Linguística

SABEDORIA E VINHO NA POESIA DE BAI JUYI

António Graça de Abreu*

Bai Juyi (772-846), um dos grandes poetas da dinastia Tang e um dos maiores da poesia chinesa, tem a sua personalidade e obra marcadas por um conjunto de poemas, cerca de uma centena, que ele próprio agrupou sob o título de "didácticos", destinados a exercer influência moral. Há já onze séculos que, de confucianos tradicionalistas a budistas moralizantes e, recentemente, a comunistas zeladores dos "bons costumes" e da "edificação" do povo chinês, todos têm levantado bem alto, sempre que necessário, o pendão da poesia social de Bai Juyi.

Há muitos séculos que meninos chineses aprendem de cor estrofres de, por exemplo, "A Colheita de Cereais":

    Os camponeses, essa brava gente, labutando
    na encosta sul, 
    os pés queimados pela terra fumegante, 
    as costas abrasadas por um sol dardejante. 
    (...) Eu, jamais lavrei a terra, 
    sinto indignação, vergonha. 

De"Os Poderosos", o contraponto brutal entre o viver de ricos e miseráveis:

    (...) Canecas e taças transbordam
    de vinhos delicados, 
    oito manjares da terra e do mar, 
    laranjas descascadas de Dongting, 
    pedacinhos de peixe do lago Tianchi. 
    Abundante, lauto o festim, 
    eles saciados, felizes, ébrios, soberbos. 
    Este ano, a sul do Rio assolado pela seca, 
    em Chuzhou, homens comem outros homens. 

Ou ainda de "Os Tapetes Vermelhos de Seda':

    (...) Cem homens carregam os tapetes de seda, 
    espessos, pesados, impossíveis de enrolar. 
    Oiçam, grandes mandarins de Xuanzhou, 
    mil onças de seda fazem três metros de tapete. 
    O solo não tem frio, 
    os homens precisam de calor, 
    roubam a roupa ao povo para vestir o chão. 

Bai Juyi, também mandarim ao serviço da corte, preocupar-se-ia, até ao fim dos seus dias, com as deploráveis condições de vida do povo, sobretudo dos camponeses, e assumiria sempre uma postura de honesto homem de Estado denunciando e criticando abusos, extorsões, pre-potências.

Mas Bai Juyi, homem de um só rosto, como bom chinês tinha muitas faces. Uma recente viagem por alguma da sua imensa poesia - legou--nos cerca de 2.400 poemas -, levou-me ao encontro de um outro poeta, irreverentemente fora dos cânones e juízos tradicionalmente formulados, um Bai Juyi iconoclasta, desabusado, amante dos supremos prazeres da vida, um surpreendente poeta do vinho.

O poema "Resignação":

    Não penses nas coisas que foram e passaram, 
    meditar no passado aviva o sofrimento. 
    Não penses no que vai acontecer, 
    meditar no futuro enche-te de incertezas. 
    Melhor, de dia, sentado na cadeira 
    como um saco, 
    de noite, deitado no leito como uma pedra. 
    Quando a comida vem, abre a boca, 
    quando o sono vem, fecha os olhos. 
    Estas as coisas úteis ao teu corpo, 
    quanto ao subir e descer, 
    Vida breve ou vida longa, 
    não penses, deixa tudo ao acaso. 
    Eu tenho ainda um luxo, 
    quando meu espírito se agita, 
    canto uma canção louca
    sobre uma taça de vinho. 

Desde tempos antigos, os chineses elaboravam vários tipos de aguardente e bebidas de baixo teor alcocólico, algo semelhantes à cerveja, através da fermentação de cereais, sobretudo sorgo e arroz.

Página de índice da primeira "obra completa" das poesias de Bai Juyi, impresso na Dinastia Ming.

O vinho de uvas existia no império, mas em pequenas quantidades, para uso exclusivo da corte. Bai Juyi, em 832, quando governador de Luoyang, escreve:

    Esta cidade há um ano sob meu governo, 
    confesso humilde, envergonhadamente, 
    que nada fiz para merecer
    a afeição, o respeito desta gente. 
    Apenas consegui melhorias substanciais
    na destilação do vinho estatal. 
    Comparado com as beberragens de outrora
    temos agora um néctar celestial. 

Alguns anos antes, ao governar a cidade de Suzhou, Bai Juyi escreveu um jueju, breves versos cortados, vinte sílabas em vinte caracteres, sobre o seu trabalho e o vinho:

    Se eu não trabalhasse nove dias seguidos, 
    as gentes da cidade não seriam bem governadas. 
    Se eu não me embriagasse de dez em dez dias 
    não teria nada que me divertisse. 

Zui que normalmente significa "bêbado", é uma ideia clássica da poesia tauísta expressando a situação em que o poeta, através do vinho, é transportado para fora das míseras coisas terrenas, da realidade quotidiana. Eis outro jueju exemplar:

    Uma taça revigora o corpo, 
    duas afastam as tristezas, 
    quatro ou cinco, uma após a outra, 
    inundam meu ser de luminosa embriaguês. 

Ou o poema "Despertar Nocturno":

    Ao crepúsculo regresso a casa bêbado, 
    a meio da noite levanto-me febril. 
    Pouco a pouco, esvaem-se embriagues e sono. 
    A maré sobe diante do pavilhão, 
    a lua ergue-se no mar. 
    Adormecem de novo andorinhas viajantes, 
    na janela reaviva-se a candeia agonizante. 
    Estas imagens me acompanham até ao dia claro, 
    em meus ouvidos ressoa ainda música. 
Bai Juyi com uma concubina. Pintura alusiva a uma poesia de Bai Juyi, do famoso pintor Tang Ren Ding.

O vinho conduz à exaltação, à evasão. Por isso, um pouco por todo o mundo, é imensa a galeria de grandes poetas amantes do álcool, Alceu, Horácio, Omar Khayyan, Ronsard, Baudelaire, Alberti, o nosso Pessoa. O maior de todos, na China, Li Bai (701-762) escrevia assim:

    Quem pode entristecer na Primavera? 
    Bom é beber. 
    O pequeno, o grande, 
    o Criador nos concedeu por igual. 
    Uma taça de vinho 
    harmoniza vida e morte 
    e mil coisas difíceis de ordenar. 
    Quando estou bêbado 
    ignoro céu e terra, 
    trôpego, procuro o leito solitário, 
    esqueço minha própria existência, 
    esse o maior de todos os prazeres. 

Ou ainda, também de Li Bai, este irresistível

    "Convite a beber ao luar": 
    Porque o céu ama o vinho, 
    a estrela do vinho existe no céu. 
    Porque a terra ama o vinho 
    as nascentes do vinho existem na terra. 
    Se céu e terra amam o vinho, 
    amar o vinho é digno dos deuses. 
    O vinho transparente 
    espelha a alma pura do homem santo, 
    o vinho turvo, 
    o espírito agitado do homem superior. 
    Se santo e sábio 
    são grandes bebedores, 
    porquê procurar seres divinos, imortais? 
    Três taças de vinho 
    concedem a felicidade plena, 
    um jarro e o universo pertence-nos. 
    Incomparáveis as virtudes do vinho, 
    mas como explicar isto ao homem sóbrio? 
Página da lå edição de poesias impressas de Bai Juyi (poesia dedicada a um velho homem que vende carvão).

Bai Juyi alcançou os setenta e quatro anos, uma então rara longevidade, e no último período da vida abandonou os cargos de mandarim e recolheu-se a Luoyang, longe das intrigas da corte. Aí viveu pacificamente seus últimos anos, rodeado de conforto, música, poesia e vinho. Alguns dos poemas do velho poeta sábio, em Luoyang, são dos mais perfeitos da poesia chinesa. Desse período, uma frágil tradução de "Pescando no rio Wei":

As águas lisas como um espelho polido,

nos fundos do Wei nadam barbos e carpas.

Chego, despreocupado, com a cana de bambu,

lanço o anzol, da margem do rio.

Um sopro de brisa acaricia o caniço,

afaga os poucos pés de fio.

Sentado, meu corpo espera o morder do peixe,

meu espírito vagueia no país do Vazio.

Há muito, muito tempo,

um homem de cabelos brancos

veio até aqui para pescar,

pescador de homens, não de peixes,

aos setenta anos pescou Wen Wang. (1)

    Lanço o anzol para as águas do rio, 
    esqueço peixes e homens, 
    não tenho arte para capturar uns e outros. 
    Sei apenas embeber-me 
    nesta luz outonal e depois, 
    cansado de pescar, 
    regresso a casa e bebo uma taça de vinho. 

"O poeta bêbedo escreve uma carta aos bárbaros"- imagem de uma representação do teatro popular, evocativa de um episódio da vida do maior poeta chinês, Li Bo ou Li Bai. Para responder a uma carta dos embaixadores do reino de Bohai (Manchúria, sob controle chinês no Séc. VIII), o Imperador não encontrou ninguém na roda dos seus sábios e aúlicos. Só Li Bai era capaz de o fazer, em todo o Império. Ora o poeta, génio das letras, tinha sido reprovado nos exames imperiais um ano antes, por dois examinadores que dele não tinham recebido peita. Um, humilhara o poeta dizendo-lhe que só prestava para lhe segurar o tinteiro e o outro, que só para lhe descalçar as botas. Agora, sob as ordens do lmperador, invertem-se os papéis: com cabaia de alto dignitário, Li Bai escreve a carta comodamente estirado, enquanto um dos examinadores (travestido de renegado) lhe descalça as botas e o outro (em traje de preceptor do príncipe) lhe segura a folha. Em pé, a concubina favorita do Imperador, que também se rira do poeta, segura o tinteiro. (Rep. "L'imagerie populaire chinoise", Ed. Aurora, Leninegrado).

Escrito também nos últimos anos de vida do poeta, eis como epílogo, porventura o mais "bêbedo" poema de Bai Juyi:

"Melhor beber comigo "

I

    Não procures a imensidão das montanhas, 
    acabarás por tudo detestar. 
    Teus dentes a doer por causa da água gelada, 
    teu rosto em fogo, por causa da geada nocturna. 
    Vais pescar, o vento sopra nas encostas, 
    vais colher lenha, a neve cobre os penhascos. 
    Melhor beber comigo, suave, 
    aveludadamente bêbedos. 

II

    Não te faças mercador, 
    conhecerás inquietações e temores. 
    Na fronteira norte, caminhas na neve e no gelo, 
    a sul do Grande Rio, dormes ao vento e à chuva. 
    Se amontoas mil onças de ouro, 
    teu barco naufraga, vai a pique. 
    Melhor beber comigo, 
    divertida, galhardamente bêbedos. 

III

    Não queiras ser camponês, 
    chega de contemplar tanta miséria. 
    Vem a Primavera, é preciso arar a terra pobre, 
    de madrugada, dar de comer ao boi escanzelado. 
    Caem impiedosos os impostos sobre o povo, 
    raro um ano de boas colheitas. 
    Melhor beber comigo, 
    calma, sossegadamente bêbedos. 

IV

    Não subas às nuvens azuis, (2) 
    estão inchadas de paixão e ódio. 
    Todos são sábios, 
    soberbos de seus conhecimentos, 
    esmagando o próximo, na luta pelo poder. 
    Grelhados os peixes que mordem o anzol, 
    queimados os mosquitos que zunem 
    em volta da luz. 
    Melhor beber comigo, 
    ruidosa, estrondosamente bêbedos. 

V

    Não entres no reino da poeira vermelha, (3) 
    desgasta o ânimo, a força dos homens. 
    Sempre a luta, como os dois corninhos 
    do caracol(4) 
    tua vitória igual a um pêlo de boi. 
    Extingue o fogo aceso pela cobiça, 
    pára de afiar a faca que escondes no sorriso. 
    Melhor beber comigo, 
    pacífica, serenamente bêbedos. 

NOTAS

(1) É impossível entender esta alusão sem recuarmos até ao Livro de Zhuangzi, cap. 17 onde, três séculos antes do nascimento de Cristo, o grande filósofo tauísta conta a seguinte história:

"Zhuangzi pescava no rio quando se aproximaram dois mandarins que lhe ofereceram, em nome do príncipe de Zhou, o lugar de primeiro-ministro do reino. Zhuangzi ouviu, não voltou a cabeça, continuou a pescar. Depois respondeu: "Ouvi dizer que no reino de Zhou existe uma tartaruga sagrada, morta há muitos anos. O príncipe presta-lhe culto, conserva-a num altar, na grande sala do Templo dos Antepassados. Digam-me: quando a tartaruga foi capturada, se tivesse podido decidir entre morrer e ser venerada durante séculos, ou viver e continuar a abanar a cauda na lama do charco, o que teria es colhido?"

"Escolheria viver e abanar a cauda na lama do charco", responderam os mandarins.

"Podem ir embora. Eu também escolho continuar a abanar a minha cauda na lama do charco".

Em oposição, o pescador de homens, não de peixes, é Tai Gong que costumava sentar-se nas margens do rio Wei, fingindo pescar. Na realidade, aguardava alguém que o descobrisse e lhe oferecesse um cargo importante. Ao setenta anos foi encontrado por Wen Wang, prín cipe do reino de Zhou, que fez dele seu conselheiro.

(2) O mundo dos funcionários do império, os mandarins.

(3) O mundo dos homens de negócios.

(4) No Livro de Zhuangzi, cap. 25, a famosa passagem dos dois reinos situados nos cominhos esquerdo e direito de um caracol, que viviam em guerra permanente.

* Orientalista. Bolseiro do ICM.

desde a p. 103
até a p.