Linguística

Camilo Pessanha: O poeta, o jurista e o homem

Celina Veiga de Oliveira*

PORTUGAL - SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

No mesmo ano em que o Ministro da Justiça Barjona de Freitas consegue nas Cortes a abolição da pena de morte, "a pena que paga o sangue com sangue, que mata mas não corrige, que vinga mas não melhora"1, nasce em Coimbra Camilo Pessanha.

Camilo Pessanha aos dezasseis anos. Uma das raras fotos do poeta incluídas no livro "Camilo Pessanha - A Imagem e o Verbo", de Daniel Pires, a editar pelo ICM. (Extraída de "Camilo Pessanha: Elementos para o estudo da sua Biografia e da sua Obra", de António Dias Miguel).

Estamos em 1867, data em que as mesmas Cortes promulgam o Código Civil do Visconde de Sea-bra, o qual substitui, por fim, as desajustadas Ordenações Filipinas.

Colocamos esta nota jurídica porque Camilo Pessanha, para além de ter sido o maior poeta do Sim-bolismo português, foi igualmente um jurista distinto.

O País respirava, por esses tempos, a paz da Regeneração, levemente perturbada pelos ecos ainda frescos da célebre Questão Coimbrã, polémica literária que, em 1865 e 66, tinha colocado frente a frente uma geração académica imbuída do novo espírito científico europeu e uma cultura oficial, conformista e estagnada, que vivia à sombra do prestigiado poeta António Feliciano de Castilho, o "Árcade Póstumo", como era apelidado pelos jovens irreverentes.

Pelos caminhos de ferro, rompiam cada dia descendo da França e da Alemanha, "torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários" 2, que contribuíram para a afirmação da escola realista e influenciaram a realização das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, sob o impulso ardente de Antero de Quental e de Eça de Queirós.

Entretanto, Camilo Pessanha cumpria a sua infância - "a minha infância virtual, pois que eu não me lembro de ter tido uma infância"- por vários sítios, num constante deambular: Coimbra, Tábua (terra da Mãe, na Beira Alta), Açores e Lamego, acompanhando o pai, magistrado.

Aos 17 anos, em 1884, entrava na Universidade de Coimbra, no mesmo dia em que era legitimado. Esta tardia legitimação, se bem que lhe tivesse conferido dignidade social no meio académico, nunca apagou o vexame, interiorizado desde a infância, pela situação da mãe, condenada toda a vida a ser criada ou governanta da casa:

Quem poluíu, quem rasgou os meus lençóis de linho.

Onde esperei morrer, - meus tão castos lençóis?

Do meu jardim exíguo os altos girassóis,

Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)

A mesa de eu cear, - tábua tosca de pinho?

E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?

- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...

Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.

Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...

Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais.

Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,

De noite a mendigar à porta dos casais.

O início do seu curso de Direito coincide com a partida para a Alemanha da delegação portuguesa à Conferência de Berlim, onde as grandes potências, sob a égide de Bismarck, irão definir as normas do novo Direito Internacional no campo colonial. O di-reito histórico invocado pela nossa diplomacia necessita, para ser reconhecido, de uma ocupação efectiva, o que pressupõe uma nova partilha da África pelos países ricos e industrializados da Europa.

Portugal, pobre, com força militar reduzida e escassa mão-de-obra colonizadora, vê perigar, deste modo, a sua multissecular influência no Continente Africano.

Adensa-se o clima político e social que o Partido Republicano explora para invectivar a Monarquia pela sua incapacidade perante "as afrontas assassinas do estrangeiro ".

Mas é em 1890, com o Ultimato, supremo insulto à imagem histórica do País, que os ataques ao rei e ao regime monárquico atingem o rubro. Bradava Guerra Junqueiro:

"A Pátria é mortal a Liberdade é morta.

Noite negra sem astros, sem faróis!

Ri o estrangeiro odioso à nossa porta.

Guarda a infâmia os sepulcros dos Heróis!"3

E Camilo Pessanha? A sua "vibrátil emotividade de português" vai ditar-lhe um lamento pela Pátria magoada:

"Eu vi a luz em um país perdido.

A minha alma é lânguida e inerme.

Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!

No chão sumir-se, como faz um verme..."

"Que desgraça nascer em Portugal!"- dissera António Nobre... Esta tomada de consciência de um estado, para os poetas já irreversível, de decadência social e cultural, que origina um sentimento difuso de incomodidade e de inquietação, é um mal de "fin de siècle" - o Decadentismo.

Em 1885, Camilo Pessanha escreve, não tocado ainda por esse Decadentismo, a primeira poesia- Lúbrica - quente, sensual e onírica, prenunciando já a sua aventura no Oriente:

Quando a vejo, de tarde, na alameda,

Arrastando com ar de antiga fada,

Pela rama da murta despontada,

A saia transparente de alva seda,

E medito no gozo que promete

A sua boca fresca, pequenina,

E o seio mergulhado em renda fina,

Sob a curva ligeira do corpete,

Pela mente me passa em nuvem densa

Um tropel infinito de desejos:

Quero, às vezes, sorvê-la, em grandes beijos.

Da luxúria febril na chama intensa...

Desejo, num transporte de gigante,

Estreitá-la de rijo entre os meus braços,

Até quase esmagar nesses abraços

A sua carne branca e palpitante;

Assim, quisera eu, exausto, quando,

No delírio da gula todo absorto,

Me prostrasse, embriagado, semi-morto,

O vapor do prazer em sono brando;

Entrever, sobre fundo esvaecido,

Dos fantasmas da febre o incerto mar,

Mas sempre sob o azul do seu olhar,

Aspirando o frescor do seu vestido,

Como os ébrios chineses, delirantes,

Respiram, a dormir, o fumo quieto,

Que o seu longo cachimbo predilecto

No ambiente espalhava pouco antes...

Mas não posso contar: nada há que exceda

A nuvem de desejos que me esmaga,

Quando a vejo, da tarde à sombra vaga,

Passeando sozinha na alameda...

Coimbra é terra de poisos românticos e inspira-dores. Aí encontra o poeta ambientes propícios à criação poética; mas a cidade do Mondego é, também, terra de boémia e o jovem estudante começa a deliciar-se com a vida nocturna e com o absinto, bebida alcoólica em moda na Academia, que arruína a sua frágil estrutura física e o transforma "num esqueleto ambulante, só com os nervos a viver", como nos conta o seu colega e amigo Alberto Osório de Castro.

A esta evasão do quotidiano não deve ser alheio um secreto desgosto de amor por uma senhora de Coimbra, D. Madalena Canavarro. Desiludido e doente, o poeta refugia-se na poesia e perde o 4" Ano de Direito. Termina o curso em 1891 e inicia a actividade profissional como subdelegado do procurador régio em Mirandela, indo em seguida advogar para Óbidos. Mas Camilo Pessanha não encontra aí o seu caminho.

Aproveita a abertura, no Diário do Governo, de concurso documental para o cargo de professor do Liceu de Macau, recentemente criado, concorre e parte.

Parte com saudades do presente, único tempo real, aquele em que verdadeiramente se é, para um futuro que o poeta sente como algo virtualmente perigoso. É o princípio do seu eterno exílio, contradição nunca superada pelo poeta:

CAMINHO

Tenho sonhos cruéis; n'alma doente

Sinto um vago receio prematuro.

Vou a medo na aresta do futuro,

Embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro

Do peito afugentar bem rudemente,

Devendo, ao desmaiar sobre o poente,

Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

Porque a dor, esta falta d'harmonia,

Toda a luz desgrenhada que alumia

As almas doidamente, o céu d'agora,

Sem ela o coração é quase nada:

Um sol onde expirasse a madrugada,

Porque é só madrugada quando chora.

Chega a Macau em 1894 e vai dar aulas de Filosofia para o Liceu, onde conhece Wenceslau de Moraes, exilado voluntário como ele.

Fotomontagem, com carta de Macau de 1840. Camilo Pessanha "tropical". Fotografia tirada em Macau, certamente por volta de 1900. (Foto e legenda extraídas de "Persona 10", Edição do Centro de Estudos Pessoanos, Porto, Julho de 1984 - In "Autógrafos de poemas com variantes, correspondência, dedicatórias e fotografias de Camilo Pessanha" de Arnaldo Saraiva).
Foto oferecida, com dedicatória, a D. Ana de Castro Osório (v. fac-símile do verso).

"A certa altura, uns meliantes que por ali estacionavam bocejando, começam a movimentar-se ligeiros, trazendo para o local bancos toscos, tábuas, varas de bambu, tudo dispondo segundo um plano determinado (...). Fácil me foi, naturalmente, perceber do que se tratava, quem fosse aquela canalha. Era, na linguagem dos escritores sinólogos, os satélites: esbirros, alcaiotes, verdugos subalternos - a frandu-lagem parasita e ínfima do tribunal. Um daqueles andrajos humanos ali de rastos no chão conseguira condensar ainda energia bastante para opor a resistência de uma negativa e ia, portanto, ser submetido à tortura. Era chegado, pois, o momento de eu me retirar".

De igual modo, a sua descrição dos suplícios cometidos no campo das execuções é arrepiante para a nossa sensibilidade ocidental.

Camilo Pesanha registou, também, poetica- mente e na sua usual linguagem simbolista, cenas de violência do regime prisional que reduziam, "feras de olhos acesos" a seres inermes, "mudos", "contemplativos":

Na cadeia os bandidos presos!

O seu ar de contemplativos!

Que é das feras de olhos acesos?!

Pobres dos seus olhos cativos.

Passeiam mudos entre as grades,

Parecem peixes num aquário.

- Campo florido das Saudades

Porque rebentas tumultuário?

Serenos... Serenos... Serenos...

Trouxe-os algemados a escolta.

- Estranha taça de venenos

Meu coração sempre em revolta.

Coração, quietinho... quietinho...

Porque te insurges e blasfemas? Pschiu...

Não batas... Devagarinho...

Olha os soldados, as algemas!

No poema "Branco e Vermelho", o poeta faz desfilar a caravana sem fim dos homens subjugados:

Na areia imensa e plana

Ao longe a caravana

Sem fim, a caravana

Na linha do horizonte

Da enorme dor humana,

Da insigne dor humana...

A inútil dor humana!

Marcha, curvada a fronte.

Até o chão, curvados.

Exaustos e curvados,

Vão um a um, curvados,

Os seus magros perfis;

Escravos condenados,

No poente recortados,

Em negro recortados,

Magros, mesquinhos, vis.

A cada golpe tremem

Os que de medo tremem,

E as pálpebras me tremem

Quando o açoite vibra.

Estala! e apenas gemem,

Palidamente gemem,

A cada golpe gemem,

Que os desequilibra.

Sob o açoite caem,

A cada golpe caem,

Erguem-se logo. Caem,

Soergue-os o terror...

Até que enfim desmaiem!

Ei-los que enfim se esvaem,

Vencida, enfim, a dor...

Camilo Pcssanha, com o seu famoso cão, o "arminho".

DOENTE DA VIDA

Em 1896, Pessanha parte para Portugal, muito debilitado pelas "influências deletérias do clima e do meio". Regressa em 1897, já depois do nascimento do seu único filho, fruto da ligação com a concubina chi-nesa com quem vivia. Volta ao Reino, em 1899, para resolver um problema surgido pela acumulação do lugar de Professor do Liceu com o de Conservador do Registo Predial. De novo em Macau em 1900, por aqui se queda até 1905, altura em que, acometido de "anemia palustre", regressa a Portugal extremamente doente.

Permanece no Reino até 1909 e durante a sua longa convalescença, a situação política confere peso crescente ao Partido Republicano. Estamos na época da ditadura de João Franco, e do regicídio, em 1908. A Monarquia está agonizante!

Vai pela última vez a Portugal em 1915, de licença disciplinar. O pai, juiz do Supremo Tribunal de Justiça, vive em Lisboa com as filhas e é na Capital que Camilo Pessanha gasta a maior parte do tempo, vagueando pelos cafés do Rossio e frequentando a casa de Ana de Castro Osório, escritora e pedagoga, sua grande amiga.

Graças à paciente recolha de João de Castro Osório, filho da escritora, nasce a "Clepsidra", uma pequena colectânea com a sua obra, "tão admirável como breve, extremamente delicada de símbolos autenticamente simbolistas, multívocos e fugazes e duma envolvente musicalidade, obra gerada na intimidade, o fruto mais puro e sazonado do Simbolismo português, capaz de sofrer o paralelo com os grandes simbolistas europeus", como nos diz Jacinto do Prado Coelho.

INTERROGAÇÃO

Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,

Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;

E apesar disso, crê! nunca pensei num lar

Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.

E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.

Nem depois de acordar te procurei no leito

Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos.

Se é amar-te não sei.

Não sei se te idealizo

A tua cor sadia, o teu sorriso terno...

Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso

Que me penetra bem, como este sol de inverno.

Passo contigo a tarde e sempre sem receio

Da luz crepuscular, que enerva, que provoca

Eu não demoro o olhar na curva do teu seio

Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo...

Eu não sei que mudança a minha alma pressente...

Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,

Que adoecia talvez de te saber doente.

Floriram por engano as rosas bravas

No inverno: veio o vento desfolhá-las...

Em que cismas, meu bem? Porque me calas

As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...

Onde vamos, alheio o pensamento,

De mãos dadas? Teus olhos, que um momento

Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,

Surda, em triunfo, pétalas, de leve

Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!

Quem as esparze - quanta flor -, do céu,

Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?

Camilo Pesanha regressa imprevistamente a Macau, após ter requerido, ao Ministério da Marinha e Ultramar, desistência da licença disciplinar.

Continuam insondáveis as razões desta fuga do País. Um amor não correspondido por Ana de Castro Osório, como pretendem alguns biógrafos? Desencanto pelos passos políticos da jovem República Portuguesa? Dependência do ópio, o "fumo quieto" que o transporta para os deleites de paraísos artificiais?

Em Macau, e desta vez para sempre, o poeta passa os últimos anos da sua "árdua peregrinação na vida ".

Reparte o tempo por diversas actividades: professor de várias disciplinas no Liceu; estudioso da língua e da civilização chinesa; conservador do Registo Predial; juiz de Direito substituto; auditor dos Conselhos de Guerra; vogal da Comissão de Assistência Judiciária e advogado.

Camilo Pessanha em fotografia de grupo, corpo docente e discente do Liceu de Macau. Reconhecem-se Silva Mendes, Luís Gonzaga Gomes e António Conceição.

CAMILO PESSANHA JURISTA

Quando chega a Macau, em 1894, Camilo Pes-sanha pensa instalar-se com banca de advogado, mas encontra alguma resistência nos colegas de profissão, receosos da concorrência.

Numa carta ao pai, conta: "Sei que uns seis trampolineiros de provisionários, que ganham em média 3400 patacas, ou seja pouco mais ou menos dois contos de reis anuais me fazem uma guerra de descrédito como invejosos e ameaçados nos seus interesses, (...). Eu espero que a alguns hei-de tirar se não as três mil patacas, pelo menos metade".

Em Janeiro de 1899, Pessanha é nomeado pela primeira vez juiz substituto da Comarca e, no mês seguinte, conservador do Registo Predial, tendo tomado posse unicamente a 23 de Junho de 1900.5

Em 1904, o magistrado Camilo de Almeida Pessanha, juiz substituto, é alvo de uma campanha de detracção, movida por dois advogados, Luís Gonzaga Nolasco da Silva e Manuel da Silva Mendes que o acusam, em queixa ao Governador da Província, de "relaxação" dos serviços de justiça.

Elucidativo a este respeito, é o processo que, por deferência do Instituto Jurídico de Macau, nos foi possível consultar.

Fac-similes do processo citado: capa, primeira e última página assinada por Camilo Pessanha.

São réus quatro chineses, acusados de um crime de furto, sendo o ofendido, por irónico que pareça, o Delegado do Procurador da Coroa e Fazenda, Luís Gonçalves Forte. No impedimento do titular, o Dr. Luís Gonzaga Nolasco da Silva é nomeado, pelo juiz Pessanha, agente do Ministério Público "ad hoc".

Tomando conta do processo, o Magistrado "ad hoc" promoveu a "avaliação por peritos dos objectos furtados e inquirição das testemunhas". O Meritíssimo Juiz, porém, apesar de se tratar de vários presos, não deu rápido andamento ao processo, demorando--o a ponto de o agente do Ministério Público, no cumprimento dos seus deveres, passados que foram 15 dias sobre a prisão e entrega em juízo dos acusados, ter promovido que fossem postos em liberdade, fundado no disposto no art° 988 da Novíssima Reforma Judiciária e na alínea 2 do art° 25 do Regimento da Procuratura.

Resposta do Meritíssimo Juiz Pessanha: "Salva a minha consideração pela opinião do M. P., indefiro a petição que antecede. O crime por cuja suspeita se encontram presos os indivíduos cuja soltura promoveu, não é o de furto, mas o de roubo (...) que pela legislação anterior se chamava furto violento (...) o qual admite a prisão sem culpa formada.

"Ora a minha opinião é que nos casos exceptuados pelo citado art° da Nov. Reforma, não tem aplicação o art° 988, da mesma reforma, nem em Macau a tem a norma que amplia a 15 dias o tempo pelo qual pode durar a prisão antes da pronúncia, sendo chinas os presos.

"Não restringe a lei o número de vezes em que em tais casos os mesmos indivíduos possam ser presos por um mesmo crime; e absurdo seria limitá-lo, porque a mesma captura, em face da simples denúncia ou de vagos indícios, exige a continuação do estado de custódia, até que pelo despacho de não pronúncia ou pela absolvição final se tenha reconhecido ser a denúncia falsa, ou os indícios ilusórios. E soltar os presos para imediatamente tornar a recolhê-los à cadeia, e assim por prazos sucessivos de oito ou de quinze dias, seria uma superfluidade, que não atenuaria antes agravaria, por uma espécie de irrisão, incompatível. com a gravidade da lei e dos tribunais, a situação do preso.

"A instrução do presente processo não pôde concluir-se infelizmente, e por causa da acumulação no tribunal de outros trabalhos igualmente ponderosos e urgentes, com a brevidade que, por todos os motivos, seria de desejar. Não importa isso, porém. No caso presente, as condições especiais da colónia justificam plenamente (...) a prisão antes de formada a culpa (...) e, em meu entender a continuação dela (...). Intime-se o M. P., mas antes disso voltam os autos conclusos ".

Inconformado, o Dr. Luís Gonzaga Nolasco da Silva interpõe recurso para o Tribunal da Relação de Goa. Historiando o processo, desmonta toda a argumentação do Meritíssimo Juiz com bastante agressi-vidade, como se pode verificar por estas passagens:

"Senhor! O que houve foi desleixo, foi desprezo pela seriedade do Tribunal. Como estes há muitos presos que há muitos meses se acham na cadeia sem culpa formada. Ainda há menos de um mês, só num dia, requereram uns doze presos a sua soltura por esse motivo. E sabe Deus quantos estarão à espera que se lhes forme processo. Não pode o Meritíssimo Juiz dizer com verdade que é falta de tempo. É falta de trabalho, é desleixo, e desprezo pelos seus deveres e pelos direitos alheios (...). A tal ponto de relaxação chegaram os serviços deste Tribunal que alguns advogados desta comarca se viram obrigados a fazer uma queixa formal contra o Meritíssimo Juiz, a qual foi entregue nas mãos do Sr. Governador da Província para ser levada ao conhecimento de Sua Majestade".

Das muitas acusações formuladas pelo agente do Mínistério Público «ad hoc», apontam-se as seguintes, mais significativas:

"(...) Houve um réu que foi absolvido, mas que se conservou retido na cadeia por se esquecer o Sr. Juiz de assinar o competente mandado de soltura.

"(...) Grande número de sentenças criminais consistem apenas em simples apontamentos escritos a lápis e em algarismos, sem fundamentos, nas costas dos processos; e alguns processos há já julgados, em que nem tais apontamentos existem.

"(...) As audiências ordinárias abrem-se e fecham-se a horas completamente arbitrárias, e por vezes não se conservam abertas pelo tempo que a lei marca.

"Senhor! Estas e outras irregularidades havidas no Tribunal de Macau têm sido prejudiciais ao bom nome da nação portuguesa e ofendido bastante o prestígio da autoridade judicial.

"É preciso, pois, que se ponha cobro a um tal estado de coisas, que eu, na qualidade de agente do M. P. não posso consentir. É preciso que a liberdade de um indivívuo, embora china, seja tida em maior conta, e que a Lei se cumpra absolutamente, sem sofismas ou interpretações forçadas (...)".

Sobre este agravo de petição, escreve o Juiz Pessanha:

"Senhor!

"Mantenho o despacho agravado pelos seus fundamentos. A petição do agravo quase se reduz a um libelo contra o juiz - libelo que na mesma petição se diz ser reproduzido de uma queixa contra o mesmo juiz ao Governador da Província por 2 advogados da comarca. De tal queixa não tive conhecimento, e se foi efectivamente feita, deve conservar-se secreta. Parece, pois, que um dos seus dois autores deve ser o próprio agente do M. P. Não é este o lugar para responder a este libelo (...)".

E o juiz passa a fundamentar o teor do seu despacho de acordo com a sua "sincera interpretação de lei", ponderando que "nas Ordenações vigentes ao tempo da publicação da Reforma não se distinguia entre "furto" e "roubo"; tratava-se das diversas espécies de subtracção de coisa alheia, punindo-as segundo as circunstâncias de que eram acompanhadas -entre essas, a levada a efeito por força ou violência contra as pessoas e a realizada por meio de arrombamento ou escalamento (força ou violência para com as coisas). (...) Sei bem que a jurisprudência dos tribunais superiores se tem fixado em sentido diferente da doutrina que no mesmo despacho sustento. (...) Se tal interpretação não é a melhor, o Venerando Tribunal da Relação a corrigirá".

O Tribunal da Relação corrigiu-a, dando razão ao recorrente...

Terá esta pequena contrariedade, aliada a um inegável excesso de trabalho, agravado o estado de saúde já crítico de Camilo Pessanha? O certo é que, no ano seguinte, em 1905, chega a Portugal tão doente que põe em dúvida ser capaz de aguentar a viagem:

"(...) Parti de Macau sem esperança de arribar a este torrão das minhas saudades, ao qual exclusivamente a minha alma pertence. (...) Os ossos, mesquinhos, ai de mim! esses pertencem por um destino invencível e absurdo, ao chão antipático do exílio (...)".

Um outro processo, de 1919, por nós compulsado, é também um recurso para o Tribunal de Goa; nele, Camilo Pessanha é advogado só de parte dos agravantes na apelação.

Agravado: o Ministério Público.

Motivo do recurso: prisão de quatro indivíduos, três portugueses e um chinês, por despacho proferido pelo digno Conservador, servindo de Juiz de Direito da comarca, Dr. Augusto Carlos Afonso Marques6, pelo suposto facto de terem levantado da caixa do Tesouro do Estado, a cargo da Agência do Banco Nacional Ultramarino desta Cidade, várias quantias de dinheiro, somando S43.890,00 patacas, através de títulos de despesa pública falsificados.

A alegação, enorme, é uma desmontagem lógica e coerente do processo, propondo-se ser o processo do processo. Significativamente, Camilo Pessanha intitula-a de "Desorientação" e a Nota Final da referida alegação é a justificação desse título.

No entanto, o Sábio Tribunal "ad quem" daRelação de Goa, confirmou o despacho lançado contra os réus, não os despronunciando.

A Nota Final é um contundente libelo contra "a carência dos mais imprescindíveis elementos de investigação" no Território, impossibilitando-se uma "eficaz repressão da criminalidade" e permitindo-se que permaneçam "impunes, na sua quase totalidade, os crimes de alguma gravidade". Mais grave ainda é a eventual condenação de acusados, fundada exclusivamente na prova testemunhal, sem outras investigações complementares.

Solução condigna a um tal estado de coisas é, no entender de Camilo Pessanha, a "criação de um juizo de instrução criminal e dos indispensáveis institutos auxiliares", modo de dignificar a imagem da justiça em Macau, "única prova prática no Extremo Oriente da cultura e da capacidade colonizadora portuguesas".

Vejamos alguns passos:

"Mas outros crimes incomparavelmente mais graves do que o de burla são frequentes em Macau e ficam ordinariamente impunes, sem que por causa de tal impunidade alguém ainda haja perdido o sono. É escandalosamente frequente, pelo menos em certos anos, como ninguém ignora o crime gravíssimo de fogo posto - um dos poucos em que a lei autoriza, sem culpa formada, a prisão dos suspeitos. De raros desses incêndios criminosos chega a notícia ao tribunal: aí são pouquíssimos aqueles em que o processo vai até à pronúncia; e, finalmente, não há memória da condenação em Macau de um único incendiário.

"Crime dos mais hediondos justamente colocado por todos os legisladores acima do de homicídio é o de venefício7, muito vulgar na China. Razões de diversa ordem fazem presumir que em Macau ele seja frequentíssimo. Todavia, as estatísticas criminais não mencionam um só caso de envenenamento.

"Nem o poderiam mencionar, visto que a cons- tatação desse crime depende de um exame toxicológico, e em Macau nem há laboratório em que esse exame se faça, nem a possibilidade de ele se mandar fazer, validamente, em outra parte. (...) A grande maioria desses homicídios, ou pelos requintes de tortura com que são praticados e que o estado dos cadáveres evidencia, ou por certas singularidades inexplicáveis que dão a outros um ar perturbante de quase mistérios rituais, teriam na Europa, se ali fossem cometidos, as honras da celebridade, apaixonando a opinião pública (...). Em Macau passam despercebidos no meio da geral indiferença - espécie de apatia afectiva e moral que chega a parecer imbecilidade.

"E as autoridades o que fazem?

"O comissariado da polícia dá parte ao Tribunal de que foi encontrado o cadáver, indicando duas testemunhas. O juiz procede ao exame directo e inquire as duas testemunhas que, por via de regra, nem conheciam o morto, nem acerca do crime sabem alguma coisa: foram apontadas, porque iam passando quando a polícia chegou ao local.

"Depois o processo aguarda no cartório (é a fórmula), indefinidamente, que apareçam elementos para poder prosseguir. Valeria a pena fazer-se a estatística dos processos que jazem no limbo nessas condições, relativos a crimes ainda não prescritos, por terem sido cometidos nos últimos quinze anos, e dos relativos a crimes já prescritos, cometidos, por exemplo, nos dez anos imediatamente anteriores a esses últimos quinze. Raras vezes se consegue, sequer, identificar a vítima. Descobrir quem tenham sido os assassinos é ainda mais raro. Finalmente lançar-lhes mão a justiça é caso verdadeiramente excepcional".

O FIM DO FIM

Em 1925, um ano antes de morrer, Camilo Pes-sanha é nomeado Reitor substituto do Liceu mas, passados alguns meses, pede a exoneração.

Está muito doente e próximo do fim.

O poeta pode, agora, libertar-se da sua irremissível incapacidade de adaptação à vida, que um destino antipático dividira entre dois abismos "tão distantes um do outro".

O poeta pode, agora, aceitar com irónico distanciamento e mansa indiferença, o destino comum a todos os homens:

Porque o melhor, enfim

É não ouvir nem ver...

Passarem sobre mim

E nada me doer!

Rixas, tumultos, lutas,

Não me fazerem dano...

Alheio às vãs labutas,

Às estações do ano.

E eu sob a terra firme,

Compacta, recalcada,

Muito quietinho. A rir-me

De não me doer nada.

Morte apetecida, desejada, "doce esvaimento" que o transportará à "imortal serenidade" dos

"(...) céus claros e amenos

Doces jardins amenos,

Onde se sofre menos,

Onde dormem as almas". 8

Dormir, finalmente, "sem desejo e sem saudade das coisas não logradas ou perdidas ".

Texto da conferência feita pela autora na sala de Audiências do Tribunal da Comarca de Macau, no âmbito da actividade cultural do Instituto Jurídico de Macau, em 23 de Novembro de

NOTAS

1 Relatório do Ministro da Justiça Augusto César Barjona de Freitas que antecede a proposta de abolição da pena de morte, submetida à discussão na Câmara dos Deputados, em 18 de Junho de 1867.

2 Eça de Queirós-in "Geração de 70" - Dicionário de Literatura.

3 Guerra Junqueiro - "O caçador Simão" - Finis Patriae.

4 História de Portugal de Joaquim Veríssimo Serrão - Vol. X (1890-1910)-Editorial Verbo.

5 Aquando da realização desta Conferência, foi-nos possibilitada, pelo Instituto Jurídico de Macau, a consulta de alguns processos de Camilo Pessanha. Destes, escolhemos dois: um, em que o poeta intervém na sua qualidade de juiz substituto e outro em que é advogado. Presentemente, está a ser feita e em fase adiantada, a inventariação, microfilmagem e informatização do seu es pólio jurídico, cuja coordenação é da nossa responsabilidade.

6 Por decreto de 28 de Fevereiro de 1919, Camilo Pessanha, Conservador do Registo Predial na comarca de Macau, é exonerado, a seu pedido, do referido lugar para que fora nomeado por decreto de 16 de Fevereiro de 1899 (Boletim Oficial, n° 22-31 de Maio de 1919).

7 Envenenamento.

8 Cit. por Danilo Barreiros in O Testamento de Camilo Pessanha -Lisboa, 1961. 1988.

*Licenciada em Historia (Univ Coimbra); Professora de "História de Ma- cau" Investigadora

desde a p. 90
até a p.