Antropologia

MACAU E O"FENG-SHUI"

Luís Ortet*

Do ponto de vista das crenças do feng-shui, associadas a outros elementos míticos, Macau é uma terra benéfica.

Conhecida como lin fa tei, a «terra do lótus», deve em grande parte à protecção da deusa Kun Iam o que tem de bom. Com efeito, ouvimos do geo-mante Luk Ku Lou Si a tese de que Kun Iam, que se senta sobre uma flor de lótus e gosta do que é brando e macio, vê em Macau um lugar de eleição dada a grande intimidade entre a península e a água e o lodo. Por outro lado, ainda segundo o geomante, Macau beneficia da «veia do dragão» que desce de Chung Sán, na República Popular da China, e concentra o principal da sua força na zona onde se situa o templo de Má-Kok.

Todos os lugares do mundo, e sobretudo os bafejados pelas boas influências, têm o seu dragão.

No caso de Macau, o escritor macaense Luís Gonzaga Gomes cita na sua obra vários exemplos, mas o que surge como o mais significativo dragão do enclave administrado pelos portugueses, desde há quatro séculos, é aquele cuja cabeça estava representada pela colina da Penha.

De acordo com a lenda descrita por Gonzaga Gomes o corpo do animal mítico estendia-se pela vizinha ilha chinesa da Lapa, descrevia em seguida um grande arco já dentro do continente chinês e pou sava a sua cauda junto às Portas do Cerco, no istmo a norte da península. Segundo o autor macaense o dragão tornou-se a dada altura quase moribundo, quando a abertura da Avenida Almeida Ribeiro, cujo traçado recto atravessou de um lado ao outro a península, actuou como uma espada decepando-lhe um membro. O animal mítico tornou-se, então, «incapaz já de cultivar as boas relações com outros dragões seus semelhantes». Mas, acrescenta, «há quem assevere que não obstante esse dragão encontrar-se moribundo, as suas pulsações são ainda sensíveis, sendo ainda capaz de, no seu estertor, soltar alguns arrancos, daqueles capazes de transformar a colónia em novo El Dorado».

Uma outra história contada por Luís Gonzaga Gomes é bem reveladora do modo como a mente popular vai «comentando» os mais ínfimos pormenores paisagísticos à sua volta.

Devido à crença no feng-shui, diz Gonzaga Gomes, durante muito tempo os chineses não se atreveram a residir na zona da cidade hoje conhecida como Avenida da República, uma marginal virada para a Ilha da Taipa e que se situa no prolongamento da Avenida da Praia Grande, que contorna a baía do mesmo nome.

Dizia-se, segundo o autor, que a prosperidade daquele local estava ameaçada por um suposto bico de galinha «constituído pela extremidade da pequena ponta de terra da fronteira Ilha da Taipa que, por ser algo prolongada e apresentar uma protuberância no seu rugoso relevo, faz lembrar o colo distendido de um galináceo». E, prossegue Luís Gonzaga Gomes, «se tal bico de galinha estivesse revizado para outra banda, bem estava. Infelizmente não era isso que acontecia. O obnóxio bico estava ominosamente assestado em direcção da Avenida da República ameaçando reduzir até à extrema inópia o indivíduo que ousasse residir em tal sítio, pois quaisquer riquezas que este possuísse seriam inexo ravelmente debicadas, aos poucos».

Então, foi colocada no sopé da colina da Pe nha, junto à marginal, uma estatueta da deusa Kun Iam «na esperança de impedir, com o seu manto, quaisquer malignas influências daquele nefasto bico de galinha». Mas, para reforçar a resposta à «agres são vinda da Taipa, a população descobriu que a parte da colina da Penha que fica voltada para a Taipa se parecia com a cabeça de um leão. E, para dar vida ao animal adormecido, foram colocadas na vertente da colina duas lâmpadas que simulavam os dois olhos do felino».

«Dizem que foi desde então que o sítio da Avenida da República se tornou habitável», conclui o escritor macaense.

O MUNDO DE YIN CHAI

Para os chineses, e sobretudo para os mestres e os crentes da arte do feng-shui, a morte e a vida são apenas duas facetas de uma mesma realidade.

Yin chai é o mundo invisível e nocturno dos mortos em relação com o princípio feminino yin. E yang chai reflecte a realidade de todos os dias do mundo dos vivos.

Mas são igualmente importantes e completam-se. De um certo ponto de vista, até, o mundo de yin chai poderia ser considerado o decisivo pois que o modo como «vivem» os antepassados, a boa ou má situação das suas novas moradas, condiciona a vida, «neste mundo», dos seus descendentes.

Uma vez mais é o equilíbrio entre dois princípios e duas vivências complementares: o yin e o yang, a mulher e o homem, a noite e o dia, a morte e a vida...

O culto dos antepassados surge, assim, como uma atitude que não vê no «além» um mundo distante e afastado do aqui e agora mas, pelo contrário, apenas uma outra faceta, oculta, dos acontecimentos nesta travessia da vida: a explicação para uma misteriosa sucessão de doenças em membros da família poderá encontrar-se em desarmonias no mundo do yin chai.

Não admira, pois, o que se conta sobre o maior cemitério de Macau, conhecido como o cemitério tauísta da Taipa, situado na encosta junto ao novo aterro do Pac On.

Construído em finais da década de 70, a sua gestão foi entregue a uma próspera empresa, a Associação Confucionista, Budista e Tauísta, que hoje vende a peso de ouro os disputados espaços da sua vasta mas já quase superlotada área. Campas. de dois metros por um podem custar entre vinte e trinta mil patacas, segundo nos confirmaram pessoas ligadas ao cemitério, mas os preços chegam a ascender às duas ou três centenas de milhares de patacas para as sepulturas das famílias mais abastadas. Muitas famílias de Hong Kong têm escolhido o cemitério da Taipa para aí depositarem os restos mortais dos seus antepassados, fazendo, para isso, deslocar previamente ao local mestres de feng-shui que escolhem a melhor localização para as sepulturas.

O prestígio do cemitério parece decorrer de vários factores, incluindo o facto de as famílias que adquirem a sua porção de terreno o fazerem, de certo modo, perpetuamente, não sendo obrigadas ao levantamento das ossadas.

A explicação para a alta cotação do cemitério é relativamente fácil de compreender para quem tenha conhecimento dos princípios gerais do feng-shui.

Com efeito, a vasta área do cemitério ocupa um declive regular que desce até ao mar (agora, de facto, até ao novo aterro, recentemente construído - o aterro do Pac On), olhando a direcção este; isto é, protegido, por detrás, por uma colina (a mitologia popular afirma que isso representa um descanso, uma espécie de almofada para a cabeça), permitindo uma agradável vista para o mar (os chineses supersticiosos consideram até positivo que os pés descansem em contacto com a água...) e orientado para uma direcção favorável...

O FENG-SHUI DO HOTEL-CASINO

O casino do Hotel Lisboa não é só o mais conhecido de Macau, famoso em todo o Sudeste asiático e no mundo do jogo: ele é o destino preferencial dos milhões de jogadores que anualmente atravessam o Rio das Pérolas, provenientes de Hong Kong, para participarem na roleta da fortuna.

Naquele edifício, cujo corpo principal tem a forma de uma gaiola (como o reconhecem os canto-nenses ao chamarem-no de cheoc lung), circula diariamente muito do dinheiro de Macau.

O prestígio do Hotel Lisboa tem a ver também com as suas conotações geomânticas. Com um de- sign ímpar, irradia um encanto especial ao ocupar um dos vértices de um aterro que fechou parcialmente a Baía da Praia Grande.

Mais tarde, em 1974, seria inaugurada uma ponte com uma forma igualmente misteriosa, que serviu ainda mais para alimentar a imaginação popular e os seus mitos.

Porquê aquela forma particular do hotel? A resposta, fornece-a o proprietário de uma pequena ourivesaria situada no interior do próprio edifício. Actualmente com cerca de oitenta anos, ele é um dos mais conhecidos mestres da arte do feng-shui no delta do Rio das Pérolas.

O mestre Luk Ku explica aspectos do feng--shui do edifício que, desde a primeira pedra, foi concebido e erguido segundo os princípios da arte multimilenar.

O primeiro elemento da sua simbologia decorre da crença ou superstição de que a paronímia de duas palavras pode arrastar consigo a associação dos seus significados.

Felicidade, em cantonense, diz-se fuk. Por outro lado, a palavra morcego, no mesmo dialecto, pronuncia-se também fuk.

Daí a crença de que o quiróptero, com pouco lisonjeiras associações no Ocidente, simboliza a felicidade e o que a ela está ligado: o dinheiro.

As casas de penhores, por exemplo, que proliferam nas imediações do casino, adoptaram o mesmo animal para seu símbolo.

Segundo a descrição do mestre Luk Ku, a forma ondulante do alpendre da entrada principal do hotel não é ocasional. Pretende sugerir as asas do morcego e a sua boca aberta. É por aí que, de maneira natural, «entra» o dinheiro dos frequentadores da casa da jogo... e a riqueza da concessionária do casino.

Assim, a forma de gaiola do corpo principal do hotel visa reter os clientes do casino; mas apenas o tempo suficiente...

Por isso, as correntes que circundam a «gaiola», em torno do cilindro do corpo principal, não estão completamente fechadas... É que, segundo o mestre da geomancia, há que dar aos jogadores a liberdade de voltarem ao exterior para aí se reabastecerem de «notas frescas» e assim se iniciar um novo ciclo nesta «máquina de produzir dinheiro».

O "lanternim cósmico" sobre a torre principal do edifício do Hotel Lisboa.

Escadaria de acesso à porta principal do Hotel-Casino Lisboa, entrando sob o alpendre em forma de morcego de asas abertas.

De acordo com a mesma filosofia, a entrada do edifício de modo algum poderia sugerir, como se chegou a dizer, a forma de um tigre, animal maléfico, pois não há intenção de induzir o mal nos jogadores. Como diria Luk Ku «não se pretende a desgraça dos jogadores, mas apenas o seu dinheiro».

Outro dos elementos da simbologia do edifício decorre dos próprios princípios do feng-shui. A assimetria do conjunto pretende acompanhar a correspondência que é atribuída ao dragão verde - que domina os limites do edifício, situados à esquerda da entrada (à direita de quem entra) - enquanto o bloco à direita (à esquerda de quem entra), onde aliás se situa o casino, é dominado pelo tigre branco.

O dragão verde, associado ao ponto cardeal este, está conotado com o dia, o polo positivo, enquanto o tigre branco se associa ao ponto cardeal oeste, à noite e ao polo negativo.

Anúncio luminoso de uma casa de penhores, em Macau, utilizando a figura de um morcego, símbolo de sorte.

A nova ala do Hotel Lisboa, recentemente acrescentada ao conjunto original, foi construída no lado do casino, portanto, do tigre branco. Segundo o mestre Luk Ku, isso só poderá ser positivo, não perturbando o equilíbrio das forças «do vento e da água» do edifício.

UMA COBERTURA MULTICOLOR

Outra das histórias que se conta diz respeito a outro dos casinos do Território, por sinal bem situado, apenas a alguns metros do terminal marítimo por onde chegam os visitantes de Hong Kong.

Apesar de apresentar atractivos, como o jogo da pelota basca, o certo é que o Jai Alai nunca desfrutou da prosperidade do Hotel Lisboa. Pelo contrário, debateu-se, desde a sua criação, com problemas financeiros e de gestão, que aparentemente nunca foram completamente ultrapassados.

As especulações em torno da sua arquitectura, portanto, não se fizeram esperar.

Em primeiro lugar, a cobertura do edifício, aliás com uma forma peculiar, fazendo lembrar adagas, portanto de conotações agressivas, logo, nefastas, estava pintada de cor-de-rosa.

Ao fim de algum tempo, alguns acontecimentos negativos na vida da empresa terão levado a que alguém solicitasse o conselho de um mestre geo-mante, que foi de opinião de que o cor-de-rosa só poderia ter efeitos negativos uma vez que é a cor do caranguejo depois de morto, sugerindo, por isso, influências negativas.

Até que ponto a opinião do geomante terá sido seguida, é difícil de confirmar. O certo, porém, é que tempos depois o terraço do edifício mudava, uma primeira vez, de cor. Novas dificuldades, segundo se conta, e nova opinião do mestre de feng-shui. A cor escolhida levantava outro tipo de problemas do ponto de vista dos princípios geomânti-cos; teria, pois, que ser mudada, uma vez mais. Finalmente, a opção seguida foi contemporizadora e prática. A cobertura passou a ser multicolor...

Mais recentemente, visando provavelmente viabilizar a «boa sorte» do edifício, foi introduzida uma nova alteração arquitectónica, igualmente objecto de comentários na sempre atenta comunidade chinesa: a porta de entrada deixou de estar colocada no centro da fachada do edifício, sendo substituída por duas entradas situadas mais lateralmente e de tal maneira dissimuladas que, para quem se aproxime do casino pela primeira vez, elas não são imediatamente reconhecíveis.

A explicação popular para este tipo de expediente é a de que, deste modo, um «espírito hostil que se aproxime não encontra uma entrada desprevenida e desprotegida».

«EM ROMA SÊ ROMANO... »

Outras histórias são contadas pelos naturais e residentes de Macau. «Em Roma sê romano», disse--nos uma portuguesa radicada há vários anos no território de Macau, para explicar o facto de, progressivamente, se ter deixado impregnar pelas crenças populares chinesas. E como exemplo conta-nos um episódio em que essa assimilação se torna manifesta:

«Quando mudei de emprego, recentemente, fui trabalhar para um gabinete que tinha uma particularidade: todas as pessoas que lá trabalhavam tinham, anteriormente, tido problemas graves: ou tinham sido despedidas ou, na melhor das hipóteses, tinham-se dado mal e mudaram».

«Então, baseando-me nas crenças chinesas, decidi mudar a arrumação da sala. É que os chineses pensam que, se sucessivos ocupantes de um local sofrem «azares», isso pode querer dizer que ele tem «mau feng-shui».

Depois de consultar um mestre de feng-shui, que visitou o gabinete, a nova ocupante do gabinete procurou minorar as suas alegadas más influências. Qualquer bom observador com conhecimentos de feng-shui teria reparado que uma das janelas da sala se encontrava exactamente no enfiamento da ponte Nobre de Carvalho; isto é, a linha recta que ela representa aponta directamente para uma das janelas, por coincidência aquela junto da qual costumava ficar uma das secretárias.

Na sequência disso a janela passou a ficar com a cortina permanentemente corrida e a secretária foi mudada para um canto mais conveniente, de acordo com as recomendações do mestre geomante.

Por outro lado, o compartimento, decididamente com «mau feng-shui», segundo concluiu o geomante, tem também a particularidade de estar virado para o edifício do Hotel Lisboa que, alegada-mente, irradia más influências através das formas aguçadas da sua cúpula. «Todas as salas ou habitações que estão viradas para o hotel-casino são atingidas pela presença nociva do edifício», disse a nossa interlocutora, que acrescentou seguir a tradição chinesa de colocar espelhos com o objectivo de «reflectir» as más irradiações.

Outra das descobertas do mestre de feng-shui foi a de que num dos cantos da sala se situava o «canto do demónio», situação relativamente rara, já para não falar na existência de uma coluna, correspondendo a um dos pilares do edifício, o que é sempre visto com desagrado...

«Por isso», adiantou, «não deixei de ter alguns azares, apesar de todas estas precauções»...

Outra portuguesa radicada há muitos anos em Macau fala-nos dos tempos em que o seu apartamento se situava em frente de um dos templos de Macau, situação encarada como negativa pela superstição chinesa.

«A sala do meu apartamento tinha uma varanda que dava para o templo e a minha empregada chinesa, sempre que tinha de estender a roupa na varanda, descia até ao templo, onde fazia as suas rezas e colocava incenso junto aos leões que o guardavam».

Edifício do Jai Alai, com a cobertura de faixas multicores.

«A princípio não quis acreditar na superstição e divertia-me com a preocupação da empregada. Depois começaram a vir as complicações... »

E conta-nos os dois acidentes de viação que teve enquanto viveu naquele prédio e a tensão que a dominou durante o mesmo período de tempo, até sucumbir a um esgotamento nervoso.

Outra crença curiosa entre os chineses (e ocidentais...) mais supersticiosos é a de que ver um monge (um bonzo) dá azar... sobretudo quando se vai a caminho do casino.

Um estudioso das superstições chinesas apresentou-nos a sua interpretação: «é como se o bonzo, com a. sua santidade atraísse as boas graças dos deuses e criasse um vácuo à sua volta. Por outro lado, tendemos a invejar a sua pureza e sentimo-nos culpados pelas nossas próprias fraquezas; daí os azares, sobretudo para quem precisa muito da sorte, como um jogador... ».

(Extracto do livro "As mil faces da Lua"- Ma-caueoFeng-Shui-de Luís Ortet; Ed. ICM, 1988).

*Jornalista profissional, residente em Macau desde 1982. Interessado no estudo das ciências dos fenómenos paranor- mais e das tradições esotéricas ocidentais e orientais, colaborou em diversas publicações da especialidade. Autor, sob o pseudónimo de Leonardo Oliveira, do livro "Iniciação à Astrologia" (Edições 70, 1980) e de "As mil faces da Lua-cren ças e superstições em Macau" (ICM, 1989).

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até a p.