Dentro da multiplicidade de leituras que permite, a obra de Fernão Mendes Pinto é, não só um lugar de Encontro do Europeu com o Universo Asiático mas também o lugar da Demanda de um Imaginário e da verificação de uma expectativa. Não de um Imaginário cristalizado a partir, por exemplo, da obra do inglês John de Mandeville, redigida por volta de 1360, ou do Itinerarium do franciscano Wilhelm von Ru-bruk, enviado por S. Luís de França a Caracorum, capital da Mongólia, ou ainda dos relatos de Pian del Carpino e de uma pequena hoste de monges itinerantes que, durante a Idade Média, atingiram o Extremo Oriente e regressaram. Relatos cristalizados que culminaram, certamente, com a obra de Marco Polo que alimentou a esperança e o desejo da Europa medieval. É, pelo contrário, a apresentação ou representação de um Imaginário que tem como referente a própria face, perturbadora do Real, que constitui a matéria, o suporte e o motivo da Peregrinação.
Nesta abordagem particularizada não se pretende senão tentar definir o modelo segundo o qual surge, aos olhos ávidos mas ingénuos do homem quinhentista, de que tomámos como paradigma Fernão Mendes Pinto, a cidade (ou as cidades) oriental.
Não nos interessarão, e não pretendemos estabelecer, os limites ou fronteiras da veracidade, no seu sentido positivo, como tentou, entre outros, Jordão de Freitas, nem proceder à identificação dos lugares, ou demonstrar essa impossibilidade de saber se sim ou não Fernão lá esteve, ou ainda se, na obra publicada trinta e um anos depois da sua morte, são detectáveis as marcas duma manipulação. Partimos, antes, de um princípio, do qual não nos afastaremos, ao encarar esta obra, caudalosa e talvez inclassificável em termos de género, como uma obra literária, com tudo o que implica de criatividade, ficção e liberdade no domínio do imaginário. Como obra literária, cuja temática é a Viagem, ela surge, em primeira instância e de imediato, como representação de uma transformação qualitativa, accionada pelo Homem, agente, motor e objecto de transformação. E, dentro desse esquema, tomado como uma exemplaridade narrativa, creio que podemos concluir que ela constitui a transformação do homem rural no homem urbano e que, em última análise, a viagem se faz em busca da Cidade; o seu fim é o encontro e a definição de Cidade, não da Cidade utópica mas da Cidade real, ainda que correspondendo, como creio poder mostrar, ao "Mito de Megalópolis", de que fala Lewis Mumford (A Cidade na História, Un. Brasília).
Com efeito, a impressão que se colhe da leitura do complexo, intrincado e infindável itinerário de Fernão Mendes Pinto é que da tipologia urbanística que decorre do relato das suas andanças, só a Cidade merece, da parte do sujeito, a honra de descrição, da parte do observador a do olhar, da parte do viajante a da vilegiatura. Matos, sertões, castelos, fortalezas, lugares e aldeias são para ele marcos miliários e de passagem, para atingir o lugar privilegiado que será a Cidade, mais ainda, Megalópolis, configurada ou, se quisermos, materializada na Cidade de Pequim (cap. 89°): "Continuando nosso caminho por este rio acima, não vimos nos primeiros dois dias nenhũa vila nem cidade notavel nem edifício de que se possa fazer menção, senão somente grande quantidade de aldeias e lugares pequenos de duzentos e trezentos vizinhos que estavam ao longo da água, os quais, segundo suas mostras e o pouco aparato de seus edifícios pareciam ser de pescadores e de gente pobre que vivia por seu trabalho. E tudo o mais pela terra dentro, quanto alcançava a vista, eram bosques de grandes pinhais e arvoredos e soutos e laranjais e campinas de trigos, arrozes, milhos, painços, cevadas, centeios, legumes, Linhos e algodões (...)". Fernão, porém, passa à frente. A meta dos seus passos é sempre a Cidade. Como em vertiginosa passagem, desfilam pelos seus e nossos olhos os extensos espaços, habitados ou não, que constituem o espaço extra-urbano. Aí, Fernão não se detém, a menos que forçado e só quando forçado.
Antecipando, de certo modo, a conclusão, quase poderíamos dizer que a Cidade Oriental, a cidade exótica é, na Peregrinação, ao mesmo tempo metoní-mia e ícone, e corresponde a uma imagem, ou melhor, a um imaginário que através da experiência verificadora transforma a expectativa numa referência.
Com efeito, confrontado com "o estrangeiro do cabo do mundo", "de terra e de nação tão remota que até então não havia ali de nós nenhũa notícia nem livro ou escritura algũa que fizesse menção do nosso nome, nem se achava quem entendesse nossa linguagem", o Oriental operava in absentia, na construção da imagem que só através do discurso podia captar. O Oriental só poderá saber aquilo que os Europeus quiserem ou deixarem que ele saiba e não tem meio de verificação. O seu saber é, pois, limitado pelo próprio informador, pelo seu interesse ou pela sua estratégia, como instrumento de auto-defesa ou prossecução de objectivos. Eis apenas um de entre os múltiplos exemplos (cap. 4åmp; o): "(Na povoação de Fumbau) nos fomos com Anrique Barbosa e c'os quarenta Portugueses ao aposento onde a princesa vivia (...). E mandando-nos assentar em ũas esteiras (...) nos esteve perguntando (...) por algũas cousas novas e curiosas (...) e o poder que el-rei de Portugal tinha na India se era grande, e quantas fortalezas havia (...) e em que terras estavam e outras muitas cousas desta maneira ". E acrescenta o texto: "das respostas que os nossos lhe davam mostrava ficar satisfeita".
O Europeu, por seu lado, vai operar in praesentia, e aí encontramos privilegiados os mecanismos de um pensamento analógico que instrumentaliza ora a similitude ora a dissemelhança. Na Peregrinação o sujeito pensa analogicamente e a analogia é instaurada como método de aproximação explícita do Real, aproximação que pode, é certo, surgir metamorfoseada, quer por efeito da hipérbole, quer por efeito de deformações eufóriças ou disfóricas.
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até a p.