nhã, quando nós vamos para a cama, à noite deitam-se em camas duras, quando nós vamos tomar o pequeno-almo-ço e têm muitos hábitos contrários aos nossos, mas deve-ríamos ter o maior interesse por eles porque, num certo aspecto, o país deles tenta ser como o nosso. A China luta há uma série de anos por se tornar uma república com leis e por um presidente como o dos Estados Unidos (...)."37

Este livro teve 14 edições até 1920 e fez parte de uma série de 56 livros de Our little cousin, que cobriram todas as partes do globo (claro que nem todos foram es-critos por Headland). A imagem dada no Our little Chi-nese cousin é a de um povo inculto, tão diferente, que dormem em camas duras (em vez de camas boas e mo-les), e se deitam quando nós tomamos o pequeno-al-moço. Aqui, a teoria binária de Said é claramente de-monstrável. A adopção do estilo do conto de fadas dá aos Chineses um ar de fantasia e estas práticas "contrárias" passam-se numa terra confusa, fora da experiência hu-mana real. Uma tal terra e raça de gente não deve ser le-vada a sério até conseguir entrar no mundo civilizado, imitando as instituições dos Estados Unidos. Implici-tamente, a China não tem leis próprias, mas está a tentar aprender com o bom exemplo do modelo Americano.

Na narrativa da vida de Chenchu, uma chinesi-nha exemplar, Headland parece um observador imparcial, no entanto algumas das suas descrições são tão aterrado-ras como as de qualquer conto de fadas ocidental de bruxas ou de madrastas más. A ama de Chenchu não po-de correr por causa dos pés amarrados (aleijados). Pes--soalmente, Chenchu é dona de uma escrava cujos pais "tê-la-iam tido que pôr na rua",38 se a família de Chenchu não a tivesse recolhido. É uma horripilante terra exótica onde ainda existe escravatura, pais maus matam os filhos e criancinhas são torturadas. Headland reinventa a China numa série de imagens aterradoras de insegurança e bru-talidade. As últimas oito páginas deste pequeno livro são dedicadas aos pés enfaixados. Chenchu acaba de brincar com o cão e lembra-se de uma pergunta que quer fazer:

"El[a], muito perturbada, foi ter com a ama. Ti-nha lido no seu pequeno Nu erh ching39 o seguinte verso:

Sabes por que é que se enfaixam os pés?

É fácil ir parar à rua por causa do medo

Não é que sejam belos, quando são curvos como arcos,

Nem por serem enfaixados em dez mil ligaduras e a sua carinha tornou-se mais solene do que nunca ao repeti-lo à ama.

'Não gosto disso, ama', disse ela.

'Que queres dizer?' perguntou a ama.

'Não gosto de pensar em enfaixar os meus pés', respondeu Chenchu;

'Não posso correr, não posso brincar, mal posso andar, -- ama, não dói horrivelmente?'

'Por cada par de pés enfaixados existe uma cama cheia de lágrimas,' disse a ama, repetindo um provérbio que a menina já ouvira muitas vezes.

'Conheces a tua amiguinha Manao (Ametista). Só lhe enfaixaram os pés aos oito anos, nessa altura já tinham crescido tanto que os ossos do peito do pé tive-ram que ser partidos. Os seus gritos podiam ouvir-se a um li (um terço de uma milha) e as lágrimas jorravam como água, mas ninguém deu atenção. Enfaixaram-lhe os pés com ligaduras de algodão, como todos os nossos pés, indiferentes ao inchaço e à dor. Inflamaram, parti-ram, formaram-se grandes chagas e durante semanas, a menina que tão alegremente ouvira o cantar das aves e que correra e brincara tão livremente como os irmãos, chora, deitada numa cama dura (...).'

Novamente a tal cama (irracional) dura. A mãe de Chenchu chama-a para dentro de casa, porque a mu-lher vem-lhe pela primeira vez amarrar os pés. Chenchu ajuda a velha ama que 'como não pode deixar de ser, vacila sobre os pés pequenos'.

'Por favor, mãe, não a deixes fazer isso, não a deixes fazer isso, mãe.'

'Não, minha querida, não pode ser; tens de en-faixar os pés, ou a mãe não te conseguirá arranjar um marido,' disse a mãe, tirando-lhe os sapatos.

'Não quero um marido! Não quero um marido! Viverei com a ama!' disse Chenchu, desatando a chorar.

Mas a mãe era uma mãe elegante, não podia dei-xar que a filha crescesse 'com pés de homem', correndo o risco de não lhe arranjar um marido respeitável, por isso foi forçada a não dar ouvidos aos seus pedidos e lá-grimas; e os pequeninos dedos cor-de-rosa foram, um a um, dobrados para baixo do pé e estavam quase a pôr as ligaduras, quando a criada anunciou um visitante (...).

Chenchu está com sorte. O visitante é um casa-menteiro que veio fomentar os trâmites legais para o noi-vado dela com um rapaz de uma boa família da região.

'É um rapaz de que qualquer pai se pode orgu-lhar', diz a mãe de Chenchu (...).

'Ele aceitar-me-ia sem os pés enfaixados?' per-guntou Chenchu inocentemente.

'Sim', respondeu o intermediário, 'Mr. Yuan é membro da sociedade contra os pés enfaixados e deu-me ordem para lhe dizer que, se isso lhe agradar, os pés de Chenchu não precisam de ser enfaixados'."40

Como todos os bons contos de fadas, este tam-bém tem um fim feliz e deduzimos que Mr. Yuan é cris-tão. Por isso não exige a prática brutal de enfaixamen-to dos pés da futura noiva. O estilo de escrita e o tipo de acontecimentos seguem a fórmula típica do conto de fadas colocando a história num cenário imaginário, em-bora sugerindo que pessoas civilizadas ou "reais" não têm este tipo de comportamento. A descrição do en-faixamento de Ametista, tal como nos escritos para adultos, faz com que pareça uma tortura. A diferença é que, aqui, é dirigido a leitores muito novos, dando a impressão que na China até as boas mães são monstros à espera de uma oportunidade para torturar as suas con-fiantes filhas.

No verso de Nu erh ching, que parece apresentar a razão do enfaixamento dos pés das raparigas, o resul-tado acaba por ser designado como um "aleijão", embo-ra Headland deva ter sabido que a descrição chinesa dava a impressão de uma curva graciosa. Esta tradução incor-recta dá a impressão de que o que a maioria dos Chineses admirava e venerava como graciosamente curvo, tal co-mo um botão de lotus, era na realidade apenas uma "de-formação". Em relação a isto, Headland é de certa forma falso. Tendo tido a sorte de ver um pé desenfaixado de uma senhora, posso testemunhar que o pé, correctamente enfaixado, ficava curvo como um arco, tal como dizem os poetas. Seja o que for que possamos pensar do proces-so para o conseguir, não há dúvida que os pés de uma senhora reclinada nos seus aposentos e com belos sapa-tos bordados pareciam muito graciosos.

Fosse ou não o objectivo original do enfaixamen-to, fazer com que (o que duvidamos) as mulheres não andassem na rua, há outros escritos que sugerem que os Chineses consideravam os pés pequenos muito bonitos; ao longo dos séculos são frequentemente elogiados em poesia e em prosa. Só no final do Séc. XIX os poetas modernos começam a ter uma visão negativa do enfai-xamento dos pés e a sua poesia torna-se tipo propagan-da. Ao apresentar ao seu jovem público imagens de uma raça cruel e semibárbara, que nem sequer tem o bom senso de dormir em camas moles, Headland bem cedo semeia as sementes do preconceito e do racismo.

A posição progressivamente empolada da histó-ria de Chenchu e dos pés que se libertam é uma alegoria política relacionada com a luta da China para se tomar, como o Ocidente, civilizada e moderna. A aceitação dos pés normais de Chenchu simboliza a aceitação das leis naturais (de Deus) e o afastar do barbarismo, do irracio-nal e do caos do paganismo. A assumpção de Headland é parecida com a de Macgowan de que "a Inglaterra sal-vou a China"; apenas, no seu caso, é a América que ofe-rece a salvação.

A imagem predominante apresentada pelos es-critores, base deste estudo, é de que as mulheres têm uma posição inferior e uma existência miserável. É-lhes exigido que se deformem, para gáudio dos olhos dos ho-mens e a aquisição duma posição na sociedade depende da pequenez dos pés. No entanto, as mulheres das clas--ses trabalhadoras não são dispensadas das tarefas que as suas irmãs de pés normais de outros países fazem. Os escritores ocidentais apresentam, sem excepção, o andar das mulheres como não tendo nenhum atractivo e os seus tão apreciados e doridos lótus como deformidades. No entanto, uma grande simpatia pelas mulheres chine-sas emerge e aqueles que as ridicularizam ou oferecem imagens excessivamente negativas são uma minoria. Parece não haver nenhuma correlação especial entre a profissão ou sexo do escritor e as imagens que ele ou ela apresentam, porque, se as escritoras mais "sérias" são todas elas benevolentes em relação às mulheres chine-sas, muitos escritores também o são. Esperamos encon-trar nos missionários a moral, a visão especificamente cristã, mas Macgowan consegue ser tão generoso como Gutzlaff é intolerante. Além de que, não há provas de que as divergências entre Gutzlaff e Macgowan possam ter como fundamento o facto de serem de gerações diferentes. Tal como outras passagens atestam, o Reverendo Justus Doolittle é, em 1865, extraordinaria-mente benevolente, enquanto A. H. Smith, outro mis--sionário, em 1890, tem uma visão muito parcial dos Chineses. Os pontos em que todos os escritores estão de acordo são que os pés enfaixados são obrigatórios para um bom casamento, que as mulheres chinesas são mal-tratadas e que os pés enfaixados, aos olhos dos ociden-tais, não são atraentes.

Em tipo de pós-escrito do estudo acima mencio-nado, no início deste ano (1995), tive a sorte de poder entrevistar, nas montanhas de Lushan, na Província de Henan, uma informadora cujos pés tinham sido enfai-xados. O testemunho de Mrs. Zou confirmou integral-mente as observações dos escritores acima citados. Disse-me ter oitenta anos, deve portanto ter nascido em 1915. O pai era proprietário de terras e Zou Yun era sua filha única. Um dia, quando Zou Yun tinha sete anos, a mãe disse-lhe que chegara a hora de começar a enfaixar os pés. Ela diz que gritou quando lhe disseram, porque não queria enfaixá-los, mas sabia que a mãe tinha de fazê-lo, embora a amasse e não quisesse fazê-la sofrer. Uma ra-pariga com pés normais tornar-se-ia motivo de chacota da aldeia, disse ela, e nenhuma família a pode-ria aceitar como nora. Não só a rapariga sem pés enfai-xados seria insultada, como o pai também seria ridicu-larizado, por vezes com um pano à volta do pescoço, por que ninguém respeitava os pais de uma rapariga de pés normais.

A mãe de Zou Yun pegou num pano com um me-tro de comprimento por sete centímetros e meio de largo e começou a enfaixar-lhe os pés, enquanto Mr. Zou e a mãe olhavam. Ela disse-me que gritou e gritou de dor, mas a mãe tinha que apertar com força, ainda que pare-cesse cruel, porque era a moda da altura e a mãe queria fazer-lhe um bom casamento. Sabia que, se os pés não fossem suficientemente pequenos, a sogra se zangaria, o casamento não teria harmonia e ela seria maltratada (nesses tempos a rapariga ia invariavelmente viver para casa da sogra). Todos os dias os pés eram lavados com alúmen e depois enfaixados, cada vez mais apertados, e todos os dias chorava de dor. À noite sentava-se no canto do quarto, cruzava as pernas e fazia massagens nos ossos dos pés para os amaciar. Isto era suposto arqueá-los, levando-os mais depressa à forma desejada de "lótus". Quando perguntei como é que o enfaixa-mento era feito, para saber se o método era igual aquele que eu lera, Mrs. Zou, amavelmente, fez uma demons-tração, mas o meu intérprete disse-me para não pedir uma fotografia.

Com apreensão, observei Mrs. Zou tirar a meia, porque eu vira algumas fotografias de pés enfaixados nada agradáveis. Para surpresa minha, o pé de Mrs. Zou tinha uma pele suave, dourada e sem rugas e não parecia nada o pé de uma velha. Embora "libertados" há muito, os pés tinham sido demasiado apertados para poderem voltar a ter uma forma normal. O pé era pontiagudo, com os dedos mais pequenos enrolados para dentro, na direcção do centro da palma do pé, para dar o aspecto geral de uma cunha. Pegando numa tira de pano com fir-meza, a mão esquerda prendendo-o no topo do dedo "grande", Mrs. Zou demonstrou como a outra ponta era presa à volta dos outros dedos mais pequenos, para os forçar a ir para o centro do pé. Sem esforço, amarrou a ligadura à volta do pé e depois à volta do calcanhar em "formato de oito", tal como os observadores do Séc. XIX descreveram. Era fácil de perceber como os pés dela de-vem ter sido pequenos e perfeitos.

Normalmente, o calcanhar era puxado para o centro do pé com uma força considerável, para tornar o pé mais pequeno, no entanto, como os pés de Mrs. Zou tinham sido desamarrados há uns cinquenta anos, nela, esta parte era pouco notória. Era o encurtar do pé que causava a característica forma em "arco" do peito do pé, tão admirada no passado. No fim do processo, que durou seis ou sete anos, os pés de Mrs. Zou tinham dez cen-tímetros de comprimento. Disse-me, com orgulho, que os da avó tinham apenas tido sete centímetros e meio, mas fez notar que, com pés tão pequenos, era difícil su-portar o corpo.

"No melodrama, os papéis femininos eram representados por homens, que até usavam sapatos especiais para imitar os pés pequenos das mulheres."

In FONDAZ1ONE CIVILTÀ BRESCIANA, La Cina: nelle lastre di Leone Nani (1904-1914), a cura di Giuliano Bertuc-cioli, [Brescia], Grafo, cop. 1994, p. 97. Reprodução gentilmente autorizada pelo Pontificio Istituto Missioni Estere, Milão.

"Um grupo de mulheres e raparigas de classe média."

In FONDAZIONE CIVILTÀ BRESCIANA, La Cina: nelle lastre di Leone Nani (1904-1914), a cura di Giuliano Bertuccioli, [Brescia], Grafo, cop. 1994, p. 133. Reprodução gentilmente autorizada pelo Pontificio Istituto Missioni Estere, Milão.

Mrs. Zou não tinha que andar imediatamente, a não ser que quisesse, explicou ela, mas quando o fez, foi com o apoio da parede e com lágrimas de dor nos olhos. Contudo, repetiu ela, todas as raparigas tinham de fazê-lo na mesma idade ou não conseguiriam marido. Até as raparigas pobres tinham que enfaixar os pés tornando-os tão pequenos quanto possível. Ela casou aos vinte e dois anos mas, nessa altura, já os pés tinham sido libertados. Quando tinha dezassete anos, o governo ordenara que não se amarrassem os pés [ca. 1933]. Embora sabendo que não tinha escolha, sentiu-se relutante em obedecer à ordem, pois os pés de lótus tinham-lhe custado muita dor. Quando retirou pela primeira vez as ligaduras, os pés infectaram e incharam. Como ficaram irremediavel-mente aleijados com o enfaixamento, nunca voltaram a ter o formato normal, embora o "arqueado" do peito do pé já não se notasse.

Numa sociedade onde as mulheres da classe mé-dia têm pouca ou nenhuma independência, o seu único recurso é o uso de "estratagemas femininos" para con-seguirem ter um certo controlo sobre suas vidas. Quan-do mãe, pai e o peso da sociedade conluiam para desen-volver posições de dependência e de sentimentos de inferioridade intelectual e psíquica, a mulher só tem uma opção: arranjar um marido. Sem marido, não terá nenhum status na sociedade e as vantagens que o casa-mento lhe trás ser-lhe-ão negadas. Se os homens que-rem pés pequenos ou cinturas estreitas, peito grande ou um pescoço de girafa, as raparigas sem as característi-cas exigidas falharão ao competir no mercado matrimo-nial em relação às pessoas que as possuem. Os ob-servadores ocidentais explicavam a continuação do en-faixamento dos pés, relacionando-o com o casamento e o papel simbólico no qual os pés amarrados eram o re-positório da posição da mulher. Uma extrema pequenez significava uma imensa riqueza. Embora o debate sobre o espartilhar fosse do domínio público e até mesmo alguns homens reconhecessem ter sido escravizados por ele, as conotações sexuais eram difíceis de evitar. Os pudibundos queixavam-se de tudo o que achavam poder inflamar as paixões animais dos homens, no entanto no Séc. XIX, a moda, no fato feminino, fazia com que qualquer cintura parecesse pequena em justaposição às imensas saias, quer o utilizador tivesse ou não um es-partilho apertado. Enquanto os ocidentais desprezavam a moda chinesa, como sendo inestética e bárbara, para os Chineses, o exagero da figura feminina era conside-rado extremamente vulgar e uma clara demonstração do barbarismo do estrangeiro. Quanto aos pés pequenos, é provável que o segredo do seu significado sexual os tenha tornado um assunto impróprio para qualquer tipo de discussão.

O OCIDENTE CASTROU AS MULHERES CHINESAS ATRAVÉS DOS PÉS PEQUENOS

A mística sexual da mulher oriental continua sen-do para o ocidental uma imagem difusa do Oriente e, du-rante a maior parte do Séc. XX, incluiu as mulheres chi-nesas, indianas e árabes. No entanto, no Séc. XIX e prin-cípios do Séc. XX, as mulheres chinesas ainda não fazi-am parte dos elementos eróticos ocidentais. A minha curiosidade sobre isto despertou quando, após examinar uma amostragem de mais de quarenta trabalhos origi-nais, não encontrei uma única opinão divergente acerca da beleza das mulheres chinesas.

Apesar do sexo ser um tópico que o respeitável escritor ocidental não podia discutir, estava longe de ser um assunto pelo qual não tinha interesse. Havia uma certa curiosidade acerca das mulheres de outras raças, que o comércio sexual alegremente explorava de diver-sas maneiras. Contudo, a mulher chinesa era representa-da nos textos ocidentais como não tendo quaisquer atrac-tivos para o homem (ocidental). O não ser considerada como objecto sexual sem dúvida que é uma vantagem real para a mulher. Infelizmente, neste caso, não era de-vido a qualquer tipo de respeito pela mulher chinesa. Era, pelo contrário, uma forma de desprezo rácico. Concluo que a razão porque as mulheres chinesas (Han) não atraíram a atenção dos lascivos foi principalmente por causa dos seus "lótus dourados" -- os tão elogiados pés enfaixados.

No Séc. XIX verificou-se um desabrochar do co-nhecimento sobre tudo o que se possa imaginar, cujos métodos mais baratos de impressão permitiram divulgar através de livros, artigos e tratados. À medida que o sé-culo avançava, mais pessoas em Inglaterra e na América recebiam educação suficiente para lhes permitir ler e interessar-se pelos grandes debates que se realizavam na época. A posição da mulher era relativa; não era conside-rada como tendo uma inteligência individual. Enquanto a opinião pública dividia explicitamente as mulheres em categorias: puras e prostitutas, e a mulher ideal devia manter-se afastada dos prazeres da carne, "submetendo-se" ao sexo com o marido com o objectivo único da pro-criação, a realidade escondida atrás da fachada da pureza feminina parece ter sido bem diferente.

O sugerir que muitos homens se envolviam em vários tipos de práticas sexuais fora do lar não é novi-dade e um estudo muito recente indica que as mulheres talvez tenham sido menos virtuosas do que até agora fomos levados a crer;41 no entanto, as restrições impos-tas aos homens nas suas relações matrimoniais, por certo levaram muitos a recorrer a material pornográfico. Al-gum deste erotismo apresentava fantasias sexuais baseadas em protagonistas "orientais". Um exemplo típi-co da ficção pornográfica do Séc. XIX é o The lustful Turk, publicado em 1828. Neste desagradável trabalho, Emily Barlow é capturada por "piratas mouros". Ofe-recida ao Governador da Argélia como presente para o seu harém, a jovem virgem é repetidamente violada (com pormenores gráficos) e acaba por chegar à conclu-são que gosta. O interesse neste tipo de material resultou provavelmente da dificuldade em retratar mulheres oci-dentais puras em práticas "lascivas", enquanto que as mulheres "orientais" parece terem sido encaradas como menos puras do que as suas irmãs ocidentais. Para além disso, é provável que os escritores procurassem algo mais exótico do que aquilo que podiam encontrar inter-namente. Não há dúvida que havia mercado para o mate-rial erótico "oriental".

Foi durante o ano de 1880 que os mais famosos escritos orientais foram traduzidos para inglês. Sir Ri-chard Burton (1820-90), explorador, antropólogo e tra-dutor, foi responsável por dois deles. O primeiro, o Ka-ma sutra, um velho tratado em sânscrito sobre a técnica sexual, foi publicado em 1883 (Kama é o Deus hindu do amor sexual). Depois, em 1886, Burton publicou o The perfumed garden, escolhido para representar o amor se-xual árabe, embora as Persas (Iranianas) não sejam real-mente árabes. Estes trabalhos "originais" influenciaram a criação do moderno estereotipo sexual das mulheres árabes e indianas como conhecedoras das secretas técni-cas eróticas, que as mulheres ocidentais não podem compartilhar. Não encontramos um interesse similar sobre a vida familiar árabe ou indiana nos textos ociden-tais do Séc. XIX mas, em comparação, muito se escre-veu sobre a vida familiar chinesa.

Apesar disso, a sexualidade chinesa continua a ser um segredo não revelado nem mencionado. O erudi-to R. H. Van Gulik explica que esta reserva era devida "ao excessivo puritanismo que avassalou os Chineses durante a dinastia Qing ou Manchu (1644-1912) (...) Re-velavam, de uma forma quase doentia, o desejo de man-ter a sua vida sexual secreta perante todos os estra-nhos."42 Mais tarde, ele explica: "Os pés das mulheres chegaram a ser considerados a parte mais íntima do seu corpo (...) mas eu nunca vi ou li nada acerca de qualquer retrato que mostrasse os pés descobertos de umamu-lher."43 Citando a partir de textos originais, Van Gulik diz que quadros eróticos do Séc. XVII que ele viu foram copiados como "retratos pornográficos vulgares"44 nas cidades portuárias chinesas nos Séc. XIX e XX. Levy"45também mostra que existiu arte e literatura erótica chi-nesa, embora sem dar provas de qualquer idealismo que os "puros" pudessem professar pelas esposas. Apesar de estes trabalhos não terem sido acessíveis de imediato, só isto não justifica a ausência de tradução em inglês. Pare-ce-me que o facto do erotismo indiano e árabe se centrar nos orgãos genitais (algo que os ocidentais conseguem entender), enquanto que o dos Chineses foca, na reali-dade, os pés pequenos como aspecto vital na intimidade sexual, justifica a falta de interesse demonstrado pelos ocidentais nesse tipo de literatura. O fetichismo dos pés não é normal no Ocidente.

É claro que o erotismo chinês não desconheceu o papel dos orgãos genitais mas, de acordo com Levy, os "lótus dourados" são a característica mais importante. Talvez a ênfase dos pés pequenos na questão sexual, por ser incompreensível para os homens ocidentais, lhes fizesse perder o interesse pelo material, razão pela qual não se justificava a tradução do erotismo chinês. Este desinteresse ocidental pelos aspectos sexualmente atraentes das mulheres chinesas poderá ter sido uma vantagem; no entanto, foi também usado negativamente para denegrir a condição da mulher chinesa e da China. Por um lado, vemos a mulher indiana e árabe atraírem uma enorme atenção libertina; contrariamente, as mu-lheres chinesas e os seus pés pequenos atraíam apenas o escárnio, sendo usados como símbolo de repressão e crueldade, o que diminuiu a possibilidade da China vir a ser tratada como igual pelo Ocidente.

No Séc. XIX, os relatos do enfaixar dos pés fei-tos pelos ocidentais talvez sejam o maior testemunho sobre o assunto, porque no fundo eram o quotidiano chinês. Por que haveria um escritor chinês de explicar o que já todos sabiam? Claro que o erotismo tem outra interpretação. A literatura concentra-se na beleza e deli-cadeza dos pés das mulheres e os tratados contra o enfaixamento não se preocupavam em explicar como fa-zê-lo, mas sim em mostrar que era algo que tinha de acabar. Se as representações ocidentais são precisas ou não, se são tendenciosas ou de carácter secular ou reli-gioso, não é isso que me preocupa. O que interessa é que elas constituem uma parte importante dos escritos históricos de um extraordinário hábito já extinto e que, além disso, nos dão uma visão fascinante da China através dos olhos do Ocidente.

Antes de 1850, o interesse pela China estava extremamente confinado ao comércio ou à propagação do Evangelho e apenas alguns livros abordam os hábitos chineses. Por isso, quando em Julho de 1827, uma se-nhora de pés pequenos foi exibida no Grand Salon, em Londres, apenas despertou um interesse temporário.46 O interesse ter-se-á restringido aos endinheirados, pois a entrada custava um xelim, valor elevado para a época. O mais espantoso é que a senhora foi apresentada como um espécimen. Pergunta-se como chegou ela ao ponto de aceitar um tão baixo exame. Embora a antropologia não estivesse ainda definida como disciplina, os eruditos procuravam conhecer a origem das espécies e desenvol-veram teorias sobre raça, baseadas no estudo dos nativos nas "colónias". A publicação de livros para uma maior circulação aumentou na segunda metade do século e a cultura e sociedade chinesas começaram a atrair maior atenção. Não é de surpreender que, nestes trabalhos, o hábito de enfaixar os pés tivesse provocado muitos co-mentários.

O enfaixar dos pés foi invariavelmente encarado de forma negativa no Séc. XIX e abordado muitas vezes de uma forma moralizante. Em geral, a aparência das mulheres chinesas era por contraste comparada desfavo-ravelmente com as noções ocidentais de beleza femini-na, bem como o andar provocado pelos pés pequenos. A constatação dos maus tratos das mulheres foi apresenta-da como prova do estado inferior e incivilizado dos Chineses, em contraste com o Ocidente. A par da razão de enfaixar os pés das mulheres, os observadores oci-dentais aceitaram que os pés pequenos eram necessários, como forma de arranjar marido, e que as que o não fi-zessem seriam desprezadas e consideradas de baixa con-dição. Os relatos ocidentais abordavam constantemente estas questões.

O já mencionado Reverendo Charles Gutzlaff, escrevendo em 1838, refere: "Não há melhor adorno para o sexo fraco que os pés pequenos", diz ele. "Para um olhar menos preparado, os pés têm mais a aparência de deformação do que qualquer outra coisa, provocando um andar manquejante".

Ida Pfeiffer (1797-1858) tinha conhecido Gut-zlaff em 1847 na China, durante a sua primeira viagem à volta do mundo. Já tinha passado cerca de dois meses no mar, em viagem para o Brasil. Para lá chegar, atravessou florestas e rios na companhia de índios, tendo visto cobras verdes com dois metros e trinta de comprimento, comido macaco e papagaio. "O macaco", diz ela, "era excelente; contudo, o papagaio era menos tenro e sabo-roso."47 Pfeiffer, uma viajante inveterada, procurou novas aventuras na China e também ela reparou nos pés das senhoras. Compara o andar das senhoras com pés de lótus ao bambolear dos gansos e não entende aquilo que apelida de "estranhas" formas de beleza.

O tenente F. E. Forbes, Comandante do navio "HMS Bonetta" da Marinha Real, escreveu um relato muito pessoal sobre todos os aspectos da vida chinesa, do que ele viveu entre 1842 e 1847, no livro Five years in China (1848). Os comentários de Forbes sobre os pés enfaixados são irónicos e no que diz respeito aos "Capri-chos das senhoras", escreve:

"Os pés são talvez o ponto mais melindroso das mulheres e torná-los quase inúteis parece ser para as mulheres chinesas o cúmulo da felicidade, mas só para as chinesas (...) Para andar, algumas destas beldades são obrigadas a coxear com a ajuda de uma bengala que, jun-tamente com o pó branco usado para empalidecer o sem-blante, originou o seguinte verso de um poeta inspirado:

'Pálida como o arroz e graciosa como o bambu'."48

A imagem de Forbes -- dos pés sendo os mais inúteis possíveis constituírem o máximo da felicidade "só para os Chineses" -- é não só um exemplo do exo-tismo do inútil, mas também da contradição dos Chine-ses. Não é necessário chamar a atenção do leitor de que o ponto de vista ocidental é diferente. As mulheres são ridicularizadas; porque gostariam estas senhoras de co-xear, apoiadas a uma bengala? Não só o seu andar é desa-gradável, como os cosméticos que usam as tornam ainda mais desinteressantes. A citação que faz de um poeta chinês é irónica (é claro), porque Forbes não partilha da sua admiração. Implícita é a ideia de que uma nação que pratica algo tão obviamente inestético tem de ser absur-da e não pode ser levada a sério. Para ele, os Chineses são "irremediavelmente estranhos".49

Samuel Wells Williams, que passou doze anos na China, falava a língua e estudou trabalhos literários e clássicos chineses, não acrescenta muito mais. O seu etnocentrismo transparece totalmente nos dois volumes do seu trabalho rudimentar The Middle Kingdom (1871):

"O andar dessas vítimas da moda", diz ele, "é como andar nos calcanhares; as mulheres ao andarem sozinhas balançam os braços e dão passos rápidos para não caírem. Quando é possível, as mulheres mais velhas apoiam-se em sombrinhas ou nos ombros de um rapaz ou da criada; o que, literalmente, é fazer deles uma ben-gala."50

Colquhoun, um escritor do "Times", fala em ter-mos de "clube do pé", essa "deformidade" e "monstru-osidade dos pés comprimidos".

Alicia Little, a conhecida activista que organizou a primeira sociedade ocidental contra o enfaixar dos pés em 1895, não era muito dada a textos emotivos, escreve sobre "os horríveis pés de cabra, que os homens chine-ses tão estranhamente admiram"; mais tarde ela chama-lhes "abortos".51

Constance F. Gordan Cumming, por volta de 1886, reparou que algumas senhoras não conseguiam mesmo andar:

"O seu grande orgulho, evidentemente, centrava-se nos seus pobres pequenos pés 'lótus dourados', redu-zidos a cascos pequeníssimos, prova da sua condição elevada (...) Por muito que seja deselegante aos nossos olhos o manquejar dessas senhoras quando tentam andar, não é tão deselegante como a forma de transporte que é o máximo de requinte senhoril.

(...) A senhora encavalitava-se nas costas da ama, agarrando-se com os braços à volta do pescoço, enquan-to a ama a segurava pelas mãos e lhe apertava os joe-lhos."52

Isabella Bishop fornece-nos um quadro mais interessante sobre a vida dos Chineses e conta-nos que num domingo, ao parar para descansar numa aldeola montanhosa chamada Hsai-shan-po, as mulheres fica-ram espantadas com os seus pés grandes. Ela compara-os com os "pés de lótus delas, que parecem cascos e o manquejar das mulheres sobre os calcanhares" e sur-preende-se por "tê-las visto caminhar trinta li53 num dia (...) O coxear parece ser muito doloroso e é também uma espécie de bamboleio."54

No livro The back blocks of China (1904), que ele descreve como uma narrativa sedimentada na expe-riência, R. Logan Jack considera a moda "perniciosa" e acha o andar provocado pelos pés enfaixados deselegan-te e digno de pena:

"Sendo certo que, sob o ponto de vista chinês, o resultado estético é tudo quanto se pode desejar, confes--so que nunca consegui observar, sem compaixão, as po-bres criaturas deformadas, cambaleando como cabras aprendendo a sustentar-se nas patas traseiras. O sofri-mento causado pelo processo tem certamente um péssi-mo efeito na saúde das vítimas, como testemunham as faces pálidas e macilentas das mulheres."55

Jack reconhece que os Chineses têm uma pers-pectiva diferente da dele, mas que está para além do seu entendimento.

No livro Sidelights on Chinese life (1907), o Re-verendo John Macgowan, que chegou pela primeira vez à China em 1863, refere-se ao enfaixamento dos pés, como sendo um "hábito horroroso e doentio".56 Para além disso, queixa-se, no livro How England saved China (1913), ser um crime contra o trabalho de Deus e a "Natureza":

"Destruiu completamente a graça e simetria com que a Natureza dotou as mulheres. Estamos prontos a es-quecer que nos pés se encontra o segredo do delicado equilíbrio e porte gracioso que dá forma à própria poesia do movimento, e que isso aumenta imenso o encanto que as mulheres, por graça divina, parecem possuir natural-mente.

Mas os pés das mulheres, tal como a Natureza com imensa mestria os criou, desapareceram, bem como a alegre fonte e as graciosas curvas conferidas à mulher por direito de nascimento, e o único movimento permiti-do pelos pés ligados era o de uma pessoa andando sobre andas (...) Quando a Natureza começava a definir os con-tornos da jovem, a música e a poesia do movimento eram para sempre silenciadas pela dor e agonia dos pés torturados e aleijados."57

O título deste livro é por si próprio revelador. Na época em que foi publicado, a campanha contra os pés enfaixados, da qual Macgowan tinha sido um partici-pante fervoroso, estava a produzir os seus efeitos, tanto a nível de legislação governamental como de posições sociais. O título do Reverendo ignora os muitos chineses que também lutaram para este fim.

Mary Gaunt, autora de Alone in West Africa e A mummy moves (um título provocativo), também achava que os pés pequenos pareciam cascos, mas dá-nos uma importante indicação da razão das senhoras parecerem andar nos calcanhares:

"O andar de uma mulher de pés enfaixados não engana. Anda como se as pernas fossem feitas de ma-deira, sem se dobrar, da parte de baixo da anca ao cal-canhar. Os pés são pequenos, em forma de cascos, com dez centímetros de comprimento, metidos em chinelos bordados e, para conseguir andar, têm que balançar os braços para se equilibrar.""58

Na sua Encyclopaedia Sinica (1917), Samuel Couling sintetiza a ideia geral:

"Os Chineses têm o hábito de comprimir os pés às filhas com apertadas ligaduras de linho. O processo é muito doloroso e o resultado é um pé completamente deformado e o andar de um aleijado."59

Como é convencional numa enciclopédia, Cou-ling não faz nenhum comentário pessoal, mas o voca-bulário que ele escolhe era já há muito usado pelos escri-tores ocidentais. Como já foi demonstrado, nem todos os escritores tiveram as restrições de Couling e algumas observações são embaraçosas revelações da arrogância e racismo ocidentais. Por outro lado, há exemplos de es-critores e escritoras que mostram uma grande simpatia pelas senhoras chinesas, embora alguns afirmem que as mulheres são as únicas culpadas. Na maioria dos casos, o discurso da "diferença" prevalece e nenhum dos escritores ocidentais admite ter achado os pés pequenos atraentes e nós não pomos em dúvida o seu opróbio.

A imagem dos cascos é claramente o símile aceite para descrever pés enfaixados e nem sempre é usada num sentido pejorativo, mas parece frequente não ser mais que uma tentativa para encontrar uma analogia adequada. Nenhum dos observadores foi capaz de com-preender o gosto chinês por senhoras a andar de uma forma que eles acham deselegante e muitos mostram uma considerável compaixão pela dor que pensam que as senhoras sentem.

Se o andar das senhoras chinesas era tido como deselegante, as suas pesadas maquilhagens não o eram menos para os escritores que se indignavam perante esta estética estrangeira. Wells Williams ridicularizava a cos-mética facial das senhoras chinesas apresentando-as como uma espécie de palhaços de circo:

"Nas grandes ocasiões a face é totalmente cober-ta com tinta branca e põem ruge nos lábios e faces, dan-do uma singular aparência enfarinhada à fisionomia. Uma rapariga assim embelezada não tem necessidade de leque para se esconder quando cora, porque o corado não pode ser visto através da tinta, os olhos são o único sinal de emoção. As sobrancelhas são enegrecidas com paus de carvão e arqueadas ou afiladas para parecerem uma folha de salgueiro ou a lua a nascer. Uma beldade é des-crita como tendo faces como a flor da amendoeira, lábios como um pêssego em flor, cintura como a folha do sal-gueiro, olhos brilhantes como ondas dançando ao sol e o andar da flor do lótus."60

Escrevendo em 1882, Robert Douglas, do Museu Britânico e Professor de Chinês em King's College, Londres, é mais um que critica as mulheres chinesas pe-lo uso de cosméticos que, acredita ele, não fazem realçar os seus encantos:

"No conjunto, a cara ataviada da senhora chinesa é uma triste visão. A face rebocada, as bochechas aver- melhadas, as sobrancelhas artificiais e os lábios brilhan-temente pintados podem, como a figura abstracta do cérebro do poeta, ser admiráveis, mas, quando vistas como realidade, não podem deixar de ser apelidadas de repulsivas."61

"Mãe e filho. Repare-se nos pormenores de fundo, cuidadosamente estudados, como a mesa de relógio, o cachimbo turco e o elegantíssimo vestido de mulher."

In FONDAZIONE CIVILTÀ BRESCIANA, La Cina: nelle lastre di Leone Nani (1904-1914), a cura di Giuliano Bertuccioli, [Brescia], Grafo, cop. 1994, p. 112. Reprodução gentilmente autorizada pelo Pontificio Istituto Missioni Estere, Milão.

A linguagem de Douglas é ofensiva: "ataviada", "rebocada", "avermelhadas", "repulsivas". Não tenta en-tender a estética chinesa, troça dela e dos poetas que elo-giam tal tipo de beleza. Mais uma vez é a estética oci-dental que guia os seus conceitos. Uma senhora vitori-ana não usava cosméticos ou, pelo menos, não de forma que se notasse. Só gente vulgar tentava melhorar a na-tureza através da "arte". Para quem dava uma cadeira de Chinês, o discurso fortemente anti-chinês de Douglas é perturbador.

Colquhoun também não acha as mulheres chine-sas mais atraentes:

"Uma beldade chinesa é descrita como tendo as faces como a flor de amendoeira, lábios como o pêssego em flor, cintura como a folha do salgueiro, olhos bri-lhantes como ondas dançando ao sol e o andar da flor de lótus! Tal como o andar das vítimas da Senhora Moda têm a aparência de qualquer mortal, andando totalmente sobre os calcanhares, o símile prova que os Chineses têm um tipo de poder inventivo perverso."62

Como o ponto de exclamação indica, Colquhoun não concorda com esta descrição de "beldade". Os pa-drões estéticos dos Chineses devem-se a noções "perver-tidas" que são simultaneamente ridículas; implicando que nenhum ser "normal" (i. e. homem ocidental) podia aceitar tais conceitos. Os valores do "homem" ocidental estão sempre presentes explicitamente ou através de cri-térios implícitos. De facto, a linguagem usada para des-crever a aparência física das mulheres chinesas dá uma imagem-reflexo dos padrões ocidentais da altura. Por pura oposição, seria simples recriar uma imagem do ideal da mulher ocidental.

Enquanto o tom das escritoras é condescendente (nós também temos que tentar agradar ao homem, mas não até ao ponto a que vocês chegam), é frequente os homens parecerem indignados; como podem os Chi-neses ter a coragem de sugerir que é belo o que é mani-festamente contra qualquer tipo de beleza "normal"? A "estranha" e "bárbara" estética tornou-se, na mente oci-dental, a confirmação do "oposto" chinês. Além disso, esta oposição era vista como uma perversão deliberada da "natureza". Para alguns, parecia diabólico tanto na origem como no propósito.

Contudo, as observadoras femininas não se sen-tiam insultadas, mas eram pragmáticas. Parecem ter sen-tido que o ideal chinês devia ter uma raiz racional, em-bora os ocidentais não consigam ter qualquer empatia por ela. Apiedaram-se dos sofrimentos das suas irmãs e admitiram que a perspectiva do homem chinês, caso fosse possível entender, talvez fosse a chave destas mis-teriosíssimas diferenças culturais. A chave era o sexo.

Isabella Bishop aflora a razão "real" do enfaixa-mento dos pés. Os pés aleijados têm outra razão de ser [para além do alterar da figura apenas por pura aparên-cia].63 E é tudo o que ela dirá. Enquanto Mary Gaunt vai torturantemente mais longe:

"Estes 'lótus dourados' não são apenas considera-dos belos, como popularmente é suposto, mas a mulher com pés enfaixados gosta mais das carícias do seu se-nhor do que a que tem pés normais (...)."64

Aqui, Miss Gaunt insinua a existência de um se-creto propósito sexual para os pés pequenos. A recalci-trância em relação aos assuntos sexuais é a razão de Gaunt não ser explícita, pois o sexo não era nunca dis-cutido em trabalhos "sérios" de natureza não-científica. É evidente que algumas ocidentais sabiam algo sobre o significado sexual dos pés pequenos mas, se as dife-renças entre as noções eróticas ocidentais e as da China as intrigavam, infelizmente não o dizem, não o podem dizer nos seus escritos.

Quanto aos homens, embora o Ocidente tivesse "sexualizado" a sociedade árabe e indiana, com os Chi-neses fez o oposto e castrou as mulheres chinesas. As mulheres chinesas são invariavelmente tratadas como não tendo atractivos para os homens ocidentais. Os pés são deformados e parecem cascos. Andam vacilante-mente, as faces são pintadas de branco e as sobrancelhas aplicadas artificialmente. Rodelas de ruge e de baton completam a imagem de seres-bonecas, criaturas desti-tuídas de qualquer sexualidade.

E só em 1957, com a publicação de The world of Suzie Wong, de Richard Mason, é que se começou a apresentar a mulher chinesa como sendo sexualmente excitante para os ocidentais; a mitologia popular situava--a ao lado das suas irmãs orientais como sendo um es-tranho e exótico objecto-sexo.65 Nos anos cinquenta, co-mo hoje, a literatura ocidental popular apresenta-a mui-tas vezes como Euroasiática (a mistura racial torna-a particularmente bonita e superior a uma chinesa pura), sendo usualmente prostituta ou cantora. Até Shanghai, de Christopher New (1985), não pode consentir que o protagonista Denton se apaixone por uma chinesa "res-peitável", embora ele encontre finalmente coragem para casar com a sua "cantora" depois de um casamento infe-liz com uma ocidental que, na realidade, é lésbica.66 Chegando a Xangai em 1903, é óbvio que o problema de Denton não era apenas o da rapariga aceitar o dinheiro pelos seus favores mas, é claro, por ela ser chinesa.

No Séc. XIX, as melhores e mais desejadas pros-titutas chinesas tinham pés enfaixados e dizia-se que até os Manchus, cujas mulheres estavam proibidas de se enfaixar, visitavam as prostitutas Han subrepticiamente. Só as classes de mulheres muito baixas tinham pés nor-mais e apenas os desesperadamente pobres aceitavam uma prostituta de pés não enfaixados. Levy tem foto-grafias de algumas das mais famosas prostitutas res-peitadas pelos seus pés pequenos. Bordéis com status suficiente para atrair os escritores aqui citados (masculi-nos) teriam tido prostitutas de classe superior com pés enfaixados, embora "marinheiros vulgares" e outros da mesma espécie conseguissem encontrar prostitutas de classes baixas com pés normais, nas docas e nos bairros pobres que frequentavam. De qualquer modo, os homens ocidentais tinham um grande sentido de classe e a classe média dificilmente teria querido ter relações com as que (até) os Chineses evitavam. Isto é mais uma indicação do porquê do homem vitoriano parecer não ter tido um interesse lúdico pelas senhoras chinesas, como sem dú-vida muitos tiveram pelas mulheres árabes e indianas. Na China, teria sido necessário ter relações com as clas--ses mais baixas e grosseiras para encontrar uma mulher de pés normais.67

Com a mudança da própria sociedade chinesa, a seguir à queda dos Qing (Manchu) em 1911, as mulheres chinesas tiveram que mudar para além do que se podia imaginar, para se ajustar à nova visão da China. Não podemos deixar de conjecturar sobre a drástica alteração por que tiveram que passar os homens chineses no as-pecto sexual -- uma verdadeira revolução sexual. Parece haver um ponto comum na maioria das culturas ociden-tais, que levou a um ideal feminino baseado na fragili-dade, vulnerabilidade e dependência (nos tempos actuais isto, sem dúvida, foi alterado). Quanto maior lazer um homem pudesse proporcionar à sua mulher, mais aberta-mente ela atestava este ideal e mais manifesta era a sua masculinidade. Na China, esta vulnerabilidade, fragili-dade e dependência eram levadas a um grau extra-ordinário através da relativa imobilidade da mulher, de-pendente dos seus pés.68 Presumivelmente, para o ho-mem chinês isto também fazia parte da atracção sexual. Não há dúvida de que a mulher, cujos pés pudessem caber na palma da mão de um homem, era frágil e vul-nerável. Como podia uma mulher escapar a investidas não desejadas se mal podia andar e muito menos correr? Também nos devemos lembrar que as imagens eróticas modernas incluem normalmente mulheres calçando sal-tos altíssimos -- mesmo quando não têm nada vestido. Normalmente, fotógrafos de erotismo não retratam as mulheres com botas do Dr. Martins. Fugir de saltos altos é difícil, mas a bota do Dr. Martins pode dar um forte pontapé, mesmo quando usada por uma senhora quase sem roupa, não tendo assim nenhum atractivo como acessório excitante, excepto para os adeptos do S. M. [Nota do tradutor: Sadomasoquismo].

Em termos da manipulação física da forma femi-nina, não deixava de haver um paralelismo entre a força fenomenal dos pés de lótus e os padrões estéticos oci-dentais. A visão ocidental realçava os traseiros e o peito, socorrendo-se de várias formas de espartilhar (depen-dendo da moda) através do século, enquanto que no ideal chinês o andar dos pés pequenos contribuíam (mais sub-tilmente) para enfatizar as ancas e o peito.

Tal como os excertos mostram, os escritores oci-dentais nunca apreciaram a beleza das mulheres chine-sas. Não é de admirar, portanto, que os elementos eróti-cos chineses não fossem atraentes. Na verdade, o enfai-xamento dos pés podia ser utilizado em qualquer disser-tação e foi para "evidenciar" a superioridade ocidental sobre o Chinês. Os reformadores chineses tinham tanta consciência desta arma dos ocidentais, que os revolu-cionários acabaram por voltá-la contra o seu próprio povo para conseguirem mudanças que, acreditavam eles, trariam força à nação. A imagem da mulher tinha de mudar. Teria de deixar de ser fraca, vulnerável, um belo ornamento cambaleando sobre os seus pés de lótus den-tro de impraticáveis sapatos de seda. Tinham de lhe reti-rar o "barbarismo" e dependência e de tomar o seu lugar na sociedade sem o suporte da ama ou da tradição. Tinha de aceitar as responsabilidades, de ser metaforicamente independente, bem como fisicamente. A fraqueza e debi-lidade dos pés-lótus correspondiam à fraqueza e debili-dade da China, incapaz de repudiar o domínio ocidental.

A par da determinação ocidental de relegar os Chineses para uma posição inferior entre as raças hu-manas, a visão ocidental das mulheres chinesas como parceiras sexuais totalmente inaceitáveis visava protegê-las das investidas, muitas vezes indesejadas e aviltantes, do homem ocidental. Contrariamente às suas irmãs colo-nizadas de outras partes do mundo, a mulher chinesa pouco tinha a recear do libidinoso ocidental -- não era com ela que ele sonhava, nem era sobre ela que recaía o seu desejo. Esse elogio duvidoso só lhes foi concedido depois de os pés serem, no Séc. XX, "libertados". Só então as mulheres chinesas se juntaram às fileiras das suas irmãs "orientais", como objectos estereotipados da imaginação do homem ocidental.

Como acima se demonstra, o que numa socie-dade era sexualmente atraente, na outra era o oposto. Além de que as duas "modas" femininas eram incó-modas mas, enquanto que as implicações do enfaixa-mento dos pés eram menos nocivas para a saúde da mu-lher do que as do espartilhar, o enfaixar dos pés, pela sua mutilação, parecia mais horrendo aos ocidentais. Ambas as modas tinham como efeito manter a mulher no seu lugar; sob o controlo dos homens. No entanto, temos que reconhecer que muitas mulheres conspiraram para manter o que elas achavam ser a confirmação e o suporte do seu status na comunidade. Em ambas as sociedades, os reformadores lutaram por mudanças na posição e papel da mulher, o que levaria a uma maior participação na vida fora de casa. Movimentos para conseguir roupas e calçado menos apertados foram uma constante inevitável e de certo bem recebida, tanto por homens como mulheres de mentalidade avançada. Podemos acrescentar que os legisladores chineses deste século foram tão obstinados como os do Ocidente, ao chamarem a atenção para a posição e os direitos das mulheres. No entanto, apesar dos grandes avanços, mu-dar a posição das massas populacionais é, em qualquer nação, um processo lento e penoso e ainda não há ne-nhuma onde todas as mulheres tenham as mesmas po-sições que os homens.

Traduzido do original inglês por Graça Sampaio Nunes.

NOTAS

1 É claro que ela não se encontrava só, mas os seus compa-nheiros e guias não eram homens da sua raça, não estando por isso sujeitos aos códigos sociais a que ela estava habituada.

2 HUMPHREYS, Manners for women, London, 1897, pp.61-2. Mrs. Humphreys também escreveu Manners for men.

3 WILLET, C.; CUNNINGTON, Phillis, The history of underclothes, London, Michael Joseph, 1951, pp. 117-8. É de notar não apenas o recato do eufemismo, mas a horrenda perspectiva, para nós, de comprimir o ventre.

4 KUNZLE, David, Dress reform as antifeminism: a response to Helene E. Roberts's 'The exquisite slave; the role of clothes in the making of the Victorian woman', "Signs", Spring 1977, p. 570.

5 ROBERTS, Helene E., The exquisite slave; the role of clothes in the making ofthe Victorian woman, "Signs", Spring 1977, pp. 558-9

6 Id., p. 565.

7 KUNZLE, op. cit., p. 572.

8 Id., p. 577.

9 Id., p. 579.

10 CAPELIN, Roxey Ann, Health and beauty or corsets and clothing constructed in accordance with the physiological laws ofthe human body, London, Darton, [s. d.], p. IX.

11 BISHOP, Isabella, The Yang-tze valley and beyond, London, John Murray, 1899, p. 242.

12 Ibd., ibid.

13 Ibd., ibid. Em 1575, as autoridades de Fuquiém convi-daram uma missão de Agostinhos Espanhóis para ir à sua Província. Embora só lá tenham ficado um mês, recolheram 300 volumes de tra-balhos sobre ervas, farmácia e botânica que eram altamente avança-dos quando comparados com os dos estudos ocidentais. A ordem con-tinuou, sem êxito, a penetrar na China e chegou até Cantão em 1579, de onde foram expulsos dois meses depois. Depois disso, os Jesuítas, que estavam em Macau desde 1560, abandonaram a China. As suas tentativas também falharam redondamente, muito trabalho e anos de devoção resultaram em muito poucas verdadeiras conversões. Em 1577, Alessandre Valignano, Director Geral, chegou a Macau e trouxe a inspiração; deu ordens aos Jesuítas para se "achinesarem". A partir de então, através dos estudos e do respeito pela cultura chinesa, fize- ram progressos enormes e até acabaram por ganhar os favores Imperiais.

14 MATIGNON, J., La Chine hermetique, Lyons, 1899, p. 236.

15 DOOL1TTLE, Justus, Social life of the Chinese, London, Sampson, Low and Marston, 1866, vol. 2, pp. 202-3.

16 HEADLAND, I. T., Court life in China, New York, Fleming H. Revell, 1909, pp. 105-6.

17 WILLIAMS, Samuel Wells, The Middle Kingdom, New York, John Wiley, 1871, p. 41.

18 HUMPHREYS, op. cit., pp. 62-3.

19 LOCKHART, William, The medical missionary in China: a narrative of twenty years experience, London, Hurst and Blackett, 1861, p. 334.

20 GUTZLAFF, Charles, China opened, London, Smith Elder, 1838, vol. 1, p. 480.

21 Zenana, usado em Indiano e Persa, refere-se a uma parte da casa especialmente reservada às mulheres na Índia e no Irão. Miss Cumming está a dizer que as senhoras chinesas da classe alta são si-milarmente mantidas em reclusão.

22 CUMMING, Constance F. Gordon, Wanderings in China, London, William Blackwood, [ca. 1886], p. 65.

23 BISHOP, The Golden Chersonese and the way thither, London, John Murray, 1883; reimpresso em Singapura, Oxford University Press, 1990, p. 66.

24 COLQUHOUN, Archibald, Across Chryse, London, Sampson, Low, Marston, Searle and Rivington, 1883, p. 205.

25 BISHOP, op. cit., 1899, pp. 240-1.

26 NICHOLS, F. H., Through hidden Shensi, London, George Newnes, 1902, p. 134.

27 MACGOWAN, John, How England saved China, London, T. Fisher Unwin, 1913, pp. 24-7.

28 Doré também atesta a prática da noiva ser injuriada no dia do seu casamento: "Começa agora uma abominável cerimónia co-nhecida pelo nome de Nao sinfang, ou seja, obscenidade, com toda a grosseria possível deste mundo. Durante três dias e noites, podem todos entrar para ver a noiva e fazer as observações mais imperti-nentes." Cf. DORÉ, Henry, Chinese customs, Singapore, Graham Brash, 1987, p. 57.

29 GAUNT, Mary, A woman in China, London, T. Wamer Laurie, [s. d.], pp. 173-4.

30 GUTZLAFF, op. cit., p. 490.

31 COLQUHOUN, op. cit., p. 162.

32 ld., p. 205.

33 JACK, R. Logan, The black blocks of China, London, Edward Amold, 1904, p. 251.

34 GAUNT, op. cit., p. p.168.

35 Id., p. 170.

36 Id., pp. 170-1.

37 HEADLAND, Our little Chinese cousin, 14th ed., Boston, Page, 1920, Introdução.

38 Id., p. 23.

39 O Nu erh ching [ou Clássico para raparigas] era um livro de estudo feito para as raparigas aprenderem de cor atitudes correctas e comportamento. Tendo tido a sua origem por volta do Séc. X, estas colecções de homílias não são atribuídas a nenhum autor, mas podem ter sido feitas por professores da aldeia ou por preceptores, para guia das suas alunas que, ao contrário dos rapazes, não iam à escola nem recebiam uma educação formal. Headland dá uma tradução completa do Nu erh ching em Home life in China.

40 HEADLAND, op. cit., 1920, pp. 81-7.

41 Ver, por exemplo, SMITH, F. Barry, Sexuality in Britain, 1800-1900: some suggested revisions, in VICINUS, Martha, ed., A widening sphere, Indiana University Press, 1977.

42 VAN GULIK, R. H., Sexual life in ancient China. Netherlands, E. J. Brill, 1961, Prefácio.

43 Id., p. 218.

44 Id., p. 332.

45 LEVY, Howard, Chinese footbinding: the history of a curi-ous erotic custom, New York, Walton Rawls, 1966.

46 CHEN, Jerome, China and the West, Indiana University Press, 1979, p. 40.

47 PFEIFFER, Ida, A lady's voyage around the world, London, Longman, Brown, Green and Longmans, 1851; London, Century Hutchinson, 1988, p. 26.

48 FORBES, F. E., Five years in China, London, Richard Bentley, 1848, p. 270.

49 Classificação do Oriental na mente ocidental in SAID, Edward, Orientalism, New York, Pantheon, 1979.

50 WILLIAMS, op. cit, vol. 2, p. 40.

51 LITTLE, Alicia, Intimate China, London, Hutchinson, 1899, pp.91,93.

52 CUMMING, op. cit., p. 65.

53 Um li é cerca de um terço de milha.

54 BISHOP, op. cit., 1899, p. 240.

55 JACK, op. cit., p. 250.

56 MACGOWAN, Sidelights on Chinese life, London, Kegan Paul, Trench Truber, 1907, p. 61.

57 MACGOWAN, op. cit., 1913, p. 21.

58 GAUNT, op. cit., p. 169. No texto, Miss Gaunt refere ter começado a sua viagem em 1913.

59 COULING, Samuel, Encyclopaedia Sinica, Shangai, Kelly andWalsh, 1917, p. 186.

60 WILLIAMS, op. cit., p. 41.

61 DOUGLAS, Robert K., China, London, Society for Promoting Christian Knowledge, 1882, pp. 124-5.

62 COLQUHOUN, op. cit., p. 205.

63 BISHOP, op. cit., 1990, p. 66.

64 GAUNT, op. cit., pp. 173-4.

65 MASON, Richard, The world of Suzie Wong, London, Collins, 1957.

66 NEW, Christopher, Shanghai, London, Macdonald, 1985.

67 Contudo, é de notar que as mulheres Manchus não enfaixavam os pés e que se presume que algumas delas se prosti-tuiam. Isto requer um estudo separado. Nos trabalhos que aqui foram referidos, as mulheres Manchus, apesar de terem os pés normais, não são retratadas como sendo mais atraentes do que as Han.68 Quanto mais pequenos eram os pés da mulher, mais difí-cil lhe era trabalhar até mesmo em casa, confirmando a riqueza do marido.

*Professora adjunta da Faculdade de Ciências Sociais e Humanidades, Universidade de Macau; foi a primeira pessoa a obter o grau de Doutor nesta mesma Universidade com a tese Nineteenth century representations of footbinding to the English reading public.

desde a p. 53
até a p.