História

OCAVALO NA ANTIGA CHINA HISTÓRIA, SIMBÓLICA E MITO
I O Cavalo na História

Luís Sá Cunha

A "GRANDE MURALHA" CONTRA O CAVALO

Omnipresente nas tradições e na história dos povos, o cavalo releva com seu perfil de bronze na longa crónica histórica da China. Com excepção do dragão, que é mítico, o cavalo é o animal mais eminente dentro do universo sínico.

Mítica e simbolicamente, também, ele assiste aos tempos primordiais da China antiquíssima, ao próprio génesis. Símbolo da pura potência masculina (Yang), ele antecede o dragão, sendo embora com este confundido depois, e por ele substituído, na evolução da complexa simbologia chinesa.

Popularmente, ainda hoje, ele é símbolo da velocidade, da perseverança, da imaginação, da juvenil energia.

Chama-se "potro de mil léguas" a um cha-valo na plena pujança das forças físicas e da vivacidade intelectual. O cavalo tem correspondência com o elemento Fogo e com o Sul. É um dos Sete Tesouros do Budismo,1 e a sétima das Doze Divisões Terrestres. Um dos doze signos do Zodíaco chinês, é patrono do Ano Lunar correspondente a este ano de 1990.

Historicamente, o cavalo marca tão profundamente o Império do Meio, que deixa para os milénios, na sua epiderme, a maior cicatriz terrena - a Grande Muralha.

Cedo consciente da sua superior civilização, agrária e pacífica, identificando-se na sá bia delicadeza dos rituais, mansa égua obediente aos sinais dos céus, a velha China vive o permanente sobressalto da ameaça bárbara à sua paz.

Centro do Mundo, circundam-na as "trevas exteriores", estepes inóspitas chicoteadas pelos ventos, coito de bárbaros, cenário eleito para cavalgadas de pastores e caçadores nóma das, que vivem a cavalo, desferem o arco sobre o cavalo, caçam a cavalo, atacam em cargas rá pidas de cavalaria, oram e sacrificam ao Deus dos Cavalos, são inumados com o cavalo.

O chinês tem, deste a segunda Dinastia (dos Shang-1765?-1122? A. C.) a tecnologia docarro, esse carro ligeiro que nos é mostrado nos esboços brevilíneos da época do Bronze, com a sua leve arquitectura a denunciar já o fino sentido estético que o chinês revela mesmo na dureza da guerra. Mas até na sua própria fábrica se projectam as regras simbólico-religiosas da cosmovisão chinesa: uma caixa quadrada (a Terra) encimada pela arquitectura abobadada da cobertura (o Céu), tudo movido pelo princípio ígneo (o Cavalo).

A questão é que os filhos de Noé tinham há muito sido expulsos do paraíso, e a vida da história era a da sobrevivência, da dureza, da cruência das guerras. Aqui por certo terá começado a apurar-se o consabido pragmatismo do espírito chinês.

A China, sedentarizada e civilizada nas cidades, estava cercada pela guerrilha impiedosa.

A estrutura clássica da defesa chinesa, baseada numa quadrícula de unidades sediadas em cidades e vilas muralhadas de diversas categorias ou ordens (como pode ainda apreciar-se na colecção de cartas das Províncias transmitidas pelo italiano Du Halde) era vulnerável à guerrilha dos bárbaros nómadas, temperados na aspereza da estepe, exímios cavaleiros e archeiros, e rapidíssimos nas incursões e nas retiradas sobre os pequenos póneis, esfumando-se logo entre torvelinhos de poeirada em direcção a paragens incertas, na maior impunidade.

Trono sagrado do Rei dos Cavalos (Má Wang) e do Rei dos Bois (N/u Wang). Exemplo das estampas populares usualmente afixadas nos estábulos e coudelarias para que, "da manjedoura venha a prosperidade". (In "L'imagerie populaire chinoise", Ed. Aurora, Leninegrado; Rep. Museu do Ermitério, Leninegrado).
A consciência desta situação deterá a China durante séculos e séculos sob o gume de um dilema, intermitentemente actualizado e enunciado: civilizar-se e perecer ou barbarizar-se e sobreviver. Ver-se-á que a China, resistindo sempre a ceder no campo cultural, irá gradualmente, lanceada por tantas feridas, "barbarizar-se" numa parte para continuar: os seus exércitos. A cavalaria bárbara tinha uma mobilidade de acção sobre todo o terreno, que muitas vezes os carros, trôpegos, não podiam acompanhar. Assim vão ascendendo, em importância e valor estratégicos, a cavalaria ligeira e o cavalo. O espírito dos povos chineses ante a incómoda circunstância reflecte-se evidentemente nalgumas pinturas desses tempos, em que os bárbaros surgem retratados com um humor que é a forma depreciativa da superioridade chinesa: nos trajes grosseiros, na expressão selvática, no nariz acentuadamente recurvado, no cenho hirsuto, na descompostura da pose. Noutras, ilustrativas de visitas de delegações bárbaras à corte, releva sempre, entre as ofertas diplomáticas de boa vizinhança, paz ou vassalagem, ocavalo, símbolo máximo desse penhor e presente apreciadíssimo. É claro que vinha de muito longe a história real do cavalo na China. Vários textos garantem a tradição, que Du Halde nos confirma, de que foi ainda nos tempos dos Três Augustos, os primeiros imperadores míticos, e concretamen-te o 3° imperador Huangdi, quem "inventou igualmente os carros, e mandou capturar os bois e os cavalos para os domesticar".3 Nesta perspectiva (a popular e prática da utilidade do animal doméstico no serviço do homem) é curioso assinalar que sempre o cavalo aparece associado ao boi; pelos séculos, o Deus dos Cavalos foi cultuado por chineses e bárbaros, aparecendo a sua imagem nas estampas propiciatórias, colocadas em templos e nos estábulos, para afastar doenças e espíritos nefastos dos animais: uma espécie de ogre com três olhos, pluribraquiado e brandindo armas de guerra, tendo aos pés um cavalo miniatural. Ao lado esquerdo, também sobre a manjedoura posta como um altar, é colocado o Rei das Vacas. O esforço tenaz pela melhoria da raça e da multiplicação dos cavalos será sempre, e durante muitos séculos, preocupação dos chineses, retomado de Dinastia em Dinastia.
Carta da China mostrando o traçado e evolução da Grande Muralha (Rep. "Les Chinois", Ob. cit.).
^^ CAVALARIA E IMPÉRIO Quando o jesuíta italiano J. Du Halde, muitos séculos mais tarde (Século XVIII) nos faz a "Descrição do Império da China e da Tar-tária Chinesa", pouco nos diz do nobre animal que, todavia, tinha sido durante dois milénios constante figurante e decisivo factor da longa história do Império do Meio. Por ele sabemos que na Província de "Se Tchuen" abundavam "cavalos muito procurados" por serem "pequenos, extremamente belos e vivos" e que na de "Yun-Nan" se viam "excelentes cavalos, na maioria de guerra, mas sólidos e vigorosos". Segundo o seu testemunho sobre as "terras dos Mongóis", "os cavalos e os cavalos selvagens abundam mais ainda a Oeste". Pelo seu relato, as "tropas ao longo da grande muralha, nas vilas e lugares muralhados eram outrora de 770mil soldados". E o Impera-dor mantinha igualmente a criação de "cerca de 565 mil cavalos para montadas de cavalaria, e para o serviço dos correios e estafetas, que levam as suas ordens e as dos tribunais pelas Províncias".5 Contudo, um rápido golpe de vista pela história chinesa permite verificar uma constante: os períodos de paz, de fundação ou estabilização de uma Dinastia, numa palavra, a instituição e vigência do poder, são inseparáveis da supremacia da cavalaria. Isto se verifica pelos séculos fora até à instauração da última Dinastia da Monarquia chinesa, sendo igualmente extensível aos grandes momentos de expansão, conquista ou vassalização de estados e reinos vizinhos como, inversamente, aos passos da decadência e da derrota. Essas situações, repetidas na História, denunciam também outra constante, do foro da geopolítica: a grande e permanente ameaça do norte. O ascendente de Xiongnus, Mongóis e Manchús parece poten-ciado pelo telurismo de um heartland que se es-tende pelas franjas nórdicas da China e se adentra no coração do continente asiático, geografia natural daquelas nações. Quando escutava do lábio inspirado de S. Francisco a pregação da fraternidade cósmica de homens e animais, a Europa dos princípios do Séc. XIII mal imaginava que, nesse mesmo momento, os pastios do Gobi eram viveiro de milhões de cascos que haviam de fazê-la estremecer poucos decénios depois, quando os exércitos mongóis dos Cãos Gengiscão, ("O Imperador de todos os homens") organizara os exércitos em "divisões" (tuman) de 10 mil homens e desenvolvera o correio a cavalo (yam) com postos de 100 em 100 milhas, guarnecidos de guerreiros e de um apontador, ao longo das principais rotas. Segundo os relatos de Marco Polo, havia em todo o Império mais de 10 mil yams, servidos por mais de 300 mil cavalos. A terrível cavalaria mongol apenas aparecia, de surpresa, na hora exacta dos combates e manobrava, sob um silêncio impressionante, aos sinais de bandeiras dados por comandantes e repetidas aos esquadrões pelos movimentos de braços de um oficial. De noite, as ordens eram transmitidas por sinais luminosos, junto do estandarte de comando do Cão. As suas tácticas favoritas eram o tulughma, manobra envolvente, e a retirada simulada.6 É claro que tanto o sistema de correios, como as tácticas de campo e o sistema de semiótica referidos, são apenas desenvolvimentos apurados dos que pre-existiam desde há séculos, alguns dos quais tinham sido adoptados pelo sistema defensivo chinês segundo a inspiração da "escola bárbara". Repoltreados quinhentos anos depois na Cidade Proibida, graças à força do cavalo, e à semelhança de tantos conquistadores do trono imperial, os Manchús haviam de manifestar a gratidão devida a esse tão válido servidor. A manga do antigo uniforme dos oficiais manchús abria o canhão em forma de pata de cavalo, e a moda da trança ou rabicho, que a Dinastia bárbara instituiu nos usos dos povos chineses, foi adoptada pela semelhança com a cauda dos quartaus, em homenagem a tão preciosos cooperantes do seu triunfo.7
Cabeça de cavalo de terracota (Lintong).

Mas é muito mais para trás, desde os fins da Dinastia Qin (+- 255-221 ou 207) até aos finais da Dinastia dos Han anteriores ou ocidentais (porque tinham a capital em Xangan ou Xian) que o cavalo começa a assumir um papel mais relevante na história da China, estatuto que irá manter pelas Dinastias seguintes até aos tempos áureos dos Tang.

As espectaculares descobertas arqueológicas acontecidas nos últimos decénios na República Popular da China, vieram permitir novas leituras aos investigadores e críticos, esclarecendo teses antigas e baseando outras.

Em Março de 1974, em Lintong (Província de Shaanxi), e a 1 Km do perímetro exterior do túmulo de Qin Shihuangdi (259-210 A. C.)-consagrado como primeiro Imperador dos povos chineses - começou a ser desentranhado aquele que é considerado o maior achado arqueológico da humanidade nas épocas mais recentes.

Trata-se do famoso exército de 7.000 figurantes, em tamanho natural, com que o "lendário" Imperador pretendeu perpetuar-sena memória da História e nos reinos celestes, segundo a antiquíssima crença chinesa de que as mesmas coortes de servidores que lhe valeram a glória na terra, continuariam a servi-lo nas estâncias maravilhosas do Além. Atentos à constante atrás enunciada, parece-nos indubitável que a primeira reunião de tantos reinos feudais, nas mãos do Imperador Qin Shi Huang, se terá devido à supremacia militar dos Qin, senhores de uma cavalaria ligeira que conferia maior mobilidade ao corpo da sua máquina de guerra. Exemplo histórico de que o exército dos Qin já operava segundo esta estratégia, documenta-se numa batalha contra o estado de Zhao, em que bastaram ao futuro imperador 5000 cavaleiros, que infiltrou entre as hostes adversárias, para destroçar uma força militar de cerca de 40 mil homens.

Os clássicos carros de combate, sem dúvida força bélica de respeito, de madeira e com duas rodas de cerca de 1,08 m de diâmetro, eram muito vezes máquinas trôpegas e peças mortas, quando transplantados de um xadrez plano para terrenos movediços ou cenários acidentados.

Este carro de guerra leve e resistente, era muito semelhante aos carros das regiões ocidentais da Ásia da Idade do Bronze (veículo de caixa quadrada e varal curvo, puxado por dois cavalos atrelados com coleiras flexíveis - jugo de garrote), o que não é de espantar, uma vez que o carro e a domesticação do cavalo para tracção aparecem na Anatólia e na Síria por volta do Século XVII A. C..

O que é curioso assinalar, é que este carro já era usado na China no período da Dinastia Shang (1765-1122 ou 1558-1050). Achados ar-queológicos provam que, neste período, cavalos vivos atrelados a carros eram lançados em valas, nos rituais de sacríficios humanos e animais sequentes à morte do Imperador.

O que os estrategos do estado Qin terão vislumbrado foi a inserção, na manobra bélica, da maior operacionalidade da cavalaria ligeira, observadores e conhecedores de tantos triunfos das terríveis hordas das circunvizinhas estepes.

Palafreneiro e cavalo de terracota, do exército de Qin Shi Huang descoberto em Lintong. À semelhança das outras c. de 7000 peças, é documento de preciosas informações para os arqueólogos. Nesta, retemos sobretudo a proporção relativa do homem e do cavalo, sabendo-se que na China antiga os homens destinados à cavalaria eram recrutados entre os 23 e os 40 anos e deviam ter, no mínimo, 1,73m de altura. Isto põe em destaque o tipo mesolíneo do cavalo, seguramente da raça dos póneis da Ásia Central, e distante ainda do perfil hipermétrico e rectilíneo das estirpes futuras.
Cavalo aparelhado de cavalaria (terracota de 2mx1,72m), do túmulo de Qin Shi Huang(Lintong). Cavalos de bronze, quadriga de atrelagem a um carroconduzido por uma favorita do Imperador (túmulo de Qin Shi Huang, Lintong, Shaanxi).

A cavalaria, que se afirmou (e confirmou crescentemente) força decisiva nos confrontos dos fins do Século III, já tinha, porém, começado a disseminar-se na China pelos finais da Dinastia dos Zhou (1121-256 ou 222 A. C.), no período dos Dong Zhou (os Zhou orientais, que foram instalar a capital mais a leste, em Luoyang).

Outras referências confirmam que a cavalaria ligeira, mais rápida e com maior mobilidade do que os carros (cavalaria "blindada") começara a surgir no Século IV A. C. nos reinos do norte, onde foi adoptada por imitação dos nómadas, ao mesmo tempo que a indumentária dos cavaleiros das estepes - o conjunto prático de túnica e calças.

Segundo o famoso historiador Sima Qian (145-86 A. C.) nas suas "Memórias Históricas" (Shiji, 6), o rei Wu Ling (325-299 A. C.) tinha começado, no estado de Zhao, a exercitar os cavaleiros no tiro do arco sobre a montada em movimento, à semelhança dos bárbaros.

Perante o grandioso exército soterrado em Lintong, disposto na sua natural ordem de funções, alguns arqueólogos assinalam, na posição de alguns carros de combate, a possível reconversão da sua função primitiva na de elementos de estafetas ou ligação e na de postos de observação e deslocação de comandos.

Consideram também que os cavalos, que parecem modelados no mesmo tipo rácico, têm conformação robusta, solidez de pernas, e boa envergadura de pescoço encimado de cabeça estreita, mas bem medida. A crina, de talha curta, bifurca-se em duas longas madeixas pelo meio das orelhas espetadas. Na cauda, uma diferença que identifica dois tipos de solípedes. Nos de tiro, a cauda surge presa ou atada curta, e é solta, caindo naturalmente, nos cavalos de montar.8

De envergadura mesolinear (os modelos naturais teriam cerca de 2,05 m de longo por 1,72 m de altura) denunciam ainda a preponderante ascendência nos garranos pardos da Ásia Central.

Mas na inteira expressão transpira o resultado da longa permanência nas coudelarias, do treino e da disciplina. São a escultura da energia domada: pressente-se-lhes o ímpeto impaciente do arranque sofreado à mão do cavaleiro, em orelhas espertas, narinas frementes, boca entreaberta para a travessa do bridãotudo na expectação obediente de um comando.

OS "CAVALOS CELESTES"E OS "CAVALOS VOADORES"

A sensibilidade à importância do cavalo e da cavalaria ascende e impõe-se nos tempos dos Han ocidentais (206 A. C. - 8 D. C.).

O cavalo convoca os mais pugnases esforços de captura e de apuro rácico e atinge valores de mercado difíceis de igualar na História chinesa. A cavalaria ligeira começa a oficializar-se como unidade nuclear da manobra militar de campo.

Influenciado pelo conselheiro Chao Ce, o quarto imperador dos Han, Wendi(179-156 A. C.) chegou a decretar que a entrega de um cavalo com o respectivo carro dispensaria qualquer família do pagamentode impostos e desobrigaria três dos seus filhos do serviço militar, indício claro daquela tendência.

Desde o início, os Han deparam com enorme pressão nas fronteiras setentrionais, exercida em permanência pelos poderosos e ofensivos Xiongnu.

Os bárbaros das estepes, que não conheciam a escrita nem o sentido da propriedade, e para quem a fuga em combate era pura esquiva estratégica e não acto de cobardia - lançavam a maior perplexidade e inquietação nos povos chineses.

"Eles são muito hábeis a iludir os seus adversários, fazendo-os cair em armadilhas. Quando apercebem o inimigo, caem sobre ele como voo de águias, ávidas de presas; mas quando se sentem eles próprios acossados e vencidos, ei-los que se dispersam e desaparecem, como a névoa".9

Tradicionalmente habituados aos pesados combates de carros, às cargas da infantaria, aos assaltos de vilas fortificadas, à "táctica do cerco" - os chineses chocaram-se com esta estratégia da guerrilha nómada, mas perceberam que tinham que a incluir nos seus processos bélicos para sustar a crescente ameaça do norte.

Carro de guerra com o seu condutor, bela peça de bronze da época dos Han posteriores, de um pequeno exército descoberto em Leitai (Wuwei, Gansu) em 1969, com 14 carros, 17 cavaleiros montados e 45 guardas de infantaria. A ascensão da cavalaria de carros e sobretudo da cavalaria ligeira, que vinha dos Han anteriores, aparece aqui uma vez mais documentada.

Começam a desenhar-se a reforma do conceito de defesa e de protecção das fronteiras, e um novo exército inspirado na "escola dos bárbaros". A cavalaria vai transformar-se na massa activa e móvel das forças armadas.Sente-se a necessidade urgente de multiplicar e melhorar o contingente de cavalos e, para tanto, dos grandes espaços de pastagem.

Pelas boas condições naturais e pela confi-nação com os desertos dos bárbaros, foi escolhido o noroeste chinês, menos povoado e mais próximo dos campos de operações, para "terra dos cavalos".

Desde o princípio da Dinastia Han, há notícias de cruzamentos com cavalos árabes e bac-trianos, o que parece confirmado na maior corpulência e na cor que o cavalo apresenta na estatuária equestre desses tempos.

Antes da descoberta de Lintong, equipas de arqueólogos tinham já exumado, em 1965, um outro exército na necrópole dos Han ocidentais, a nordeste de Xianyang, antiga capital dos Qin, a norte de confluência dos rios Jing e Wei. São 2548 estatuetas de terracota pintada, em rigorosa ordem de batalha.

Aí se documenta a potencial omnipresença das unidades de cavalaria: apoio e cobertura às de infantaria, ligação entre corpos, reforço onde fosse necessário, sem contar com 4 companhias de cavaleiros de reserva, polivalentes e com grande mobilidade para cargas de surpresa e envolvimento rápido de forças adversárias.

É com base nesta formação táctica que se irão dar as vitórias decisivas das forças imperiais Han sobre os nómadas, e mormente sobre os Xiongnu, incursos pela fronteira noroeste e que não paravam de perturbar a segurança dos povos chineses e a sua novel unidade política.

Frente às primeiras derrotas, Liu Bang, o primeiro imperador dos Han, conhecido como Gaozu, intenta acorrer a esta inferioridade reforçando e requalificando a cavalaria, no que foi seguido por Wendi que, com 85 mil cavaleiros, contra-atacou com êxito as hostes dos Xiongnu em 177 A. C..

E quando estes, em 166 A. C., se aproximaram a 3.000 li de Xangan com 140 mil cavaleiros, Wendi logrou salvar a capital com um exército de 1.000 carros e 100 mil cavaleiros.

Segundo os arqueólogos, aquele peque-no-grande exército de terracota parece ser o acto deliberado de consagração das vitórias do famoso general Zhou Yafu sobre os exércitos invasores, durante o reinado do quarto imperador Han, Jingdi (157-141 A. C.).10

Triunfos que se devem não só ao notável recrudescimento das coudelarias imperiais (maynan)) sob a égide daquele imperador-500 mil cavalos destinados primacialmente às forças armadas - mas muito também à perspicácia táctica daquele general que decisivamente deu a prevalência aos corpos da cavalaria ligeira, neles baseando a articulação da inteira ordem de batalha.

É assim que o quinto dos Han, Wudi (140--86 A. C.) se atreve a passar, da clássica atitude defensiva, às expedições ofensivas, alcançando as primeiras grandes vitórias decisivas sobre os Xiongnu, e rasgando ao Império um caminho de triunfos e de tranquilidade, sob a dissuasão da cavalaria e dos seus "cavalos voadores"...

Os cerca de 50 anos que medeiam entre 182 e 133 A. C. são de permanentes incursões nómadas pelas fronteiras do norte.

Grupo de cavaleiros de terracota pintada, do exército decoberto em Yiangjiawan (Shaanxi). da época (179 141 A. C.) dos Han ocidentais. Entre os 2548 elementos figuram 583 cavaleiros. Os cavalos têm as dimensões médias de 60 x 64 cms., e os homens (infantes, palafreneiros ou serviçais) de 48 a 52 cms de altura. (Rep."Trésors d'art de la Chine").

Em 158 surge a primeira referência a "colónias militares" (tuntian) na zona próxima fronteiriça.

Tentam-se alianças através de casamentos: em 152 uma princesa chinesa é dada em casamento ao Shanyu dos Xiongnu.

Mas em 148 os bárbaros chegam até à região onde hoje está Pequim, e em 149 atacavam Shanxi fazendo razia nos cavalos do parque imperial.

Elemento importante introduzido na manobra bélica do exército chinês foi a sua entrega a uma chefia individual, autónoma ou personalizada, a um general com capacidade de avaliação imediata das situações e de decisão das inflexões rápidas em pleno campo.

É assim que os generais Wei Qing e Huo K'in-Ming começam a obter as vitórias mais eficazes contra as hostes incursas. Este último foi o grande instigador da adopção dos métodos da "escola bárbara", e quem sensibilizou o Imperador para a necessidade da penetração para Ocidente, para chegar aos países produtores das melhores raças de cavalos.

Em 124 A. C., os homens do general Wei Qin capturaram mais 15 mil Xiongnu e de um milhão de animais domésticos.

Foi o quinto imperador Han, Wudi 140-86 A. C.) - "O Guerreiro" - quem encarou de forma nova a relação da China com os bárbaros e intentou alargar os limites do mundo conhecido.

Através de depoimentos de prisioneiros Xiongnu - que se vangloriavam de ter destruído o Rei dos "Yue-tche"(Yuezhi) e de ter bebido pelo seu crâneo - soube o imperador da existência desse povo indo-cita na Ásia Central, herdeiro das mais antigas técnicas de do-mesticação e proprietário de belíssimos exemplares da raça equina, pela sua proximidade ao Oriente Médio.

Logo aspirou a uma aliança com esse reino para vencer os Xiongnu, escolhendo um enviado especial para essa missão.

O escolhido foi Zhang Qian, que não chegou a passar a cintura nómada, tendo sido capturado e feito prisioneiro durante 10 anos. Conseguindo fugir, contactou o rei de Ferghana, no alto Sir-Dária, território de Dayuan,11 que lhe deu guias para o conduzirem através da Transo-xiana (K'ang-Kiu).12 Daí passou para a Bac-triana (Ta-hia) alcançando o sul do Amur-Dá-ria, onde se haviam fixado os Yuezhi, conhecidos dos gregos pelo nome de indo-citas.

Tendo caído outra vez, durante o seu regresso, nas mãos dos Xiongnu, só conseguiu entrar na China 20 anos depois da sua partida. Os seus relatos descreveram um mundo para além dos domínios bárbaros, com reinos e culturas diversas. Ferghana, país agrícola, rico em arroz e em cavalos magníficos que "transpiravam sangue"; conheciam um vinho extraído de um fruto desconhecido na China, a uva. Os de Transoxiana eram nómadas, e notáveis archeiros. Bactriana tinha bons campos e cidades, idêntico ao Ferghana. Wou-souen 13 eram bárbaros de olhos azuis e barba ruiva que criavam magníficos cavalos.14

Zhang Qian trouxe alguns destes ao imperador Wudi que, maravilhado, os qualificou de "cavalos celestes" (Tien-Má).

Friso de cavalos, pormenor de um fresco tumular dos Han posteriores (Hohingol, Mongólia Interior). Dos Han aos Tang, o cavalo, em frescos, pinturas e estatuária de barro, vai ser motivo constante de decoração artística e ritual nos túmulos.

Era o primeiro contacto da China com o outro lado da cintura bárbara, para além dos desertos, onde proliferavam culturas centro--asiáticas que conheciam as civilizações do mundo médio-oriental e tinham assimilado elementos da cultura grega, já ali noticiados por Alexandre III (330-327 A. C.) durante o seu avanço pela Bactriana e a Sogdiana até ao espaço entre o Amur-Dária e o Sir-Dária, onde fez o seu célebre casamento com Roxana. E onde ficou, por certo, a fama e a semente dos seus bucéfalos.

Aos poucos, a China foi recebendo os produtos desse comércio: tapetes, pedras preciosas, o burlo (que os Xiongnu introduziram na China), a uva, técnicas várias, e animais-como certas belas raças de cavalos.

Foi assim que a missão de Zhang Qian constituiu o primeiro passo de religação da China á famosa Rota da Seda, que melhor se designaria sinicamente de Rota dos Cavalos, pois era sobretudo para adquirir os preciosos solípedes que a Corte inundava de sedas e objectos de ferro os Xiongnu, intermediários que assim acabavam por reforçar o seu poder.16

Mapa das rotas da seda, do norte do sul (In "Les Chinois" ob. cit.). Conjunto equestre de bronze, com cavaleiro de alabarda (Han posteriores). Peça curiosa, por documentar um tipo de arma usado na cavalaria primitiva e caído em desuso com a as-cenção da cavalaria ligeira. A obliquidade das linhas da lança e do cavaleiro que a enrista, são contrariadas pela postura sustida do cavalo sofreado, em expectativa do arranque sobre o inimigo que se adivinha à frente.

Não será por acaso que, na estatuária desses tempos, recém-descoberta pela arqueolo-gia, os cavalos surjam muita vezes montados pelos respectivos cavaleiros, a sublinhar a ascensão dessa unidade de base, e da cavalaria ligeira, na manobra militar; como também o não será que essas terracotas pintadas nos retratem cavalos baios, alazões ou negros, e a denunciar mais poderosa ossatura. Sem dúvida que se trata já de uma raça. apurada por cruzamentosoperados nas coudelarias imperiais, ede estatura e resistência superiores às dos póneis pardo-doirados da ÁsiaCentral, ascendentes primitivos dos equus caballus e da primeira geração dos cavalos chineses, retratada nos achados de Lintong.

Mais encorpados e poderosos, mas de vo-lumetria distribuída numa estética de maior leveza, por certos velocíssimos, são concerteza estes os corcéis representados no bronze do "cavalo voador"(Fei Má) descoberto em Wu-wei (Gansu), dos tempos dos Han orientais (25--220 D. C.).

A CULTURA À SOMBRA DA PAZ

Apuro da raça equina e da cavalaria como eixo da manobra bélica vão continuar a concentrar os meios, os esforços e a atenção dos estrategos chineses, prolongando-se pela Dinastia dos Han posteriores ou orientais (25-220 D. C.) que estabeleceram a capital em Luoyang (He-nan) e pelos quatrocentos anos que irão seguir--se até à tomada das rédeas e do poder do império pela mão dos Tang.

Desde Zhang Qian, a velha China começara a sair do seu solipsismo, e por necessidade de diversificação de alianças para neutralizar ameaças vizinhas, por curiosidade de diferentes concepções e formas civilizacionais, por necessidade de reforço de trocas comerciais e de acesso a bens fundamentais, como o cavalo- a velha China procura cada vez mais os contactos para Ocidente.

Senhores de mais longa tradição, conscientes de originalidade e superioridade de uma cultura que vai actualizando no tempo, através dos seus sábios, poetas e artistas, potências riquíssimas que lhe vêm do mistério da sua fundação - a China sente cada vez mais a necessidade de paz pela pressão da cultura. Ou pela acção da guerra e da conquista, ou pela pura dissuação da superioridade do seu poder. Matéria humana para os exércitos não lhe falta, e avantaja-se grandemente à dos próximos povos conhecidos. O primeiro censo populacional, realizado em tempos do primeiro imperador, indica-lhe uma população de mais de 57milhões, assim superior à do conjunto de um Império Romano no apogeu de expansão. Unidade política e cavalos relevam neste quadro como necessidades mais valiosas.

Fei Má, o "cavalo voador", adoptado como símbolo do Turismo chinês (Bronze da Dinastia Han posterior, 25-220 D. C., descoberto em Leitai, Wuwei, em 1969). De eumetria que se requinta na leveza das formas, toda a escultura inculca a velocidade, o donaire, a levitação do movimento.

O dilema: barbarizar-se e sobreviver ou civilizar-se e perecer, começa a encontrar vias de superação segundo o brocardo romano "Si vis pacem, parat bellum". Os primeiros tempos dos Tang são disto a prova real: a grande explosão cultural irá florescer sob o dossel protector do portentoso poderio bélico.

Os contactos com os reinos ocidentais de Ferghana, Transoxiana, Bactriana e, sobre eles, com a Pérsia e os Árabes; o maior relacionamento com a Ásia Central e, para sul, com as regiões do Tibete, - foram traduzindo-se na melhoria dos cavalos chineses, por sucessivos cruzamentos.

De 558 a 578, nos finais da Dinastia do Sul e do Norte, a fama da China atrai a Xangan numerosas embaixadas da Pérsia e da Ásia Central.

Nesta bela cabeça espelha-se o gosto Tang pelo cavalo, distintivo público da aristocracia e apuro da alta escola: na riqueza do jaez e no capricho estético da crina canelada, adornada à esquerda em belo recorte.

Ascendendo à hegemonia dos reinos chineses em 618, os Tangirão, nos primeiros cinco anos de poder, eliminando todas as forças rivais, para se virarem de seguida sobre as frentes de combate aos Tuynham, aos Tunguzes17 e sobretudo à grande e nova força ameaçadora dos invasores turcos. Depois de várias incursões pelo flanco oeste, os turcos atrevem-se até Xangan, mas são escorraçados até à Mongólia.

Em 638 chega a Xangan uma luzida embaixada da Pérsia sassânida, e dois anos depois os Tang têm sob controle o Reino de Gaochang (no Tufan, nome do Tibete antigo), coudelaria também de bons cavalos. Em 713, um ano depois da subida ao poder do famoso imperador Xuanzong, é criado o reino de Bohai (Man-chúria oriental) sob controle chinês.

A lei da oferta e da procura pode explicar que, por estes dilatados tempos, se compre um cavalo a troco de quarenta peças de seda. Assim parece já estar-se longe da escassez de uma oferta que valia à procura 100 peças de ouro, embora os números soltos relativos à quantidade de cavalos surjam, aqui e ali, em disparidade. Só as grandes dizimações das permanentes campanhas e confrontos militares poderão basear com alguma lógica essas flutuações dos "censos" equestres.

Refere-se, por exemplo, que num certo período a aquisição de 5000 cavalos resultou na procriação de 20.000 e que o Imperador Xuangzong teria possuído cerca de 40.000 corcéis, na maioria procedentes da Ásia Central e criados nos pastos a norte do rio Wei e de Xangan, a capital ocidental.

Mas antes, em tempos de grande mobilização bélica, uma referência de 664 noticiava a existência de 700 mil cavalos nas coudelarias do Estado.

Cerca de 50 anos depois (725) e em plena era do apogeu cultural Tang (que se situa grosso modo entre 710 e 750) os números indicavam a disponibilidade de 420.000 cavalos, possibilitada pela política de recuperação dos campos de pastagens do Império, determinada em 705.

O apogeu antecede a queda ou, para nos expressarmos em típicos modos chineses, uma coisa gera o seu contrário.

Convulsionada intestinamente durante um milénio por tantas lutas internas, entre feudos e reinos, entre tantos concorrentes à detenção do poder hegemónico, contra tantas ameaças e incursões, em retaliação de tantos ataques armados - a China aspira à pacífica fruição dos ócios, vocação criativa dos homens mas potência da decadência.

Séculos e séculos, o sistema defensivo dos povos chineses assentava numa complexa arti-culação de sub-sistemas, cuja concentração se detectava mais fortemente nas zonas de defesa próxima da Grande Muralha.

Músicos de charamela militar(cornetim e atabales?) so-bre dois cavalos baios (Dinastia Tang).

Arqueiro desferindo a seta a cavalo (Dinastia Tang, c. 706). Terracota marmoreada e pintada(32,2x30cms), do túmulo do príncipe imperial Yide, em Qianxian (Shaan-xi). (Rep. "Trésors d'art de la China"; Museu de Shaan-xi).

Havia a Guarda do Imperador, corpo central do exército constituído por aqueles "que o seguiam primeiro que todos os outros"; as unidades de quadrícula espalhadas pelas muitas cidades fortificadas de várias ordens; as unidades de guarda aos troços da Grande Muralha, com seu sistema de comunicação por sinais luminosos e de fumos; as forças protectoras dos campos de pastagens e das coudelarias; as famílias e grupos de famílias a quem eram distribuídas terras para cultivo e defesa - soldados-agricultores ou soldados dos canais de rega (hequzu), soldados do celeiros (kuzu); as colónias militares (tuntian) cuja primeira referência aparece em 158 D. C. e que eram o alargamento das unidades de defesa referidas anteriormente; era, no geral, um sistema conformado por milícias e por um exército constituído com base no recru-tramento obrigatório, em que o homem chinês chegou a ser obrigado à prestação do serviço militar um mês em cada oito meses. Nos tempos Qin e Han, em regime geral de recrutamento obrigatório, os homens eram recenseados 23 aos 30 anos e obrigados a servir 1 ano na Guarda do Imperador e l ano nas suas capitanias de origem.

À esquerda: Cantil de viajante (Bianhu) da Dinastia Tang (Secs. VII ou VIII), descoberto em Xian (Museu de Shaanxi). Peça de prata de 18,5 cms. de altura, decorada a ouro. A relêvo dourado, um "cavalo dançante", da famosa escola do imperador Xuangzong. (Rep. "Trésors d'art de la China"; Museu de Shaanxi, Xian).

Agora, vamos assistir ao gradual desmantelamento de todo este sistema, ao esvaziamento das unidades das milícias, ao começo da profissionalização do exército.

Xuanzong (712-756), verificando a ineficácia das milícias camponesas, decreta em 723 a constituição de uma "Guarda Permanente do Imperador". Mas para conseguir 120 mil homens vê-se compelido à abolição radical do imposto de trabalho e de certas penas.

A paz duramente conseguida desde as vitórias do Imperador Li Shiming ou Taizong (626-649) sobre os turcos orientais em 630, a vitória sobre os turcos ocidentais em 657, sobre a Coreia (Baiji) em 660, sobre o Japão em 663, sobre a Coreia (Xinhuo) em 675, deram tal sentimento nacional de segurança que, em 737, o Imperador foi induzido a abrandar o regime de recrutamento: "Como no Império não há motivo de inquietação, convém conceder ócios aos homens; a partir de agora serão constituídas guarnições compostas de soldados permanentes nos exércitos e comandos militares, tendo em consideração a tranquilidade do país... ". 18

A desobriga do serviço militar, crescentemente institucionalizada, atingiu tais proporções que o ministro Lei Liufu promulgava em 745 um decreto que significava praticamente a sua extinção. Já não havia razão para que o exército de fronteiras representasse uma verdadeira "força de dissuasão".

Sem que os Tang cuidassem, o antigo dilema iria funcionar, porque os perigos não estavam apenas do lado de fora do Império...

OS CAVALOSQUE DANÇAVAM

Até aqui, as gerações de réquas saídas das estrebarias tinham o destino de constituirem os corpos de cavalaria dos exércitos, de servirem no tiro dos carros, nos transportes e ligações dos correios e das comunicações.

O refinamento da era Tang também irá reflectir-se no cavalo e no seu uso.

Fruto de sucessivos apuramentos, o cavalo diferencia-se muito dos potros dos tempos do primeiro Imperador, numa evolução que aparece nitidamente documentada e confirmada nos sucessivos achados arqueológicos referentes ao período que vai dos Han ocidentais ao final da Dinastia Tang.

Fundidos pelo modelo natural, os cavalos de Qin Shi Huang encontrados em Lintong, de baixa estatura (c. de 1,70m) denunciam evidentemente a sua ascendência directa nos póneis dos nómadas das estepes mongólicas e do noroeste.

Por este modelo (c. de 1,70m de altura para c. de 2m de comprimento) parecem perfilar-se as representações de cavalos encontradas em gravações, desenhos, pinturas ou estatuária, referentes a esses tempos: grande desvantagem da altura na relação com o comprimento do cavalo.

A partir daí, e com ligeiríssimas diferenças, a volumetria do cavalo vai proporcionar-se na equivalência da altura com o comprimento do animal. É assim, acabadamente eumétrico, que ele nos chega figurado, nas obras da pintu-ra, do bronze ou no barro dos coroplastas chineses.

É possível que uma complexidade de factores a isto confluísse, denegativa da rigorosa correspondência entre o modelo natural e o ob jecto artístico.

A pintura chinesa, como a caligrafia (descendentes da matriz comum dos signos mnemo-operativos dos adivinhos primitivos) passou a tentar expressar mais os conceitos do que as formas, a essência mais do que a respectiva figuração. Mesmo quando, ou sempre que, ela é fiel na reprodução das grandes linhas, nesse naturalismo ou realismo há sempre a intervenção de um princípio superior, o espírito ou inspiração (K'i), que nasce da capacidade de conso nância íntima, ou de harmonia, do artista com os ritmos do universo.

Poderia, assim, ser legítima a consideração de que a essas, gerais, figurações do cavalo, assistisse o "espírito do cavalo". Mas se isto poderia colher na delicadeza das linhas, no lançado do movimento, na leveza de toda a plástica - captação da velocidade vertiginosa e da elegância balética dos solípedes e projecção no real da tradicional ideação alar do cavalo - não parece justificar-se no simples crescimento do cavalo em altura. Por outro lado, não só se verifica unânimidade daquelas proporções nos trabalhos dos artistas e artesãos (altura mais ou menos igual ao comprimento do cavalo) como é esse o canon apurado nas raças hoje existentes, do andaluz ao árabe, do anglo-árabe ao Tra- kehner ou ao Oldenburgo.

Mais ainda, a época dos Tang é marcada por refinado realismo nas artes, e sem dúvida que os seus escultores, gravadores e barristas são atentos observadores dessas, tantas, esculturas naturais que são as centenas de milhares de cavalos existentes nas estrebarias.

O que pode talvez admitir-se é que essa estatuária não seja representação da generalidade equina, mas tão só de algumas castas descendentes dos garanhões de Ferghana e da Pérsia, apossessadas pelo Imperador, pela Corte, pela nobreza, e por eunucos e concubinas como privilégio da sua supremacia social. Os ricos adereços do jaez que os adornam e solenizam, parecem disto a confirmação.

Assim, as nobres linhas esculturais do cavalo passaram não só a abundar na inspiração dos pintores da corte e dos escultores do barro, mas também a nova hipermetria das suas formas longilíneas vai plastificar-se na estatuária que o consagra, para deleite da hipomania da corte Tang.

Na paz, a atenção ao cavalo irá empregar--se noutros apuros mais correspondentes às necessidades lúdicas. Emblema de casta, distintivo de certas hierarquias elevadas e de damas ruantes que o fazem caracolar, o cavalo irá ser utilizado nas grandes caçadas, nas competições de polo - novas justas da nobreza guerreira - e ser paciente da disciplina especiosa da alta escola.

Importados em grande número, os cavalos do Médio Oriente e da Transoxiana serviam aos cruzamentos dos criadores nos estábulos imperiais.

E os magníficos bucéfalos de Ferghana e de Kokand, qualificados de "celestes", eram tributo e propriedade apreciadíssimos.

Entre todos, os de cor branca eram os mais disputados pela privatização da aristocracia, sobretudo nas eras Kaiynan (713-741) e Tianbao (742-755) do reinado de Xuanzong.

Os mais elançados e garbosos recebiam cognomes, a carácter com a sua origem ou particularidades, e os pintores honravam-se em fixar-lhes a imagem.

O famoso pintor Han Gan (produtivo na corte Xanyan) notabilizou-se a retratar os cavalos do Imperador Xuanzonge da sua concubina favorita Yang Guifei, sobretudo do cavalo Zhaoyebai ("aquele cuja brancura clareia a noite"), o preferido dos gostos imperiais.

Já em 667, um édito imperial reservara a equitação à nobreza, como privilégio exclusivo.

Considerando o jogo do polo um bom treino para as tropas, Xuanzong estimula a sua prática em todo o império por decreto de 747.

Já era popular este jogo entre a aristocracia chinesa, sobretudo a partir do momento em que o Imperador Taizong se entusiasmara, depois de ter assistido a uma exibição de equipas vindas de Tufan - (Tibete antigo).

A investigação arqueológica tem vindo a pôr a descoberto terrenos para jogo do polo (qiuchang) nos perímetros dos palácios e estâncias imperiais.

As pinturas murais do túmulo do príncipe Zhanghuai, também recentemente identificadas, são animadas com cenas do jogo do polo. O seu irmão, o Imperador Ruizong (710-721), passou por exímio executante.

Praticado em vastos terraplenos o polo, chamado em chinês daqiu ou jiqiu, jogo da bola batida, ou qiju, jogo da bola a cavalo, era disputado entre equipas de 20 cavaleiros jogadores.19

Ainda hoje é popular entre os povos da Mongólia o jogo do polo, introduzido na China no princípio da Dinastia Tang ou um pouco antes, vindo da Pérsia ou da Ásia Central.

Mas as artes equestres atingem os cumes com o Imperador Xuanzong, e nos requintes da alta escola dos seus treinadores. Para a lenda dos séculos vindouros ficarão os seus magníficos "cavalos dançantes", já aliás consagrados numa pintura do tempo do seu antecessor, o Imperador Zhonzong (705-710).

No "Jiu Tangshu" (História oficial dos Tang, iniciada em 941) e no "Minghuang Za-bu " (Informações diversas sobre o Imperador Minghuang, ou Xuanzong) constam referências à alta escola de treino de "cavalos dançantes", de origem estrangeira, na corte daquele Imperador.

Divididos em duas alas, centenas de grá-ceis corcéis dançavam ao som de uma orquestra dirigida por duas mulheres.

O momento mais espectacular era quando era executada a melodia "Qingbei qu", "Canção da taça virada". Uma passagem do "Jin-glung wenquanji" (Anais do Pavilhão da Literatura da Era de Jinglung, 707-710) esclarece--nos hoje sobre isto, na descrição de um banquete oferecido a uma embaixada tibetana durante o qual foi exibido o pelotão dos seus cavalos amestrados: "Eles punham-se a dançar em cadência aos primeiros acordes da música... A cada refrão, os músicos davam-lhes de beber. Então, tomando as taças com vinho na boca, sentavam-se, levantando-se de seguida para espanto dos Tibetanos".20

Quando, sob o pretexto do excessivo nepotismo da favorita Yang Guifei, o general An Lushan encabeçou a rebelião militar que levou à fuga e derrube do Imperador e à morte dramática da bela concubina, os "cavalos dançantes" foram dispersos. Alguns foram recuperados pelas guarnições fronteiriças, para seu espanto e desespero: quando a charamela militar tocava, ei-los que se punham a dançar em plena carga...

Oriundo da pérsia, o jogo do polo depressa conquistou o favoritismo da aristocracia Tang. Com inexcedível realismo, a modelação imprimiu ao barro sobretudo a sugestão dinâmica e velocíssima do jogo: o cavalo com as pernas estiradas à máxima amplitude, a boca entreaberta no esforço, o olhar concentrado, o pescoço em ligeiro volteio a propiciar ao cavaleiro a melhor posição de tacada; este, por sua vez, é surpreendido em total consonância com o momento: a torsão do tronco, o impulso do braço, a impassibilidade da expressão na concentração da pontaria. Na harmonia do contraste, é um instantâneo do rigor.

Uma das mais preciosas peças, entre as recentemente descobertas, é um cantil de via-jante (Sécs. VII-VIII), de prata e ouro. Com razão, por certo, os arqueólogos chineses designaram de "cavalo dançante" o cavalo que nele releva a dourado, porque é sem dúvida a representação de um dos famosos cavalos dessa escola.

Sentado, o corcel de linhas elegantes tem na boca uma taça; as orelhas abatidas parecem sugerir o silêncio de uma pausa musical ou a expectativa de um sinal melódico; a ondeação da cauda prolonga a do xairel de seda, a inculcar o movimento, a música, o bailado, a leveza...

É a imagem de amestração requintada, e um símbolo da paz doirada e da fulgurante era dos Tang.

NOTA

A II parte de "O Cavalo na antiga China ", versando os aspectos simbólico e mitológico será publicada, em continuação, no próximo número.

NOTAS

1 o Cavalo é um dos Sete Tesouros (em sânscrito Sapta Ratna) ou adereços de um "Chakravartti" (ou Soberano do Universo). Os outros seis são a Roda de Ouro, a Pérola Milagrosa, as Gémeas, os Elefantes, os Guardiões Divinos da Tesouraria e os Governadores Militares (In "Outlines of Chinese Symbolism and Art Motives", C. S. Williams, Kelly and Walsh, Ltd., Tai-wan).

2 Wang Chuanshan, "Du Tongjianlun", cit. E. Balazs, "La Bureaucratie Celeste", in "Les Chinois-Esprit et comportement des Chinois comme ils se révèlent par leurs livres et dans la vie, des origines à la fin de la dy- nastie Ming, 1644"; Claudc Larra, Paris, Editions Li- dis.

3 "Description Géographique, Historique, Chronolo-gique, Politique et Physique de l'Empire de la Chine et de la Tartarie Chinoise". J. B. Du Halde, S. J.; Haye, Henri Scheurleer MDCCXXXVI.

4 Xiongnu é a designação chinesa dos Hunos.

5 J. B. DuHalde, S. J., ob. cit.

6 "Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura", Lisboa, Editorial Verbo.

7 Os que, em 1635 D. C., receberam o nome de Man-zhou, Manchús, eram Jürchen, descendentes das tribos tunguzes que no Séc. XII (1115-1234) tinham fundado o Império dos Jin (Kin) a norte e nordeste da China, instalando a capital a nordeste da actual Har-bin, que mais tarde transferiram para Yanjing, Pequim, (1151) e depois para Kaifeng. Os bárbaros Manchús instalaram-se na China como uma raça de senhores, impondo com prepotência algumas leis e hábitos aos povos chineses. A mudança de vestuário e de pen teado - e concretamente o uso da trança (bianzi) que é imposta a partir de 1645 à população chinesa sob pena de morte, provocou revoltas que foram esmaga das com massacres. Os Jürchen tinham igualmente im posto o uso da trança aos seus súbditos entre os povos das estepes. Os Mongóis usavam várias tranças e, no Séc. V, os Tabgatch eram já chamados pelos chineses "cabeças em forma de corda" (Suotou). (In "O Mundo Chinês", Jacques Gernet, Ed. Cosmos).

8 Sobre os mais recentes achados arqueológicos na China, vide catálogo "Trésors d'art de la Chine - 5000 A. C. - 900 D. C.", da Exposição "Novas descobertas arqueológicas da República Popular da China", Bruxelas, Palácio das Belas-Artes, 1982.

9 Ob. cit. "Les Chinois", Claude Larre.

10 Ob. cit. "Trésors d'art de la Chine".

11 Zona do reino greco-sogdiano (Sogdiana).

12 K'ang-Kiu ou Kangju para os chineses, região de Sa- marcanda.

13 Ou Wusun, habitavam o vale do Ili; pagavam tributo aos Hunos e diziam-se "descendentes das aves".

14 "Zhang Qian, regressado da sua viagem aos yuedi(ou Yuezhi, Sogdiana) relatava ao Filho do Céu os costumes e a situação de todos os países da bacia do Tarim. Ele esclareceu que o Dayuan fica na direcção oeste da China, a 10 mil lide distância e que o povo deste país se dedica à agricultura e cria muitos e excelentes cavalos. Há cidades muralhadas e grandes edifícios...". (In "L'Histoire dynastique des Han antérieures", cit. Claude Larre, "Les Chinois", ob. cit.).

O Tarim designava o grande espaço intermédio entre a China e a Índia, cuja ocupação era nessa época considerada vital para o Imperador chinês, não só como manobra de envolvimento diplomático-militar dos Hunos, como na perspectiva da futura expansão para o Sul e para os contactos comerciais com o Ocidente.

Sobre a viagem de Zhang Qian, v. "La Civilisation de la Chine Classique", Vadime et Danielle Elisseeff, Colecção "As Grandes Civilizações"; Arthaud, Paris, 1987.

16 Ob. cit. "O Mundo Chinês", Jacques Gernet.

17 Ou Tangutos, os Qiang, para os chineses.

18 Ob. cit. "Trésors d'art de la Chine".

19 Idem.

20 Idem.

desde a p. 7
até a p.