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As relações luso-chinesas através de Macau nos séculos XVI e XVII

Isaú Santos*

OS PRIMEIROS CONTACTOS

Foi Marco Polo quem nos forneceu, pela primeira vez, informações sobre a China. Envoltas embora em denso manto de nevoeiro, elas não deixaram, contudo, de constituir uma novidade. Mas o verdadeiro conhecimento do Celeste Império só se alcançaria alguns séculos mais tarde com os Portugueses, para quem descobrir mundos já fazia parte do seu quotidiano.

Os avanços sucessivos nos Descobrimentos iam deixando postos avançados para novos empreendimentos; foi o que aconteceu com Malaca em relação à China. A conquista daquele território, em 1511, foi pois determinante para os primeiros contactos com o Império do Meio. Ali frutificou a ideia de atingir a China.

E como nasceu nos Portugueses a intenção de chegarem à China? Após o Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, D. Manuel I tivera a notícia da existência de um povo - o Chinês - de características diferentes daqueles que até ali eram conhecidos. O rei Venturoso, entusiasmado com a informação que acabara de receber, reforçando o relato de Marco Polo, expede Diogo Lopes de Sequeira, em 13 de Fevereiro de 1508, com instruções para descobrir terras entre a ilha de S. Lourenço e Malaca e para recolher notícias precisas acerca da China, do seu povo, do seu comércio e da sua religião.

Por outro lado, Afonso de Albuquerque, que acabara de conquistar Malaca, encontra ali alguns Chineses que são rodeados de todo o carinho. O grande capitão proporciona-lhes meios para poderem regressar à sua terra. Esta atitude de Albuquerque não estaria, porventura, relacionada com os desejos de D. Manuel de recolher informações do Celeste Império?

Os Portugueses, mal refeitos do grande desgaste provocado pela viagem do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, já pensam em meter-se noutro empreendimento, isto é, o de alcançar a China, país cuja riqueza estava vedada ao recém-nascido capitalismo europeu.

Tudo preparado, inicia-se a aventura da China. Jorge Álvares, companheiro de armas de Afonso de Albuquerque, deixa Malaca, rumo ao Império do Meio.

Não se tratava, fundamentalmente, de uma viagem de exploração económica, embora se reconheça que este aspecto não deveria andar muito arredado das intenções dos nossos exploradores. Pretendia-se, em primeira mão, obter informações sobre a situação geográfica da China e, depois, sobre os centros mais importantes do seu comércio marítimo. De onde se infere que já nesta primeira viagem eles tivessem, muito provavelmente, visitado Cantão, o principal porto comercial da China.

Tamão, ilha localizada na desembocadura do rio das Pérolas, é alcançada por alturas de 1513 e, aqui, Jorge Álvares levanta um padrão com as armas de Portugal.

O propósito de um contacto mais duradouro com a China supera todas as dificuldades. Assim, em 1516, Rafael Perestrelo, italiano ao serviço de Portugal, é incumbido pelo governador de Malaca, Jorge de Albuquerque, de tentar nova penetração na China e, desta vez, já com objectivos comerciais. Atinge Cantão e, no regresso, entusiasmado com o que vira, convence as autoridades portuguesas acerca das vantagens de se mandar uma embaixada ao Celeste Império.

As sugestões de Perestrelo foram bem acolhidas e de Lisboa saiu uma frota, com carácter oficial, para iniciar relações diplomáticas com a China. À testa da missão se-gue Fernão Peres de Andrade, aureolado com o pomposo título de "Capitão-Mor da Viagem da China", e na qualidade de embaixador vai o farmacêutico e naturalista Tomé Pires.

A frota, após os últimos preparativos em Goa e Malaca, alcança a ilha de Tamão em Agosto de 1517. Daqui ruma a Cantão onde deixa Tomé Pires e comitiva com cartas e presentes para o imperador da China.

Fernão Peres desempenha com sucesso tudo o que se relaciona com a actividade comercial. Na ânsia de fazer mais e melhor despacha um seu companheiro a quem incumbe de reconhecer a costa chinesa até Chincheu, no intuito de obter informações sobre a ilha de Liu-Kiu, rebaptizada, depois, pelos Portugueses com o nome de Formosa.

Se a missão comercial e de exploração da costa chinesa constituiu um êxito, a diplomática foi um desastre. As atitudes condenáveis de Simão Peres de Andrade, irmão de Fernão Peres de Andrade, foram responsáveis pelo sucessivos adiamentos das autoridades chinesas em receber o embaixador e sua comitiva. Com efeito, Simão Peres, enviado para saber notícias de Tomé Pires, ao chegar a Tamão levanta uma fortaleza e ataca alguns navios chineses.

Para agravar ainda mais a situação, os Chineses repudiaram o estilo em que a carta apresentada por Tomé Pires foi redigida, invocando que ela não respeitava os preceitos de humildade exigidos pela corte imperial (1).

Para que esta situação se tornasse ainda mais insustentável para a embaixada portuguesa na Corte de Pequim, o rei de Bintão, protegido do imperador da China, pede-lhe que não receba os Portugueses, por estes lhe terem conquistado Malaca; o imperador que não se iludisse acerca dos novos intrusos: o que eles pretendiam era conhecer bem a situação do país, com o intuito de conquistar parte dele.

Profundamente chocados com tudo isto, os Chineses prendem Tomé Pires que, no seu longo cativeiro, encontra a morte.

A aversão a tudo o que fosse estrangeiro alastra. Um decreto imperial ordena a expulsão de todos os forasteiros, proíbe o comércio com eles e fecha o porto de Cantão à navegação estrangeira.

Os Portugueses não se desencorajam. Decidem avançar mais no prosseguimento dos objectivos a que se propuseram. Terem vindo de tão longe para deixar cair tão depressa os intentos de levar por diante a expansão do seu comércio, da sua civilização e da sua religião, não estava nos seus propósitos.

No entanto, a situação continuava a não conhecer melhoria. Martim Afonso de Melo Coutinho, que é enviado à frente de uma frota para tentar um tratado de paz, amizade e comércio com a China, é acolhido como se de um inimigo se tratasse e obrigado a retirar-se com pesadas baixas.

Não obstante estes sinais de hostilidade que duraram de 1522 a 1554, os Portugueses nunca deixaram de frequentar os mares e portos da China, no exercício da sua actividade comercial. Até houve um intenso tráfico clandestino com colaboração mais ou menos velada das autoridades subalternas chinesas, empenhadas, também elas, nesse lucrativo negócio. Por mais estranho que pareça, foi ainda nesta ocasião que os Portugueses estabeleceram algumas feitorias no litoral chinês, como as do Liampó e Chincheu. Isto explica-se se atendermos a que, na China, o poder central, à maneira feudal, exercia-se nas províncias através de governa-dores ou mandarins que se haviam como reis absolutos.

O estabelecimento de Chincheu cresceu rapidamente. Mas os mandarins, receosos de que este desenvolvimento pusesse a descoberto, perante as autoridades centrais, a sua conivência com os comerciantes portugueses, proíbem todos os contactos neste sentido. Estala a guerra contra os Portugueses e, de quinhentos que residiam em Chincheu, apenas trinta se salvaram.

Com a descoberta do Japão, em 1542, novas perspectivas de comércio se abrem. Como o tráfico entre Chineses e Japoneses era mutuamente proibido, disso vão aproveitar os Portugueses que, por feliz coincidência, detinham o exclusivo da circulação e da comercialização dos produtos.

A situação melhora e os Portugueses aproveitam a oportunidade para voltar às feitorias de Liampó e Chincheu, que conhecem um espectacular impulso com o comércio do Japão.

Pequim, sentindo-se prejudicado, volta a expulsar os Portugueses das duas feitorias em 1548. Mas eles, pertinazes, não desarmaram. Perdidas as posições no Norte, dirigem-se agora para o Sul, de onde seriam igualmente expulsos.

Todos beneficiavam com o comércio português, legal ou clandestino. O que se impunha, neste último caso, era encontrar uma saída que não comprometesse ninguém, muito especialmente as autoridades provinciais chinesas.

Estas, perante as inequívocas vantagens deste tráfico, mostram indícios de uma certa abertura.

Por volta de 1550, as relações comerciais luso-chinesas experimentam alguns progressos: os Portugueses são, com efeito, autorizados pelos mandarins de Cantão a estabelecer uma feitoria na ilha de Sanchuang, no delta do rio das Pérolas, ilha que teve mais tarde o privilégio de assistir aos últimos momentos de vida de S. Francisco Xavier.

Esta feitoria seria depois abandonada e os Portugueses acabariam por construir uma outra na ilha de Lampacau, a meia distância entre Sanchuang e a futura Macau.

As coisas pareciam suavizar-se entre Chineses e Portugueses e aproximava-se, a passos largos, o momento de estes se estabelecerem em Macau, pequena porção de terra na embocadura do rio das Pérolas que materializaria a presença lusa no Extremo Oriente.

Cabe esta honra ao capitão Leonel de Sousa que, à frente de uma força naval, consegue do governador de Cantão licença para os Portugueses se fixarem em Macau, normalizando-se, deste modo, as relações de comércio e de navegação entre Portugal e a China.

São desta época (1550-1557) os primeiros contactos dos Portugueses com Macau, pequena aldeia de pescadores.

O ESTABELECIMENTO DOS PORTUGUESES EM MACAU

Nenhum significado tinha Macau para o Império do Meio quando ali aportaram os Portugueses. A China, empenhada em administrar o seu imenso território, pouca importância atribuía à minúscula península do litoral.

O comércio realizado em Macau era insignificante em relação ao enorme tráfico que se processava no interior da China entre as suas várias províncias. Além disso, o comércio marítimo, porque implicava contactos com estrangeiros, não fazia parte da sua actividade económica. É assim que se explica o peso e o valor das cidades do interior em relação às povoações ribeirinhas que viviam, praticamente, entregues à sua sorte e aos caprichos dos mandarins locais.

Esta gente formava uma classe à parte, vivia da pesca e do pequeno comércio, organizava-se como podia e, por isso, não é de estranhar que a chegada dos Portugueses a Macau pouca atenção tivesse despertado nas autoridades centrais chinesas.

As suas tentativas para o estabelecimento das relações comerciais com a metrópole do sul (Cantão) esbarravam com mil e um escolhos. Uma série de mal-entendidos de origem muito diversa deitava quase sempre tudo a perder.

A ausência de qualquer tipo de relacio-namento comercial estável fez surgir uma espécie de contrabando, com apoio velado dos mandarins, em vários portos do litoral de Kuangtung, Fukien e Chekiang.

Esta situação, que não satisfazia as partes envolvidas, arrastou-se até cerca de 1554, data provável em que Chineses e Portugueses tentaram uma aproximação na ilha de Sanchuang, através de troca comercial de pequena monta.

Aqui também, para não fugir à regra, a actividade comercial foi efémera. Os Portugueses compreenderam de imediato esta situação ao construirem algumas cabanas de consistência precária para as suas operações comerciais, processadas de Agosto a Novembro de cada ano.

Inconformados, mas não convencidos, passaram para a ilha de Lampacau, situada mais a leste, por volta de 1555.

No horizonte nuvens brancas pressa-giavam futuro próspero para os Portugueses que, a passos de gigante, avançavam em direcção a Macau, onde a prosperidade e a segurança os esperavam.

A data exacta da sua chegada a Macau continua por precisar.

O que se sabe, com certeza, é que eles entre 1553 e 1554 ainda se encontravam em Sanchuang e Lampacau (2).

Podemos, pois, avançar como data provável do contacto dos Portugueses com Macau, os anos de 1555 a 1557.

Até à assinatura do tratado levado a efeito por Leonel de Sousa com o mandarim de Cantão, o comércio luso-chinês era mais ou menos clandestino.

A partir daqui as coisas começam a clarificar-se e a ganhar novos contornos.

O crescimento de Macau far-se-á à custa do abandono das outras feitorias. O carácter provisório da ocupação destas contrasta com o carácter definitivo da fixação em Macau. O lugar habitado por um número reduzido de pescadores vai transformar-se, muito brevemente, numa povoação de mercadores.

Por que motivos consentiram os Chineses que os Portugueses se estabelecessem em terra sua quando, até ali, sempre a isso se tinham oposto?

Este consentimento parece estar relacionado com o facto de os Portugueses terem, a pedido dos mandarins do sul, expulso da região os piratas que prejudicavam os interesses da China na região.

A presença portuguesa na zona garantia a paz e a segurança à navegação e ao comércio. A partir de então começaram os Chineses a reconhecer as vantagens do comércio externo e os inconvenientes do isolamento em que tinham vivido. Tirar o maior proveito possível deste comércio sem, contudo, se deixarem envolver directamente por ele naquilo que tinha de negativo, foi a via encontrada com o estabelecimento dos Portugueses em Macau.

Com a cessão deste território, os Chineses encontrariam solução para uma série de problemas com que se confrontavam: acabavam com a pirataria, criavam estabilidade na região sul, propiciavam o desenvolvimento do comércio, acautelavam a saída de nacionais para o estrangeiro e evitavam a entrada de forasteiros no país.

Macau funcionaria, assim, como uma zona neutra, onde a China iria colher benefícios do comércio externo sem ver beliscados os seus valores culturais, religiosos e éticos. Macau foi, deste modo, um expediente eficaz descoberto pelos Chineses para tirar proveito de um tráfico sem que se vissem envolvidos nos seus riscos.

Os Portugueses, porque detinham o exclusivo da circulação e da comercialização, tornaram-se donos e senhores absolutos, durante longo período, do lucrativo tráfico que efectuavam entre a China, o Japão, as Filipinas, o Sião, Malaca, a Índia e a Europa.

Podemos, pois, afirmar que Macau deteve nas suas mãos este monopólio durante cerca de 130 anos, isto é, de 1555 a 1685, altura em que o imperador Cang-Hi abriu o comércio da China aos estrangeiros.

ORGANIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DE MACAU

Os primeiros Portugueses que se estabeleceram em Macau governavam-se como podiam.

A população, composta por Portugueses oriundos de Portugal, por Portugueses nascidos na Índia, conhecidos por mestiços, por Chineses cristãos sem sangue português, chamados naturais, por Chineses gentios, por escravos negros, por Timorenses, Siameses, Japoneses, Malaios, etc., conheceu logo um rápido crescimento.

Perante esta explosão demográfica, era manifesta a necessidade de uma organização político-administrativa que conduzisse os destinos da povoação, que a breve trecho estaria com uma população de cerca de 16200 almas, sem contar mulheres e crianças. Lançavam-se assim as bases de um governo em Macau, materializado no chamado "Capitão da Terra", cargo ocupado por via eleitoral, pela primeira vez, por Diogo Pereira, em 1560.

Com o aumento da complexidade governativa, novos cargos surgem. O de ouvidor aparece em 1582 na pessoa de Matias Penela. Para o bom funcionamento do seu cargo, Penela recebe instruções formais e precisas através de um Regimento, dado em Madrid, a 16 de Fevereiro de 1587, composto de trinta e dois artigos. Para que não houvesse dúvidas quanto às suas competências, o artigo primeiro é claro: "conhecerá todas as causas cíveis e crimes" (3).

A importância sempre crescente da povoação em população, comércio e riqueza reclamava a sua elevação a cidade. Foi o que, realmente, aconteceu, por alvará de 10 de Abril de 1586 dado pelo vice-rei da Índia, D. Duarte de Meneses, conde de Tarouca. Os privilégios, as honras, as precedências, etc., eram iguais aos da cidade de Évora. Foram confirmados mais tarde por alvará régio de 18 de Abril de 1596 (4).

Em 24 de Janeiro de 1603, um alvará do rei Filipe II concedia à cidade de Macau privilégio de eleger trienalmente juiz e escrivão de órfãos, à semelhança do que acontecia nas cidades da Índia (5).

Uma burguesia mercantil em franca expansão tomava as rédeas da governação através do Senado da Câmara. A cidade não parava de crescer.

OS FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO ESTABELECIMENTO DOS PORTUGUESES EM MACAU

Não têm sido unânimes as opiniões acerca dos fundamentos jurídicos da presença portuguesa em Macau. No entanto, podemos adiantar que é convição dos historiadores, nacionais e estrangeiros, que o estabelecimento dos Portugueses em Macau ficou a dever-se ao facto de os Chineses terem querido recompensá-los pelo auxílio prestado na expulsão dos piratas dos mares do sul da China, factores da insegurança que se vivia na região.

Quais teriam sido, na verdade, as bases jurídicas que fundamentam o estabelecimento dos Portugueses em Macau? Examinemos, pois, as diversas figuras jurídicas, através das quais se pode materializar, em Direito Internacional, a posse de um território por uma potência estrangeira:

- Teria sido por conquista e, por isso, contra a vontade dos Chineses?

- Teria sido por aprovação dos mandarins de Cantão, mas sem o consentimento da corte de Pequim?

- Teria sido com a autorização de Pequim e de Cantão?

- Teria sido com a autorização directa de Pequim?

Procedamos por partes na análise destes fundamentos.

A primeira forma de aquisição provavelmente não existiu. Pelo menos, nada há que a justifique. A segunda também não parece razoável, pois a cessão de territórios a uma nação estrangeira não é assunto que caiba na jurisdição de um simples governador provincial. É atribuição da autoridade central, através de formalidades solenes; neste caso, seria a autoridade do imperador. Restam as duas últimas hipóteses. A quarta também não será de ter em conta, porquanto numa sociedade fortemente feudalizada e, por isso, extremamente hierarquizada, como era a sociedade chinesa da época, não seria fácil aos Portugueses entabularem relações directas com a autoridade máxima, isto é, com o imperador, que votava o máximo desprezo a tudo que fosse estrangeiro. A terceira hipótese é a que parece mais verosímil e, portanto, merecedora das nossas atenções. Só uma acção conjunta, hierarquizada, numa sociedade como a chinesa, poderia ter dado forma jurídica a um acto desta natureza. Assim, num primeiro momento, as autoridades de Cantão - o governador ou o mandarim e seus colaboradores mais próximos - conhecedores profundos do problema, poderiam habilitar a Corte de Pequim a tomar a decisão final.

Com certeza deve ter havido um documento, não importa de que teor, que formalizou a cessão de Macau, embora até hoje ninguém o tenha encontrado. De outro modo, os Portugueses teriam sido considerados invasores ou intrusos e, como tais, sujeitos a serem expulsos em qualquer momento.

É com base nestes pressupostos que não nos custa acreditar na existência do tal documento, provavelmente desaparecido, que teria autorizado os Portugueses a fixarem-se, com carácter definitivo, em Macau.

Dois documentos existentes na Biblioteca da Ajuda podem auxiliar um pouco na solução deste problema:

- O primeiro afirma que o imperador da China, depois de os Portugueses terem expulso os piratas da região de Cantão, concedeu-lhes o lugar de Macau, impondo-lhes, todavia, uma pensão de "quinhentos taéis de prata fina" (6);

- O segundo manuscrito atribui aos mandarins ou governadores de Cantão a cessão de Macau aos Portugueses (7).

Há quem fale numa concessão. Ora esta só poderia ter sido feita mediante um documento. Quem teria sido seu autor? O imperador? O mandarim de Cantão? Os dois? Que houve cessão do território, houve. O que pode ser discutível é qual teria sido o tipo de instrumento que a materializou. Além do mais, os Portugueses não deveriam sentir-se à vontade sem uma prova da concessão. As mudanças periódicas dos mandarins implicariam renovações sucessivas da concessão, o que acabaria por atrapalhar-lhes a vida.

A situação de desvantagem numérica em que se encontravam, não lhes teria permitido uma permanência com intuitos coloniais. Também não teria havido explicação jurídica plausível no caso da cessão a troco de uma renda ou aluguer, pois esta apenas lhes concederia o usufruto e não a posse plena do território.

Distinguem-se muito bem o estado de espírito e o estatuto com que os Portugueses se fixaram na China antes e depois de 1557, isto é, enquanto saltitavam de ilha para ilha, de feitoria para feitoria, submetidos às leis do país, e, depois, quando se estabeleceram em Macau, em 1557.

Importa avancar mais um pouco nesta ordem de ideias e colher, se possível, alguns dados que nos ajudem a esclarecer certos pontos:

- Faria e Sousa, na sua obra "Ásia Portuguesa" (8), é de opinião que a cessão do território de Macau ficou a dever-se à recompensa das autoridades chinesas pelo importante serviço que lhes foi prestado pelos Portugueses, por ocasião da expulsão dos piratas da região de Cantão;

- Da mesma opinião é Frei Juan de la Concepción, autor de "L'Histoire Générale des Philippines", que diz expressamente: "o imperador reconhecendo o serviço extraordinário dos Portugueses (referia-se à expulsão dos piratas da zona de Cantão) numa tão grave situação, lhes concedeu estabelecerem-se perpetuamente em Macau";

- Álvaro Semedo vem reforçar ainda mais a opinião que vem sendo desenvolvida (9).

Os depoimentos neste sentido continuam. Podemos ainda acrescentar mais alguns:

- O padre italiano Du Halde, na sua obra "Description de la Chine", perfilha a mesma ideia;

- Sonnerat, comissário da Marinha francesa nos mares da China, defende a mesma doutrina (10);

- Reynal, conhecido pelas suas posições anti-portuguesas, não conseguiu demarcar-se desta posição.

Alguns autores modernos negam liminarmente as teses que têm vindo a ser defendidas. Preferem, ao testemunho insuspeito dos historiadores atrás citados, as crónicas eivadas de preconceitos e crenças dos escritores chineses. Os seus argumentos assentam no texto de uma crónica da ilha de Hian-Xam, traduzida por Morrison no "Chinese. Repository".

O distinto sinólogo francês Abel Rémusat discorda da tradução da crónica feita por Morrison, por este, segundo ele, levado por preconceitos, ter alterado substancialmente o conteúdo da crónica. Para ele a verdadeira tradução do texto é:

"No ano trigésimo segundo de Kin Thsing (1553), barcos estrangeiros (Portugueses) aportaram a Hao-King. Os que desembarcaram contaram que uma tempestade os havia assaltado e que a água do mar havia molhado os objectos que levavam como tributo. Gostariam que lhes fosse permitido secá-los nas praias de Hao-King. Wong-pé, comandante da zona, consentiu que o fizessem. Eles não construiram senão algumas dezenas de cabanas de juncos. Mas os comerciantes, na mira do lucro, foram aos poucos construindo casas de tijolos, de madeira e de pedra. Os estrangeiros (Portugueses) conseguiram deste modo uma entrada ilícita no império. Foi deste modo que começaram a estabelecer-se em Macau no tempo de Wong-pé" (11).

Estes autores alegam ainda a favor das suas posições:

- Que o governo de Macau pagou, durante bastante tempo, ao governo chinês um censo ou foro;

- Que os mandarins exerceram, vezes sem conta, actos de perfeita jurisdição em Macau;

- Que o governo chinês tinha uma alfândega em Macau para a cobrança de direitos sobre navios e mercadorias.

Situações como estas, conhecidas por "servidões internacionais", estão previstas no Direito Internacional como limitativas da soberania e nunca como anuladoras da mesma.

Continuando nesta ordem de ideias, tentemos recolher outros dados que nos ajudem a avançar um pouco mais neste sentido.

Considerada do ponto de vista chinês, a posse de Macau poder-se-ia ter processado ou através da liberalidade dos mandarins de Cantão, sancionada pelo imperador, ou através de uma concessão que implicasse o pagamento de um foro ou renda. Se a primeira pode gerar posse, a segunda levanta o problema de se saber até que ponto uma concessão em precário, como é o foro, pode produzir posse. Mesmo reportanto à primeira modalidade, a posse pode cessar por mera vontade do doador.

São situações de fragilidade que podem ter explicado, em parte, certos aspectos de dependência das autoridades de Macau em relação aos mandarins.

Há que considerar ainda que a China andou arredada durante séculos do convívio das nações, não se lhe podendo aplicar, por isso, as normas gerais do Direito Internacional sobre a aquisição de territórios. As normas que regiam o seu relacionamento com os países estrangeiros eram as suas próprias normas.

A partir do momento (1858 e 1860) (12) em que a China resolveu fazer parte da co-munidade internacional, torna-se legítimo abordar aqui os títulos de posse ou de soberania territorial aceites pelo Direito Internacional: a cessão, a conquista, a ocupação prolongada e a prescrição.

Analisemos cada um deles. Partindo do princípio de que a cedência de Macau se relaciona com a expulsão dos piratas dos mares do sul da China por Portugueses, não há dúvida de que houve realmente cessão, embora não se tenha encontrado até ao momento o instrumento da sua formalização. Se os Portugueses, por um lado, não estivessem convencidos dos seus direitos sobre Macau, o seu procedimento no decurso dos tempos teria sido, com certeza, outro, completamente diferente. Se os Chineses, por outro lado, não estivessem convencidos do mesmo, não teriam permitido que os acontecimentos se tivessem orientado no sentido da permanência com carácter definitivo.

Vejamos, em seguida, a posse pela conquista. Podemos, neste caso, aceitá-la com muitas reservas: se os Portugueses expulsaram dos mares do sul da China e de Macau os piratas, e se se apoderaram deste território, é porque houve conquista em relação aos piratas e não em relação aos Chineses, que deram todo o apoio aos Portugueses neste empreendimento.

Passemos, agora, à ocupação prolongada como título de posse. A ocupação, durante muito tempo, de um território por parte de uma nação estrangeira gera a posse, consequentemente, exclui a outra da posse do mesmo território. Para que tal aconteça são necessários os seguintes fundamentos:

- Que o território ocupado seja res nullius, por outras palavras, que não pertença a ninguém ou que tenha sido abandonado;

- Que os ocupantes tenham a intenção de nele permanecer indefinidamente.

Além disso, os Portugueses que se fixaram em Macau não tinham autorização prévia de Lisboa para conquistá-la. Logo, esta posse não pode ser, com rigor, considerada por conquista, mas por ocupação pacífica.

Resta abordar a última forma - a prescrição. A prescrição foi um meio salutar encontrado para acabar com disputas infindáveis acerca da posse de uma coisa, quer no domínio privado, quer no domínio público. O povo costuma dizer, a propósito disto, que nada há que o tempo não cure ou que não faça esquecer.

Nunca a China impugnou frontalmente a presença portuguesa em Macau. Não lhe teria custado muito, se quisesse.

Uma outra prova está no facto de a China, ao abrir Cantão e outros portos seus ao comércio dos europeus, nunca ter consentido que estes ali residissem com caráter definitivo.

A China ao mandar construir uma muralha no istmo da península, como fronteira entre o seu território e Macau, estava a reconhecer de facto a independência de Macau em relação a ela.

Nunca foi permitido aos Chineses que se instalassem ou residissem em Macau.

A soberania portuguesa foi publicamente reconhecida pelas nações europeias, ao solicitarem do governo de Lisboa autorização para instalar os seus agentes consulares em Macau.

RESTRIÇÕES À SOBERANIA DE PORTUGAL EM MACAU

Alguns factos, já abordados de passagem, têm sido insistentemente apontados como objecções à soberania portuguesa em Macau:

- O pagamento de uma renda ou foro às autoridades chinesas;

- O poder efectivo que os mandarins de Cantão tinham sobre Macau, o que correspondia a actos de jurisdição;

- A criação em Macau de um mandarinato subalterno para resolver os assuntos em que os Chineses se apresentavam como partes;

- A cobrança de direitos sobre mercadorias e navios nos portos de Macau pelos Chineses;

- A tentativa das autoridades chinesas, de obrigar os galeões reais a pagarem os direitos de tonelagem, com a alegação de que eles eram mais navios de carga do que de guerra;

- O embargo de uma armada portuguesa ancorada no porto de Macau, em 1637, com o argumento de que um dos navios havia sido construído com dimensões superiores às autorizadas;

- A sujeição dos Portugueses residentes em Macau ao uso de passaporte sempre que quisessem sair da cidade;

- A aplicação, por vezes, das leis chinesas aos Portugueses, como foi o caso do luto pela morte da mãe do imperador Cang-Hi.

Todos estes factos são de ter em conta, mas não são suficientemente fortes para invalidar a soberania que pode ter sido afectada, aceitamos, nos seus aspectos acidentais, mas nunca nos seus aspectos essenciais.

Os privilégios e favores de que gozavam os Portugueses frente a outros estrangeiros, nomeadamente em matéria de navegação e comércio, transformaram Macau no único entreposto comercial entre o Celeste Império e os países ocidentais. E esta situação gerou riquezas e atraíu a cobiça dos mandarins, que orientaram os seus propósitos na exploração sistemática dos comerciantes de Macau, através das exigências mais incríveis e das pressões mais variadas, materializadas na proibição do fornecimento de víveres e da prestação de serviços por parte dos Chineses.

Alguns factos que seguem elucidam o que acabamos de dizer: o governador da província de Quang-Tong reprovou energicamente o facto de os Portugueses terem criado um tribunal e administrado a justiça, quando, segundo afirmava, a autorização para se fixarem em Macau nunca tinha implicado jurisdição nesta matéria. No entanto, o ânimo do governador acalmou-se quando o Senado de Macau, sem outra alternativa, o presenteou com dinheiro.

À medida que a riqueza do território aumentava, cresciam as imposições dos mandarins e apertavam-se os laços de dependência de Macau em relação a eles. A sorte do território estava nas suas mãos porque tinham o poder de condicionar, por completo, a sua vida: era da China que procediam os calafates, os pedreiros, os alfaiates, os ferreiros e víveres.

Carecida destes recursos, Macau acabaria por ser presa fácil nas mãos dos mandarins.

Que importa que a cidade tivesse sido adquirida por todos os títulos reconhecidos internacionalmente e pela própria China se, devido àquelas condições adversas, pouco ou nada ela podia fazer?

Posta à mercê dos mandarins, convictos do seu poder, só lhe restava esperar que melhores dias surgissem.

Vezes sem conta reuniu o Senado para decidir como satisfazer as ambições dos mandarins. Outra solução não havia. Qualquer argumento, mesmo o mais válido aos nossos olhos, diluía-se perante este terrível dilema: "ou ceder, ou perecer".

CONCLUSÃO

Por momentos passaram diante dos nossos olhos as fases mais significativas, julgamos, da grande história de um pequeno território. Longe ficaram aqueles primeiros momentos dos princípios do séculos XVI, em que um punhado de Portugueses se embrenhou nas longínquas paragens orientais a continuar a desfolhar mais páginas da História de Portugal.

A História de Macau foi, sem dúvida, a mais difícil de contar no conjunto colonial português e isto porque, no minúsculo território, se cruzaram duas civilizações muito distintas. Daí os naturais conflitos. Foi preciso um longo caminhar, laoa a lado, para que as muitas arestas se limassem e os dois povos se entendessem. Houve avanços e recuos, com certeza, mas o modelo de vida de Macau pouco se afastou do da China. Era humanamente impossível a Macau subtrair-se ao monumental peso da influência chinesa.

A História de Macau/Portugal está prestes a encerrar-se. O seu epílogo aproxima-se a passos de gigante. A última malha que o império teceu, vai, muito brevemente, desfazer-se. Que futuro espera Macau? Auguramos que seja de concórdia e progresso. ·

FONTES MANUSCRITAS

- A. H. U. - Macau, papéis avulsos, cx. 1, doc. no. 1. (A. H. U. = Arquivo Histórico Ultramarino)

- A. H. U. - Macau, papéis avulsos, cx. 1, doc. no. 2. (A. H. U. = Arquivo Histórico Ultramarino)

- A. H. M. - Filmoteca, Armário I, Gav. I (Foral de Macau). (A. H. M. = Arquivo Histórico de Macau)

- B. A. 51-VIII-40, fl. 232/234 (B.A. = Biblioteca da Ajuda).

- B. A. 49-V-5, fl. 348. (B.A. = Biblioteca da Ajuda).

FONTES IMPRESSAS

BOXER, C. R., anot. e coment. - A cidade de Macau e a queda da Dinastia Ming. Macau, Escola Tipográfica do Orfanato, 1938.

BOXER, C. R., compil. - Macau na época da Restauração. Macau, Imprensa Nacional 1942.

BRAGA, J. M., anotador - O primeiro acordo luso-chinês: realizado por Leonel de Sousa em 1554. Macau, s. n., 1939.

CORTESÃO, Armando - A propósito do ilustre boticário quinhentista Tomé Pires. Coimbra, s. n., 1964.

FREITAS, Jordão de - Macau: materiais para a sua história no século XVI. Macau, Instituto Cultural, 1988.

Mémoire sur la souveraineté territoriale du Portugal à Macau. Lisbonne, Imprimerie Nationale, 1882.

REGO, António da Silva - A presença de Portugal em Macau. Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1946.

NOTAS

(1) A ostentação dos imperadores da China está patente na resposta que Quienlong deu ao emissário inglês, Macartney no século XVIII: "Nós, por graça do Céu, Imperador, ordenamos ao rei de Inglaterra que tome em conta as nossas advertências. O teu enviado veio prostrar-se diante do nosso trono. Lemos com benevolência a tua mensagem e verificamos com prazer a respeitosa humildade que ela traduz. Contudo, o teu pedido acerca do envio a Pequim de teus súbditos para aqui residirem permanentemente e comerciarem nos meus portos é inaceitável, porque ele é contrário aos usos imutáveis da minha corte", in Alain Peyrefitte, Choc des cultures entre communnautés, "Revue des Sciences morales e politiques", p.107.

(2) Carta escrita por Fernão Mendes Pinto, em 20 de Novembro de 1555, in "Arquivo Histórico Português", VIII, p. 213/214, e in "Fernão Mendes Pinto" de Cristóvão Ayres, p. 78/82, citada por Charles Boxer in "Descrição de Macau", p. 16.

(3) A. H. U. - Macau, papéis avulsos, cx. 1, doc. no. 1.

(4) A. H. M. - Filmoteca, Armário I, Gav. I (Foral de Macau).

(5) A. H. U. - Macau, papéis avulsos, cx. 1, doc. 2.

(6) B. A.51-VIII-40, fl. 232/234: "Relação do princípio que teve a cidade de Macau e como se sustentou até ao presente", cit. por A. da Silva Rego na obra "A presença de Portugal em Macau" (Lisboa, A. G. C.,1946.

(7) B. A.49-v-5, fl.348.

(8) Tomo III, parte III, cap. XXI.

(9) "Relação da China", parte II, cap. I, ed. de 1643.

(10) "Voyage aux Indes Orientales et à la China", Tomo II, p. 7, citado em "Memoire surla souveraineté territorial do Portugal à Macau ".

(11) "Memoire sur la souveraineté territorial du Portugal à Macau", p.18.

(12) Peyrefitte, Alain, in "Choc des cultures entre communnautés: les Occidentaux en Chine, XVIII et XIX siècles", p. 112: "foi durante a guerra que a Inglaterra e a França moveram contra a China, entre 1858 e 1860, que esta foi obrigada a reconhecer a igualdade dos países entre si".

*Lic. Ciências Sociais e Políticas; Dipl. Filosofia e Teologia; Dipl. Ciências Documentais; actualmente, Director do Arquivo Histórico de Macau.

desde a p. 3
até a p.