Figuras no Oriente

D. Inácio Sarmento de Carvalho

P.e Manuel Teixeirae Manuel Teixeira*

Nasceu em Macau aí por 1616, sendo filho de Lopo Sarmento de Carvalho e de Maria Cerqueira, neto paterno de Lopo Rodrigues de Carvalho e materno de Jorge Cerqueira e de Maria Pires. D. Inácio casou com D. Maria do Couto, de quem teve uma filha, D. Ana Sarmento.

D. Inácio Sarmento assentou praça em Fevereiro de 1636; em 1642, estava prisioneiro dos holandeses em Galle, na ilha de Ceilão, sendo resgatado por seu pai, no ano seguinte, com avultada soma.

Nesse ano de 1643, a 11 de Maio, tomou parte na batalha em que os holandeses foram derrotados na aldeia de Couraça, em Ceilão, sendo os nossos comandados por António da Mota. Continuou a combater nessa ilha até Janeiro de 1645, em que foram assinadas as tréguas de 10 anos entre Portugal e a Holanda.

Em 1645, voltou a Macau, onde faleceu seu pai. Dada a decadência económica e política da colónia, partiu com a família para a índia, a 20 de Dezembro desse ano, na frota de oito velas sob o comando de António Fialho Ferreira. Ali residiu até 1655; nesse ano foi seu irmão Domingos morto na rota de Paniture, em Ceilão; seu irmão José tinha falecido na batalha de Tribuna, na mesma ilha, em 1654.

Em 1655, foi nomeado Governador e Capitão-Geral de Diu, que se achava decadente devido às extorsões do seu antecessor; durante o seu triénio portou-se de tal modo que os Baneanes agradeceram ao Governador Geral da índia, dizendo que se não fora para lá D. Inácio, eles teriam fugido dali para Mogor.

Em Agosto de 1658, foi nomeado Capitão-Geral da Armada e da Costa do Norte, na qual armada lutava outro valente macaense, Urbano Fialho Ferreira.

Depois de tomarem Colombo em 1656 e Jafnapatão em 1658, os holandeses apoderaram-se de Coulão, na índia, e ameaçavam Cochim e Goa, bloqueando os seus portos. Foi então que, em 1659, os Governadores da índia, Francisco de Melo e Castro e António de Sousa Coutinho, nomearam D. Inácio General da Armada, dando-lhe o posto de Capitão-Geral de Mar e Terra no Sul. Chegando a Cochim, tomou posse do governo das mãos do moribundo arcebispo de Cranganor, D. Francisco Garcia Mendes, S. J., que faleceu a 3 de Setembro de 1659 com 81 anos de idade. Ordenou logo uma expedição, que retomou Coulão e outros lugares tomados pelos holandeses em 1658; e atacou o Samorim de Calicute, aliado dos holandeses, to-mando-lhe o porto de Aycota e obrigando-o a expulsar os holandeses das suas terras em troca deste mesmo porto.

Em 10 de Dezembro de 1661, Coulão foi retomada por uma armada holandesa de 23 velas e 4.109 soldados, sob o comando do General Rijkloff van Goens, o conquistador de Jafnapatão em 1658; mas pouco depois D. Inácio retomava Cranganor, perdendo neste assalto a vida o heróico Urbano Fialho.

Cochim ficou isolada; e, em 2 de Fevereiro de 1662, os holandeses desembarcaram na praia, bloqueando a cidade; mas D. Inácio opôs tal resistência que eles se viram obrigados a retirar com grandes perdas. Para se vingarem desta derrota, prepararam em Batávia uma armada de 22 naus de alto bordo, equipada com mais de 3.000 homens e um grande trem de artilharia de Ceilão. D. Inácio resistiu 5 meses sozinho a todos os assaltos, mas a cidade capitulou a 6 de Janeiro de 1663 sob condições honrosas. D. Inácio pôde sair com 59 escravos e criados. Foi logo nomeado Capitão de Goa e Conselheiro do Estado da índia, servindo dois anos neste cargo. Em Maio de 1665, foi nomeado Capitão-Geral das Fortalezas do Norte, com poderes de Vice-Rei. Em 1667, Capitão-Geral de Moçambique.

Voltando a Goa, foi assassinado em 1767 pelo seu genro, João Correia de Sá, casado com sua filha D. Ana Sarmento, o qual vivia em sua casa.

ESCLARECENDO UMA DÚVIDA

Em 1940 C. R. Boxer publicou em Macau um opúsculo intitulado: Breve relação da vida e feitos de Lopo e Inácio Sarmento de Carvalho, grandes Capitães que no século XVII honraram Portugal no Oriente.

A págs. 27, escreve Boxer acerca de Inácio Sarmento: "Em 1642 achamo-lo prisioneiro dos holandeses em Ceilão, e um documento coevo holandês informa-nos que estes pediram um avultado resgate pelo filho do velho Lopo Sarmento".

Não consta do documento, se Inácio Sarmento foi aprisionado na guerra de Ceilão (onde os holandeses tomaram as fortalezas de Negumbo e Galle em 1640) se em qualquer outro local. Talvez o tenha sido em Malaca.

O cronista minucioso das guerras de Ceilão, o Padre Jesuíta Fernão de Queiroz, também não faz a mínima referência ao local ou à ocasião em que foi feito cativo; e por isso julgamos que talvez não o tivesse sido em Ceilão, mas sim em Malaca ou em qualquer navio no mar.

Seja como fôr, a primeira notícia certa que alcançamos disso, mostra--nos que estava em Galle no começo de 1643, no tempo em que o Governador holandês, Jan Thyssen, preparava uma expedição contra o arraial português sob o comando de António da Mota que dominou as terras vizinhas. Segundo o Padre Fernão de Queiroz, o intento de Jan Thyssen era tomar os portugueses desprevenidos no sítio da aldeia de Couraça e acrescenta: "Achava-se nesta ocasião em Galle Ignacio Sarmento de Carvalho; e penetrando estas traças, por mais que João Matheus (aliás Thyssen) fez pelo divertir, veyo a toda a pressa fazer avi-zo, e assistir no encontro ao Capitão--mor, com quem também se achou Lourenço Ferreyra de Brito, e ambos com as armas, conselho, e experiência, forão muita parte da vitoria que se conseguio".

Dos termos empregados pelo Padre Fernão de Queiroz se conclui que Inácio Sarmento, embora estivesse ainda em Galle, já não era prisioneiro dos holandeses, tendo pago o resgate; porque de outra maneira o Governador holandês não se ocuparia em diverti-lo quando estava em seu poder prendê-lo.

Assim foi que este Macaense ilustre pôde participar, com muito crédito seu, na vitória da aldeia da Couraça ganha aos holandeses em 11 de Maio de 1643.

Vamos nós esclarecer esta dúvida.

MALACA CERCADA PEDE AUXÍLIO A MACAU

O Governador holandês de Batá-via, Anthony van Diemen, começou os preparativos para a expedição contra Malaca em 1639.

A 20 de Maio do ano seguinte, o comandante Adriaan Antoniszoon partiu de Batávia, chegando a Malaca em princípios de Junho. Com os navios que se lhe juntaram e com a armada de Johore que chegou ali em Julho, as forças elevaram-se a 3.000 e ele pôs cerco à cidade.

Malaca pediu auxílio a Macau. Reuniu-se o Senado para tratar do assunto.

"Este o termo que se fez sobre o cazo de Malaca, o Anno de 1640: Aos nove dias do mes de Agosto, de mil, e seiscentos, e quarenta annos, nesta Cidade do nome de Deos da China, estando na Caza da Camara della, juntos os Juízes ordinarios, António Varella, e Jorge Pinto de Azevedo, e os Vereadores Simão Velho Barreto, e Fernão Barreto de Almeida, e Manoel de Magalhães Coutinho, e o Procurador della António Ribeiro Raya, e bem assim o povo junto, que à dita caza da Câmara foi chamado, logo pello Vereador do meyo Fernão Barreto de Almeida, lhe foi dito, e proposto, em como tinhão cartas do Geral de Malaca, e da Câmara della, nas quaes com muita clareza manifestão quanto arriscada fica aquella Fortaleza de S. Mag. a ser tomada, por quanto tinhão já, havia sincoenta dias hum cerco de doze naos holandezas, e certos avizos, de que havião de vir mais, com poderosa armada del Rey de Achem, e a dita Fortaleza não tinha mantimentos, e poucas monições, pello que vissem suas merces a importância, e calidade do dito socorro, e se convinha se secor-resse a dita Fortaleza, e por todos juntos foi respondido, e cada hum ensolido, que era justo, e mui necessário, e que effectivamente se secorresse, e que para os gastos do dito socorro, se fossem chamando todos os moradores, e cidadaons que faltavão, e lhe pedissem a cada hum que podesse dar voluntariamente, e ajuntando se cabedal suficiente para mandar o dito socorro, o mandassem por conta desta cidade, a entregar nos almage's (aliás armazens) daquella Fortaleza para o bem comum della, de que este povo fazia serviço a S. Mag.e; e de como assim o assentarão, mandarão fazer este termo, em que todos se assinarão com os ditos officiais da Cidade, comigo Domingos de Abreu, Tabellião publico das notas, e Escrivão da Camara, que ao prezente sirvo, por auzencia de Simão Vaz de Paiva, que o escrevi".

Seguem-se as assinaturas.

INÁCIO VAI-SE METER NA BOCA DO LOBO

Em face deste S. O. S. urgentíssimo, que fez Macau?

Aquilo que humanamente era possível fazer.

Macau devia ao Japão perto de 400.000 taéis. A 18 de Maio de 1640, o Senado pediu 6.000 taéis de empréstimo aos mandarins, penhores e créditos da cidade para enviar uma embaixada ao Japão, a tentar reabrir o comércio com esse país que fora interrompido no ano anterior.

A 22 de Junho de 1640, partiu de Macau, num barco bem armado, uma expedição de 74 pessoas, entre as quais 4 embaixadores: o secretário da Câmara, Simão Vaz de Paiva, Luís Pais de Pacheco, Rodrigo Sanches de Pa-redes e Gonçalo Monteiro de Carvalho.

Macau, que dependia do comércio do Japão para a sua subsistência, estava inteiramente esgotado de meios.

A 3 de Agosto de 1640, foram degolados em Nagasáqui 61 membros dessa expedição, incluindo os 4 embaixadores.

Quando, a 9 desse mesmo mês, se reuniu o Senado para deliberar sobre o auxílio a Malaca, Macau nada sabia desta tragédia.

E que fez Macau? Fez das tripas coração e mandou o socorro pedido; o herói desta expedição foi Inácio Lopo de Carvalho.

Um dos que foram nessa expedição foi o dominicano espanhol, p. ē Fr. Juan Bautista de Morales, que deixou uma relação dessa viagem muito pormenorizada.

O p. ē Fr. José Maria González, O. P., dá o resumo dessa viagem e conta o que sucedeu a Inácio, que ficou prisioneiro dos holandeses em Malaca. Diz ele acerca do P. ē Morales: "Sucedeu que, tendo passado já quatro meses em Macau, à espera de embarcação para a índia, chegou uma nau portuguesa com Embaixador para o Japão (1);

Esta notícia causou grande alvoroço em Macau. Decididos os portugueses a ir em socorro daquela praça com oito choosdoze dizem outros historiadores -, com soldados, víveres e munições, tiveram várias juntas. Mas, chegando ao ponto de quem havia de ir à frente dessa esquadra, dividiram-se os pareceres e com tanta animosidade, que se desfez o patriótico projecto. Em vista disto, um português rico e patrotia, armou duas embarcações à sua custa, nomeando para Chefe delas um filho seu muito valoroso, chamado Inácio Sarmento, como já se disse... " (2)

A 11 de Outubro de 1640 Inácio Sarmento fez-se à vela, levando a bordo o p. ē Morales, O. P., e o seu criado chinês, Pedro da Cruz. Demos a palavra ao P. ē Morales.

"Fizemo-nos à vela num sábado ao meio dia; e viagem, que era de 15 dias, levou dois meses. Tivemos uma tormenta durante dois dias junto à terra; e aqui uma das embarcações foi correndo a costa até parar em Macas-sar; e aquela, em que ia eu, este, até passar a tormenta, segurada com duas ou três amarras, com perigo de nos perdermos em terra e nos afogarmos.

"Foi Deus servido tirar-nos daquelas angústias.

"Finalmente, como pudemos, chegámos a Malaca sábado, à meia noite; bem prevenidos e em pé de guerra, e todos confessados; que se aquela noite nos sentissem os inimigos, Fr. João Baptista iria cear com eles.

"Estava a cidade cercada por mar com 22 naus e 300 embarcações de malaios. Por terra, com duas trincheiras e dez peças de bater em fundo. E, além disso, 12 ou 20 lanchas dos holandeses.

"Fomos entrando com todo recato para não ser sentidos; mas, para nos desviarmos das naus, chegámos tanto a terra, que a embarcação varou e não quis sair dali. Estava a três quartos de légua dos muros de Malaca.

"Perturbado o Capitão português, aconselhei-o a enviar à cidade a chalupa a dar recado ao Capitão-Geral para que desse algum remédio antes de amanhecer. Eu entrei nesta chalupa na cidade com dois soldados e os remadores.

"Não se lhes pôde acudir. E assim, Domingo, ao amanhecer, os portugueses deitaram fogo à sua embarcação e ficaram todos cativos dos holandeses". (3)

Daqui se vê que Inácio Sarmento foi preso em Malaca. Macau mandou dois barcos contra uma esquadra europeia de 22 naus e 20 lanchas, coadjuvadas por 300 embarcações ma-laias. Um dos barcos portugueses foi parar a Macaçar e só um chegou a Malaca.

Perante todo aquele poderio, Inácio não retrocedeu e só não furou o cerco por mero azar.

No entanto, não deixou nada em poder do inimigo: meteu-se na chalupa com a tripulação e os soldados e deitou fogo à embarcação com as provisões, a pólvora e as peças.

Foi assim que ele caiu em poder dos holandeses.

NOTAS

(1) P. ē González engana-se: o Cap. Gonçalo de Siqueira de Sousa foi nomeado embaixador em Dezembro de 1643, dois anos após a queda de Malaca e só chegou a Macau em fins de Maio de 1645. (Cf. C. R. Boxer, The Embassy of Captain Gonçalo de Siqueira de Souza to Japan in 1644-7, Macau, 1936).

A noticia do cerco de Malaca foi levada a Macau e a Goa por barcos de Malaca.

(2) José Maria González, O. P., Historia de las Missiones Dominicanas de China, vol. l, p. 234.

(3) Relação do p. ē Morales, citada pelo p. ē José Maria González, cit., p. 236.

*Laureado historiador de Macau, da presença de Portugal e da Igreja no Oriente, com mais de uma centena de títulos publicados. Membro da Academia Portuguesa de História e de várias associações e insti- tuições internacionais, v. g. a Associação Internacional dos Historiadores da Ásia.

desde a p. 109
até a p.