Macau no Século XIX

Macau visto pelo Conde de Arnoso*

(comentários do P. e Manuel Teixeira)

Santa Casa da Misericórdia de Macau - George Chinnery. (Tinta e lápis em papel; sem data; 14,7 x 17,6 cm. Col. Museu Luís de Camões). Quadro de "intimismo" citadino, é uma das mais belas e subtis expressões ambientais de Macau do Século XIX, saídas da mão de Chinnery.

O Conde de Arnoso chegou a Macau a 23 de Junho de 1887, juntamente com Tomás de Sousa Rosa que ia a Pequim assinar o primeiro Tratado Luso-Chinês. Conta ele no seu livro Jornadas pelo Mundo, p. 113: "Embarcados na canhoneira Rio Lima, levantámos ferro do porto de Hong-Kong, pelas oito horas da manhã do dia 23 de Junho, em direcção a Macau. Navegando contra vento e corrente, cinco horas levámos a percorrer as quarenta milhas que separam as duas cidades. Pela uma hora da tarde entrávamos na rade em frente da Praia Grande. Com respeito e orgulho olhámos para essas águas, que foram sepultura dum antepassado nosso, Jorge Pinheiro de Lacerda que, pelejando ali, pelos tempos da restauração da casa de Bragança, contra os holandeses, e cedendo o esforço à multidão dos contrários, como refere o cronista, se matou deitando fogo ao paiol do navio depois de lhe arrancar os sinais do triunfo já arvorados nos mastros. Volvidos mais de dois séculos, é-nos grato a nós, que vimos de igual sangue e usamos do mesmo apelido, aportar às mesmas águas num navio da marinha portuguesa com oficiais que, em circunstâncias semelhantes, não hesitariam um só momento entre o render-se e morrer".

Alguém conhece este Jorge Pinheiro de Lacerda? A nós parece-nos que é pura fantasia do seu su-posto descendente, Conde de Arnoso.

Depois de 1627, nunca mais os holandeses se atreveram a atacar Macau.

Na Restauração não houve combate algum com os holandeses. O nome de Lacerda não figura entre aqueles que assinaram o termo da Restauração.

Não consta que nenhum capitão de navio em Macau tivesse deitado fogo ao paiol da pólvora.

Onde é que ele teria lido esse nome e esse episódio?

ARBORIZAÇÃO DE MACAU

O grande promotor da arborização de Macau e benemérito das suas zonas verdes foi o governador Tomás de Sousa Rosa (1883-1886). Era tão entusiasta que em vez de dar ordens do seu gabinete, ia ele próprio ensinar como isso se fazia, segundo informa o eng. Adolfo Loureiro no seu livro No Oriente, de Nápoles à China, referindo-se à visita que ele e o governador Rosa fizeram em 1883 aos viveiros da Flora: "Aqui estivemos examinando os viveiros e as sementeiras florestais, para as quais o meu bom amigo Rosa teve muitas vezes de empunhar a enxada para ensinar os chins como qualquer saloio dos arredores de Lisboa sabe fazer os alfobres, os machos e as regadeiras. A arborização daquelas encostas vai auspiciosa, e grande serviço presta o Governador ocupando-se de tão grande melhoramento. Como aqueles sítios serão bonitos, quando os terrenos esbranquiçados, cortados de sulcos abertos pelas águas das chuvas, áridos e secos, estiverem vestidos de verdura!..."

Igreja de S. Paulo - G. Chinnery (Lápis em papel. Col. M. Luís de Camões). Feito por Chinnery, seguramente antes de 26 de Janeiro de 1835, data em que deflagrou o incêndio nas cozinhas do Colégio pelas 6 horas da tarde. Às oito, o fogo tinha já destruído o grandioso relógio, oferecido por Luís XIV.

O Conde de Arnoso, que veio com Tomás Rosa a Macau em 1887, escreveu no seu livro Jornadas pelo Mundo, p. 116: "A península de Macau, cercada de ilhas, pequena como é, com a sua várzea fertilíssima e as suas seis colinas dum relevo gracioso - Guia, Penha de França, Mong-Ha, D. Maria e Gruta de Camões é tudo quanto se possa imaginar de mais pitoresco. Quando daqui a alguns anos as sessenta mil árvores, criadas e mandadas plantar por Tomás Rosa, e que parecem vingadas, cobrirem com a sua sombra aquela encostas, Macau será um verdadeiro paraíso e a concorridíssima estação de verão do Extremo Oriente. Já agora os habitantes de Hong-Kong procuram, no clima natural de Macau, um refúgio aos excessivos calores desta quadra. É com verdadeiro prazer que um português se encontra em Macau mesmo depois de ter visitado Aden, Colombo, Singapura, Saigão e Hong-Kong, onde os ingleses e franceses, a peso de ouro, têm criado estabelecimentos de primeira ordem. Nada nos envergonha".

Oxalá o progresso moderno não arrase o que Tomás Rosa plantou.

PALÁCIO DO GOVERNO

O Conde de Arnoso descreve-o assim: "O Palácio do Governo, comprado à família Cercal, é um vasto edifício de bela aparência. Durante algum tempo estiveram nele diversas repartições; mais tarde, durante a última administração, todas se instalaram, com grande comodidade para o serviço público, no antigo Palácio do Governo, um óptimo edifício também, e onde principalmente se admira a sala do tribunal, que era a antiga sala do trono do palácio. Quantas capitais de distrito na metrópole invejariam este edifício para as suas repartições, e como todos desejaríamos que o Tribunal da Boa Hora se parecesse, de longe, com o Tribunal de Macau!"

De facto, o actual palácio do governo, ao centro da Praia Grande, foi arrendado pelo Visconde do Cercal, Alexandrino António de Melo, ao Governador José Maria Lobo d'Ávila, em 8 de Junho de 1873.

Vista da Praia Grande (c. de 1834) - Atribuída a Tingqua. (Gouache sobre papel vetetal, 18 × 28cm. Col. Museu Luís de Camões).

O Visconde morreu e a sua viúva, D. Carlota Botelho de Melo, vendeu-o ao governo pela módica quantia de $ 25.068.66, compra esta que foi aprovada pelo governo de Lisboa a 17-5-1881, sendo governador de Macau Joaquim José da Graça (1879-1883). Funcionou por algum tempo no novo Palácio o Departamento Judicial e a Junta de Fazenda.

Os cristãos de S. Lázaro, reconhecidos por Tomás Rosa ter demolido a sua velha igreja e construído outra, e por ter tratado bem a comunidade chinesa, ofereceram-lhe em Agosto de 1886 uma obra de arte de prata, uma faixa de seda com dísticos e um quadro ao gosto chinês com uma dedicatória.

Templo de Á-Má, visto do exterior, em finais do Século XIX. (Foto publicada in "Jornal Único"; Macau, 1898).

O que escreve o Conde de Arnoso é verdade. Até 1976, o novo bispo ia a S. Lázaro e seguia em procissão até à Sé. Acreditou-se durante séculos que essa fora a primeira igreja de Macau. Ora, após 60 anos de investigação, cheguei à conclusão de que esta tradição não se pode manter e as razões são as seguintes:

1) Nenhum documento do séc. XVI menciona essa igreja;

2) A povoação de S. Lázaro era toda chinesa, sem nenhum português.

3) A ermida de S. Lázaro foi construída para os leprosos, que ali viviam afastados de toda a população;

4) Foi só em 1808 que se estabeleceram ali os primeiros cristãos.

5) Não se conhece nenhum vigário nem nenhum baptismo nessa ermida até ao séc. XIX.

6) A igreja dos chineses era a de N. Sra. do Amparo e não a de S. Lázaro.

Todas esta razões levam-me a rejeitar a tradição de que a igreja de N. Sra. da Esperança (vulgo de S. Lázaro) fosse a primeira de Macau.

RUÍNAS DE S. PAULO

Escreve o Conde de Arnoso:

"... As ruinas de S. Paulo onde os jesuítas tinham o maior collegio do Oriente e que, algum tempo occupado por um quartel, foi mais tarde pasto das chamas.

Hoje, na sua cerca, por onde passeiavam os doutos e virtuosos padres da Companhia, que tanta luz derramaram por este Oriente fora, vivem promiscuamente, num chiqueiro immundo, porcos e chinas miseráveis!"

Isto em 1887, quando Arnoso por aqui passou.

Em 1905, o Dr. António José Gomes, no sermão que pregou nas ruínas de S. Paulo, disse: "Ainda há três meses tudo isto era um foco infecto! Este recinto sagrado, o interior d'esta ruina, da ruina do mais bello templo de Macau, desenhado há três séculos pela mão d'um apostolo e d'um martyr, ainda há três mezes isto era um chiqueiro, ainda há três mezes aqui dentro grunhiam dezenas d'animais immundos, ainda há três mezes isto era uma sentina publica de gentios que ali vivem em volta d'esta ruina, em antros mais immundos que os das feras!...

Ai! quantas injurias não tens tu sofrido, ó preciosa relíquia da arte christã! Tentaram roubar-te os santos de bronze, que adornam os teus nichos, para os fundirem, mas os santos não cederam o seu posto; foram mutilados, mas ficaram inabaláveis! Estilharam-te as colummas, britaram-te os capitéis, quebraram-te os ângulos, mancharam e polluiram as tuas bases... e não obstante, tu ali estás ainda em pé, miraculosamente, para pungir a consciência de todos e de cada um!"

Cremos que essas estátuas foram fundidas por Manuel Tavares Bocarro, assim como os sinos da igreja de S. Lourenço e os canhões das fortalezas; todos estes foram fundidos mas as estátuas de S. Paulo resistiram ao vandalismo.

SEMINÁRIO DE S. JOSÉ

Escreve o Conde de Arnoso: "O Seminário de S. José é o unico estabelecimento de instrução secundária da Província. Esta casa de educação soffreu um grande golpe com a expulsão dos dois únicos professores estrangeiros, jesuítas, que n'ella existiam. Foi o decreto de 1871 que, reorganisando o Seminario de S. José, prohibiu que n'elle professassem disciplinas padres estrangeiros. Esses dois únicos jesuítas, d'um grande saber, e que tão relevantes serviços tinham prestado à mocidade estudiosa de Macau, tiveram então de sair. Um é hoje professor em Melbourne; o outro tem a seu cargo, em Roma, como redactor principal, a Civittà Cattolica. É triste ver como um simples traço de pena pode ter tão funestos resultados. Não se imagina a diferença que existe entre os macaistas que foram ainda discípulos d'esses dois padres, e aquelles que não puderam aproveitar das suas lições".

O decreto a que se refere Arnoso data de 20 de Setembro de 1870, e não de 1871. Havia então no seminário três padres estrangeiros e não apenas dois: Francisco Xavier Rôndina, italiano, Thomas Cahil, inglês, e José Vergili, italiano. Cahil foi leccionar em Melbourne; Rôndina dirigir a famosa revista jesuítica Civittà Cattolica; Virgili regressou à sua pátria. E o Seminário regressou à apagada e vil tristeza, como antes da vinda dos jesuítas.

Quando, em Janeiro de 1871, o reitor pretendeu abrir as aulas do Seminário, achou-se sem professores.

Recorreu-se então aos leigos, deixando o Seminário de ser a casa de formação do clero, como fora desde 1728. Maus tempos!

Um século depois veio a Revolução Cultural comunista e no Seminário cessaram as aulas em 1968.

AS CANOSSIANAS

Escreve o Conde de Arnoso: "Ao sexo feminino prestam hoje relevantes serviços as irmãs de caridade italianas estabelecidas em Macau. Além de receberem as órfãs e as educarem, as suas classes são frequentadas pelas filhas de macaístas e empregados da província. Ensinam também a ler e a trabalhar as ceguinhas pobres. Não se calcula a quantidade de chinas, ou absolutamente cegos, ou, vendo tão pouco que são forçados a trazer óculos fixos, que por toda a parte se encontram.

As irmãs italianas, apezar de abençoadas por todos, não estão livres também de ser expulsas um dia por algum ministro repentinamente atacado de liberal jacobinismo, fórmula estapafúrdia e indígena muito do apreço de conspícuos conselheiros".

As primeiras Canossianas chegaram a Macau em fins de 1873 ou princípios de 1874. Alugaram uma casinha às abas da Fortaleza do Monte e abriram uma escola chinesa para as crianças pobres.

O tufão de 23 de Setembro de 1874 deitou-a abaixo; alugaram então outra casita na Rua de S. António; sendo esta muito acanhada, o Governador do Bispado, Deão Manuel Lourenço de Goa e o P. António Joaquim Medeiros arranjaram-lhes outra que ficou conhecida por casa de Beneficência e abriu em 1878.

Abriram então uma escola em S. Lázaro para as meninas órfãs que foram albergadas na Casa de Beneficência.

A seguir abriram os Asilos de Infância e das Inválidas.

A Revolução de 1910 expulsou-as de Macau, mas voltaram em breve e hoje a sua obra pedagógica e social estende-se a toda a cidade e ilhas.

D. ANTÓNIO JOAQUIM DE MEDEIROS

O Conde de Arnoso continua: "O actual bispo de Macau, D. António de Medeiros, não descura um momento, com o seu incansável zelo, estes dois estabelecimentos de instrução". (O Seminário de S. José e a escola da Casa de Beneficência das Canossianas). "Prelado d'uma ilustração que eguala a sua virtude, não lhe serviu a púrpura para descansar. Novo ainda, encontramo-lo magro e pállido, mirrado pelas febres devoradoras de Timor, adquiridas na longa visita que ultimamente fez, pelo interior d'aquella ilha, às missões por elle creadas. Durante algum tempo estivemos presos da sua palavra fluente, ouvindo-o discorrer, com rara largueza de vistas e superior bom-senso, sobre o estado actual e o futuro de Timor".

De facto o bispo Medeiros ocupa lugar de destaque na galeria pluri-secular do episcopado macaense.

Arnoso encontrou-o mirrado e roído de febres em 1887, quando tinha apenas 41 anos de idade. Dez anos depois estava morto.

Fachada do Leal Senado em finais do Século XIX. (Foto pub. in "Jornal Único"; Macau,1898).

Foram os seus trabalhos, as suas fadigas, as suas correrias incessantes pelas Missões de Timor, criadas por ele, que lhe apressaram a morte.

Abriu lá escolas para a educação dos rapazes. E as raparigas? Ninguém pensara na sua educação em toda a história de Timor. Era até uma ideia que ia contra a mentalidade desse povo. Pois bem, o bispo Medeiros levou para lá as Religiosas Canossianas que até hoje têm instruído milhares de raparigas e dando-lhes uma profunda educação moral.

Medeiros trouxe também os jesuítas para Macau, donde haviam sido expulsos em 1871.

Jardim de Camões, vendo-se a Casa Garden, observado da Fortaleza do Monte (c. de 1850) - Dr. Thomas Watson (1815-1860). (Lápis, tinta castanha e aguarela, 20 × 28 cm.. Col. Museu Luís de Camões).

A POLÍCIA

Escreve o Conde de Arnoso: "A Polícia de Macau é feita pela Guarda Policial, que tem as suas companhias nos quartéis de Santo Agostinho, dos Mouros, Flora e S. Domingos. Soldados chinas, locanes, completam a falta das praças europeias; os locanes usam o sapato e a meia china apolainada, calção largo e azul, casaco da mesma fazenda, largo também, e apertado por um cinturão. Na cabeça trazem o chapéu de palha chinês com as armas reaes pintadas na frente e as palavras Guarda Policial de Macau".

A polícia em Macau é tão antiga como a cidade, mas o primeiro alvará régio conhecido data de 14 de Março de 1691, regulamento dos provimentos dos Capitães da Gente de Ordenança encarregada da ronda.

Em 1719 o Senado, por ordem do Governador, cria três casas fortes nos três bairros - Sé, S. Lourenço e S.to António.

Em 1784, a polícia foi substituída por um batalhão de 150 praças de tropa regular vinda de Goa; além da defesa da cidade, competia ao batalhão o seu policiamento.

Em 13 de Maio de 1810, aparece o Batalhão do Príncipe Regente, que fornecia a polícia da cidade; mas este batalhão desarticula-se em 1822, sendo restabelecidas as Casas Fortes, com 20 homens cada.

A 3 de Maio de 1841 uma portaria régia aprova o regulamento policial da cidade e porto de Macau, sendo então criado um corpo de polícia.

A 29 de Setembro de 1857 é criada a Polícia do Bazar, sendo em 11 de Outubro de 1861 criado o Corpo de Polícia de Macau com funções em terra e mar; mas em 1868 a secção do mar passou a chamar-se Polícia do Corpo de Macau, desligando-se da de terra e passando a ser comandada pelo Capitão do Porto. No n° 32, vol. XV de 9 de Agosto de 1862, aparece no Boletim Oficial o Regulamento do Corpo da Polícia de Macau.

Em 18 de Janeiro de 1879, foi dissolvido o Corpo da Polícia, sendo substituído pela Guarda Policial de Macau.

A 16 de Agosto de 1895 foram extintas a Companhia de Artilharia e a Guarda Policial, organizando-se com elas duas companhias de guerra.

A 8 de Abril de 1920 é aprovado o Regulamento Geral dos Serviços de Polícia do Conselho de Macau; mas este é substituído em 1937 pelo Regulamento do Corpo da Polícia de Segurança Pública de Macau, que passou a gozar de regência autónoma.

Este Regulamento sofreu algumas alterações em 28 de Maio de 1966. Novas alterações em 19 de Dezembro de 1975 com a criação das Forças de Segurança de Macau, deixando então de funcionar como organização autónoma.

Pelo decreto-lei n° 21-81-M. de Junho de 1881 entrou em vigor o Regulamento da Polícia de Segurança Pública de Macau, pelo qual se rege até hoje.

OS MILITARES

Continua o Conde de Arnoso: "Existe também o Batalhão Nacional, que tem uma companhia em serviço effectivo no centro da cidade china. Assistimos ao exercício de instrução de uma companhia d'este batalhão, causando-nos impressão muito agra-dável a sua boa apparência, firmeza e precisão nos movimentos. O systema da defesa de Macau deixa muito a desejar. O actual governador e nosso amigo Firmino José da Costa procura modificá-lo; para esse fim mandou já transformar a bateria Primeiro de Dezembro numa bateria a barbete".

O Batalhão Nacional, que tinha primitivamente o nome de Batalhão Provisório, foi organizado pelo Governador João Maria Ferreira do Amaral, sendo aprovado por decreto régio de 10 de Dezembro de 1847, ficando aquartelado no extinto Convento de S. Domingos, ou seja, no centro da cidade.

Sobre a Bateria 1° de Dezembro escrevia o director das Obras Públicas, eng. Francisco Jerónimo Luna, a 22-5-1873: "Esta nova bateria é feita na ponta da praia de S. Francisco: principiou a sua construção no 1° de Dezembro de 1872... É formada duma espessa e sólida muralha, revestida de cantaria, que estavelmente pode suportar o terrapleno, feito de terras caldeáveis, homogéneo em densidade e compressão. A superfície de todo o terrapleno é de 1374 m2".

O governador Firmino da Costa construiu, em 1888, neste terrapleno, uma estrutura trapezoidal em planta e em alçado.

Esta bateria, que tinha alojamento para a guarnição e munições, foi demolida em 1934.

JARDIM DA FLORA

Escreve Arnoso; "É deveras bonito o pequeno Palácio da Flora, habitação também do governador, e onde se vêem, ao lado dum jardim do estylo de Le Notre, os viveiros d'onde saíram as árvores que actualmente povoam as encostas de Macau".

O Jardim da Flora era propriedade do P.e Vitorino José de Sousa e Almeida; nele construiu em 1848 um palacete, delineado pelo arquitecto macaense José Tomás de Aquino. Este palacete foi vendido ao governo em 1872-1873 para ser a casa de verão dos governadores. Mas foi abandonado por ser esse sítio doentio.

O jardim foi comprado pela Fazenda Pública e mais tarde por Sir Robert Hó-Tung, voltando finalmente para as mãos do Governo.

Em 1924 o palacete foi adaptado a Jardim de Infância.

O governador Tomás de Sousa Rosa plantou nesse local muitos viveiros, a que se refere Adolfo Loureiro no seu livro No Oriente, de Nápoles à China.

A colina da Guia foi arborizada, mas há pouco começaram a construir-se ali grandes imóveis, que a prejudicam.

Chinesas cristãs a caminho da Missa. (In "Ta-Ssi-Yang-Kuo", "Arquivos e Anais do Extremo Oriente Português", Série II, Vol. IV (1889-1900).

MONUMENTO DA VITÓRIA

Arnoso relata: "Perto da Flora, no meio da parada do quartel d'uma das companhias de polícia e onde refere a tradição que morreu o almirante Roggers, eleva-se, resguardado por uma grade de ferro, um simples monumento de granito, encimado pelo escudo das armas reaes portuguezas sobrepostas a uma cruz de Cristo em volta da qual se lê: Da cidade do Santo Nome de Deus. N'uma das faces do monumento está esculpida esta inscripção: Para perpetuar na memoria dos vindouros a victoria que os portuguezes de Macau, por intervenção do benaventurado S. João Baptista, e que tomaram por padroeiro, alcançaram sobre 800 hollandezes armados, quede 13 naus de guerra capitaneadas pelo almirante Roggers de-sembarcaram na praia de Cacilhas, para tomarem esta cidade do Santo Nome de Deus de Macau em 24 de Junho de 1622.

E na outra: No mesmo logar onde uma pequena cruz de pedra commemorava a acção gloriosa dos portuguezes, mandou o Leal Senado levantar este monumento no anno de 1864".

Note-se que é errada a tradição que diz que o almirante Roggers morreu nesse local. No combate morreram 7 capitães holandeses, mas nenhum almirante.

O monumento da Vitória não foi erecto em 1864 mas em 26 de Março de 1871, pelo governador almirante António Sérgio de Sousa.

A iniciativa do monumento deve-se ao procurador do Senado, Lourenço Marques, que apresentou o plano na sessão da Câmara de 25 de Junho de 1862. Sendo este aprovado, ele incumbiu Carlos José Caldeira de o mandar vir de Portugal. O monumento só chegou a Macau em Junho de 1870, sendo inaugurado no ano seguinte. Esse local era conhecido pelo nome de "Campo dos Arrependidos".

A GUIA

Arnoso continua: "Do pharol da Guia - o primeiro que se accendeu em todo o mar da China - descobre-se um bello panorama. Vê-se a rade, as ilhas da Taipa, da Lapa e de D. João; a cidade subindo quasi até à Penha de França; o Porto Interior com a Ilha Verde; Mong-Ha, a estreita língua do isthmo, Passa Leão e as azuladas distantes montanhas da China. À entrada da pequenina ermida da Guia, sobre pedra d'uma campa, quasi apagado pelas passadas de muitas gerações, consegue ler-se o seguinte curioso epithafio:

Aqui jaz a esta porta

Os christãos por ventura

Pois não merece seu corpo

tão honrosa sepultura.

E estas duas datas: 1687-1720".

O farol da Guia foi construído por iniciativa do governador José Rodrigues Coelho do Amaral, sendo autor do seu maquinismo o macaense Carlos Vicente da Rocha. Acendeu-se pela primeira vez a 24 de Setembro de 1865. Foi castigado duramente pelo tufão de 1874, tendo de ser reconstruída a sua torre.

A 29 de Junho de 1910, foi substituído por outro, vindo de Paris.

A leitura que Arnoso fez da inscrição à entrada da ermida não tem sentido: "os Christãos... não merece". Ora o que ali se lê é: "O S. CRIST..." Nós supomos ser: "O SACRISTÃO" e interpretamos assim: O sacristão tem a ventura de estar sepultado a esta porta, mas ele não merece tal honra. As datas também não fazem sentido: "1687-1720 ANNO". Teria ele morrido em 1687 e sepultado em 1720? Não se trata de muitos cristãos, mas de um só. As sepulturas eram individuais ou de cada família.

UMA ESTÁTUA HOLANDESA

Continuando a falar da ermida da Guia, escreve Arnoso: "No adro e sobre uma pedra que lhe serve de pedestal uma tosca e disforme estátua de pedra d'um metro de altura representa, segundo refere a lenda, um valoroso capitão. Veste justilho, largo calção e bota até ao joelho. A irreverente brocha d'um pintor poz-lhe bigode e mosca! E como se tal não bastasse pintou-lhe garridamente o justilho de cor-de-rosa vivo, pondo-lhe nos canhões galões amarelos de coronel. Pobre heroe!"

Quanto a esta estátua, reza a tradição que se trata dum oficial holandês, moldada pelos holandeses que foram encarcerados na fortaleza da Guia após a sua derrota de 24 de Junho de 1622.

A estátua sofreu maus tratos: um dia tiraram-na da Guia, foi parar às Ruínas de S. Paulo.

Em 1966, desapareceu.

Alfredo de Almeida foi encontrá-la, decapitada, na sargeta duma via pública, para onde havia sido lançada pelos vândalos.

Colocou-lhe a cabeça sobre os ombros, cimentou-a e levou-a para o seu caro Jardim da Flora.

Dali passou para a esplanada do Museu Luís de Camões, onde hoje se encontra, acostada a uma parede, triste e envergonhada.

Já desapareceram as cores do seu justilho e já não pousa em pedestal algum. Ali está no solo sem um letreiro, sem indicação alguma, com a ferida no pescoço, efeito da decapitação. Bem merecia que voltasse para a Guia, onde passou uns quatro séculos e donde nunca devia ter sido retirada.

GRUTA DE CAMÕES

Arnoso descreve-a assim: "No cimo d'uma co-lina, e dentro d'um jardim, que sobe em socalcos, ou melhor dentro dum pequeno bosque, pela quantidade de velhas árvores que o povoam, está situada a gruta formada por três penedos de granito, dispostos como um dólmen (...).

Hoje este lugar, que não há estrangeiro nenhum que não visite, pertence felizmente ao Governo. Governava a província o nosso amigo Thomaz Rosa, quando soube que um padre francêz estava em ajuste com o proprietário da gruta para lh'a comprar; telegraphou immediatamente ao Ministro da Marinha solicitando auctorização para adquirir esta propriedade que, pela tradição que a acompanha, é um dos mais gloriosos monumentos da nossa vida nacional. É justo dizer-se que era então Ministro da Marinha Manuel Pinheiro Chagas, que não tardou um minuto em enviar a auctorização pedida. O chão das estreitas ruas do jardim da gruta é calçado com cimento. N'um pequenino largo eleva-se um ligeiro e elegante coreto feito de bambus. Magníficos exemplares da árvore das baneanes (Ficus indica) encontram-se ali com as velhas raízes ao ar abraçando a bruta penedia como se fossem fortes engastes de finas pedras preciosas. Nas esguias canas de tufos de bambus, amarellos e raiados de verde, lêem-se gravados a canivete nomes queridos de mulheres amadas. O sol dardejante não logra com os seus raios penetrar na emaranhada folhagem das árvores; os pássaros cantam contentes voando de ramo para ramo, e enormes borboletas de cores vivas ziguezagueiam no ar beijando as pétalas das flores. Ao lado da gruta, e subindo ao ponto mais elevado do jardim, há uma espécie de guarita de pedra e cal com uma estreita fenda aberta na direcção do meridiano. Diz a tradição que foi neste improvisado observatório que La Pérouse acertou os seus instrumentos".

Cúlis transportando um passageiro numa liteira de varais.

("The Hong Kong Illustrated - Views and News, 1840-1890").

FERREIRA DO AMARAL

Escreve Arnoso: "Todo o portuguez que visita Macau não pode esquecer o ir numa piedosa peregrinação à pedra do Amaral, do nome d'este bravo e destemido governador, bárbara e traiçoeiramente assas-sinado pelos chinas. Fica na estrada da Porta do Cerco e perto da Fortaleza de Mong-Há o rochedo que o mar banha, onde, no dia 22 de Agosto de 1849, foi encontrado o corpo de João Maria Ferreira do Amaral. As armas reaes portuguesas toscamente abertas na rocha desegual são o único padrão que recorda a sua memória. E, todavia, é certo que à sua destemida valentia deve a península de Macau a sua completa independência. Obrigando os chinas a recuarem para além do isthmo e posto do opu (alfândega), foi avisado por um china seu criado que não saísse a dar o seu passeio favorito, porque corria risco de ser morto. Não se importando com o aviso, saiu, e, ao passar por uma pobre velha, a quem na estrada sempre costumava dar esmola, ouviu da sua bocca o mesmo aviso: que não prosseguisse, pois o matariam. Da raça dos que não sabem recuar, foi corajosa e heroicamente ao encontro da morte. Quando na cidade correu a fatal nova, reuniu o Conselho do Governo, ordenando que uma força commandada por um major desalojasse os chinas da Porta do Cerco, o que se fez. Acudindo, porém, grandes forças ao forte do Passa Leão, que do lado da China domina o isthmo, era grande o receio da cidade, esperando a cada momento que essa gente viesse praticar novas represálias. Foi então que o corajoso coronel Mesquita, que teve um fim tão tristemente trágico, se offereceu para atacar a fortaleza china, o que, à frente d'um punhado de bravos, levou a effeito, hasteando na muralha do Passa Leão a bandeira das Quinas. O mandarim China, que desde o começo da ocupação portugueza se conservara installado em Macau, como protesto sempre vivo ao nosso domínio, teve medo e abandonou a península para nunca mais ali voltar".

Note-se que o mandarim se instalou aqui em 1744, dois séculos depois da chegada dos portugue-ses.

CASAS E LOJAS CHINESAS

Relata Arnoso: "O typo de casa é sempre o mesmo: rez-do-chão e primeiro andar. O rez-do-chão é occupado pela loja, o primeiro andar pela casa de habitação. Do primeiro andar vê-se tudo quanto se passa em baixo, porque o sobrado é rasgado ao meio num quadrado defendido por uma balaustrada formando uma espécie de clarabóia aberta. O balcão estende-se ao comprido da loja desde a porta até ao fundo e termina invariavelmente, para o lado da rua, por uma elegante peça de madeira trabalhada, ordinariamente triangular, posta de cutelo sobre a mesa do balcão. Alguns d'estes ornamentos, vermelhos e dourados ou simplesmente na côr da madeira, deliciosamente entalhados, são verdadeiras obras de arte. As taboletas são verticaes, estreitas e compridas, com os caracteres em relêvo dourados ou pretos sobre fundo vermelho ou vice-versa. As mais bonitas lojas e as de mais ricas taboletas são as dos sapateiros. Quasi todas as lojas são toldadas com pannos azues. Chinas sentados por dentro do balcão escrevem pintando sobre meias folhas de papel, tendo sempre ao lado a conhe cida máquina de contar - o abaque (...) Deve, porém, dizer-se que o uso do abaque remonta na China ao reinado do imperador Fou-Hi, quer dizer, ao anno 2852 antes da era christã! É notável a presteza com que todos os chinas, sem excepção, se servem do abaque, chegando mesmo alguns a fazer ao mesmo tempo com cada uma das mãos em dois abaques contas differentes. Nos talhos vêem-se suspensas as grandes peças de carne e as aves já sem pennas. Debaixo de toldos, na rua e ao lado de bancos, prepara-se o chá e cozinha-se em fogareiros, como nas vendas das roarias. Vendedores ambulantes apregoam fructas, as belas lechias da cor de tijolo como os abrunhos, e com o delicado sabor das uvas moscatéis. Outros apregoam hortaliças. Um formigueiro de chinas atulha as ruas n'uma grande azáfama".

Era assim em 1887 e assim é hoje.

PAGODES

Relata Arnoso: "Os principaes pagodes de Macau são o da Barra, o da Porta do Cerco e o de Matapan. A religião budhista é a que principalmente domina na China, apesar de ter sido primitivamente muito perseguida como contrária às leis estabelecidas. É muito grande o número dos seus deuses. Existe um céu, um purgatório e um inferno. Conforme os presentes que se fazem aos deuses e a prática das virtudes, assim se tem a certeza de ir para um ou outro d'estes logares. Acreditam na metempsychose, e assim ha casos de fanáticos que se matam para voltar à terra transformados em mandarins (...).

Os mais virtuosos vão directamente para o céu gosar da eterna bem-aventurança; os d'uma virtude média voltam à terra em corpos de ricos mandarins; os scelerados, como é natural, para as profundas do inferno. Os sacerdotes, os bonzos, jejuam, são celibatários, e usam a cabeça toda rapada à navalha. Quasi todos os pagodes são eguaes".

Nós diríamos antes: todos os pagodes são desiguais.

Quanto ao de Matapan, não sabemos a que pagode quer aludir, pois não há nenhum com este nome.

A doutrina do budismo, segundo o seu fundador, Saquiamuni, reduz-se a "quatro verdades santas:"

1. Tudo é dor;

2. Esta provem da sede de viver e de gozar;

3. Não se pode suprimir senão pelo aniquilamento completo do desejo, que faz entrar na paz do Nirvana.

4. O caminho que lá conduz tem 8 encruzilhadas, que se relacionam com:

a) moralidade (5 regras de vida; veracidade, doçura, decência, não violência, concórdia);

b) concentração (domínio de si, lucidez, serenidade, alegria calma);

c) sabedoria, que aprecia o vazio do mundo, suprime o desejo e termina no nirvana.

Teatro chinês ao ar livre.

("The Hong Kong Illustrated")

O PAGODE DA PORTA DO CERCO

Arnoso descreve este pagode que é o Lin-fong-miu, ou Pagode de Lotus: "O da Porta do Cerco olha para um vasto terreiro rectangular, cercado por um muro de cantaria, e onde quatro velhas árvores enormes estendem para o céu os ramos carcomidos. Uma escadaria formada por seis degraus de pedra e ladeada por dois dragões, também de pedra, dá ingresso às três portas do pagode. O corpo central é mais elevado que os laterais. Sobre o madeiramento polido do tecto assentam as telhas às fiadas pretas e brancas. Nas paredes, estuques delicados desenham monstros phantásticos. As portas têem guarda-ventos de madeira, entre colunnas de madeira também, como as que se elevam pelo interior do templo. Em grandes taboas vermelhas, compridas e estreitas, estão escritos votos e sentenças. Nos altares, com frontaes de madeira delicadamente trabalhados, de fundo vermelho e relevos dourados, ardem, em vasos de bronze, folhas de papel vermelho, lapchocs (velas de sebo) e pivetes encarnados e pardos, em frente dos ídolos cercados de altas pyrâmides de flores de papel. Ídolos maiores e mais estapafúrdios, com ares de arremesso, ladeiam os altares. Outros, ao lado das portas, descançam, sentados em cadeiras, metidos em nichos nas paredes, com as mãos disformes cruzadas sobre as monstruosas barrigas. Há-os com todas as expressões, desde a cara mais alegre e avinhada até ao mais sombrio e carregado semblante. A meio do pagode, e suspensa por uma corda d'uma trave, está a bátega, um grande bombo; do outro lado, e também suspenso d'uma trave, um sino. Num dos corpos do templo há um tanque de pedra, onde, em água lodosa, vivem frescos lotus viçosos. Sobre este tanque o madeiramente do telhado rasga-se, descobrindo o céu e formando assim uma espécie de pequeno claustro. Sobre os altares vêem-se pequenos toros toscos de madeira, que se lançam ao ar aos três e três para consultar a sina. Tudo depende da disposição por que elles caém".

RESPEITO PELOS MORTOS

Diz Arnoso: "Os chinas têm um grande res-peito pelos mortos: inhumamnos com grande pompa, mettidos em enormes caixões construídos de pesados madeiros. Não têm cemitérios; enterram os cadáveres pelas encostas das colinas, fazendo escolher previamente o logar por um bonzo. Esta escolha leva dias e dias, com o morto dentro de casa, e é toda uma complicação".

Trata-se de escolher um local com bom fong-sôi, ou seja, um local propício e auspicioso com boas influências para o repouso da alma.

Luís Gonzaga Gomes, em Macau, factos e lendas, escreve: "Não há ninguém que não saiba que os chineses dão grande influência ao fong-sôi (vento e chuva), ou seja, à geomancia. Para este povo, eminentemente supersticioso, um determinado curso que segue um fio de água, a característica orientação duma serra, a peculiar situação dum túmulo e a especial posição e situação de mil e uma coisas com que topa a cada passo, constituem as manifestações visíveis das influências auspiciosas ou perniciosas da natureza".

Os geomantes consideravam Macau a terra ideal do bom fóng-sôi: a Praia Grande era um gigantesco e auspicioso caranguejo, cujos olhos eram os antigos fortins de S. Pedro e S. João, o primeiro onde hoje está a estátua de Jorge Álvares, o segundo em frente da Travessa de S. João.

Por isso construiram-se ali as casas apalaçadas, de cor verde ou amarela, i. é, as cores do caranguejo.

Outro animal auspicioso é o dragão e Macau possuía um dragão gigantesco: a cabeça era a Penha, o corpo estendia-se até à Lapa, atravessando o delta; atravessava de novo o rio e ia até Ch'in-Sán, assentando a cauda nas Portas do Cerco.

A Avenida Almeida Ribeiro foi a espada que cortou o dragão em duas partes, norte e sul de Macau.

CEMITÉRIOS

Escreve Arnoso: "Existem em Macau três cemitérios: o dos catholicos, o dos inglezes e um de parsas. Nos cemitérios parsas todas as sepulturas são absolutamente eguaes, ou sejam de pobres ou de ricos. São estes os verdadeiros campos da egualdade".

Refere-se aos Cemitérios de S. Miguel, Protestante e dos Parses.

O Cemitério de S. Miguel foi construído em 1853-1854 por subscrição pública e inaugurado a 2 de Novembro de 1854. Em 1856 ficando o cargo da Diocese, sendo o Cemitério dos Católicos.

No entanto, os jacobinos de 1910 abriram-no a todos, católicos, protestantes ou pagãos.

O Cemitério Protestante, no Largo de Camões, foi construído em 1821 não só para os ingleses, mas para todos os protestantes em geral. Este era o Cemitério antigo; havia outro Cemitério Protestante em Mong-Há, que foi vendido ao governo em 1971 pela soma nominal de uma pataca.

O Cemitério dos Parses, na Guia, data de 1829.

Os Parses são os descendentes dos Persas que emigraram para a Índia no séc. VIII, quando a sua terra foi conquistada pelos árabes.

Aí por 1770, os Parses de Bombaim passaram a comerciar com a China.

Das 14 pessoas ali sepultadas, 11 são naturais de Bombaim. A sepultura mais antiga tem esta inscrição: "Dedicada à memoria do falecido Cursetjee Franjee, natural de Bombaim, que partiu desta vida a 17 de Março de 1829 com 56 anos de idade".

HOSPITAL KENG-WU

Arnoso descreve-o assim: "O hospital china, sustentado pelos chinas ricos de Macau, tem inteiramente o ar dum pagode. É ali, em volta d'uma grande mesa e sentados em pesadas cadeiras de braços, que os magnatas chinas se reúnem para deliberar sobre os negócios que mais de perto os interessam. É daqui que partem as representações dirigidas pela população china ao governador. Todos os governadores, depois de terem tomado posse, marcam dia para visitar este hospital, onde são recebidos por todo o synhedrio chinez. Pelas paredes lêem-se sentenças esculpidas em mármore. Em frente duma imagem de Budha arde uma lâmpada. A parte propriamente ocupada pelo hospital fica separada desta por um jardim. Dum e d'outro lado de compridos corredores estão os quartos dos doentes. Cada quarto, relativamente aceiado, tem a sua cama com cortinado de chita. São grandes os beneficios que este hospital presta aos chinas pobres. Mesmo os chinas catolicos têem uma grande repugnância em ser tratados por europeus. Nunca perdem inteiramente os prejuízos da sua religião. Dum china, que dizem ser óptimo homem e catolico, sabemos que preferiu ver morrer de parto a mulher, de quem de resto gostava muito, a consentir que um médico europeu lhe tocasse".

O hospital chinês de Keng-Wu foi fundado em 1871, tendo os chineses obtido autorização a 26 de Junho de 1870.

Em 1888, o Departamento da Defesa Marítima de Ching-San concedeu a este hospital um terreno para cemitério fora das Portas do Cerco.

Em 1892, o pai da República Chinesa, Sun Yat Sen, depois de se formar em medicina no "Medical College" de Hong Kong, veio trabalhar para este hospital, sendo ele o primeiro a aplicar ali a medicina europeia.

CASAS DE ÓPIO

Arnoso dá-lhes o nome de clube e descreve-as assim: "A casa não é muito vasta e é cheia de cubículos com as camas onde se fuma ópio, verdadeiras alcovas abertas nas paredes com uma simples tarimba; os alísares dos vãos são guarnecidos por finas e delicadas grades de madeira trabalhada. Em todas as casas há muitas destas grades a meio mesmo das salas formando divisórias. A cama ou tarimba é forrada com uma esteira. São espaçosas para dar logar a dois amigos fumarem ao mesmo tempo. No centro da cama e sobre um taboleiro de charão dispõem-se os cachimbos, a lâmpada do alcool, a pequenina caixa com o ópio e o estilete metálico com que se carrega o cachimbo. Contra a parede do fundo encostam-se os dois pequenos travesseiros chinas, duros como pedras, pois são sempre de madeira. Os cachimbos têm a forma de compridas flautas com o depósito para ópio atarrachado numa das extremidades. O depósito é bojudo e gordo, apesar de ser apenas atravessado por um estreito orifício. É rica a mobilia do club, de tamarindo com incrustações de mármore".

A seguir descreve o chinês Lam-Hami-Lin a fumar ópio: "Deitado ao comprido e de lado sobre a cama, com a cabeça encostada sobre o duro travesseiro, principiou por desatarrachar devagar e com amor a pequenina caixa onde estava o ópio; em seguida, acendeu a lâmpada e, tomando com a ponta da haste de metal um pouco de ópio gelatinoso, levou-o à chama.

Ardendo como lacre, fazia girar a haste para o não deixar cair. Passados alguns minutos e reduzido já o ópio a uma pequena bola rescendente de perfume, introduziu-a, chegando também a chaminé do cachimbo à chamma, no orifício do depósito. Sempre deitado, era com delícia e paixão, e com os olhos. meios cerrados, que aspirava o aroma subtil".

Os ingleses protestantes introduziram duas coisas na China: a Bíblia para salvar as almas e o ópio para matar os corpos.

Hospital do Conde de S. Januário. Gravura da espectacular fachada do Hospital, projecto do Barão do Cercal, António Alexandrino de Mello; dirigiu a obra o Cap. Henrique Dias de Carvalho (Director das O. P.); foi inaugurado no 1o de Dezembro de 1872.

O JOGO DO "FANTAN"

Escreve Arnoso: "O china tem, como nenhum outro povo a paixão do jogo. Em Macau, no bairro china, são numerosas as casas de fan-tan. Iluminadas com balões e lanternas estão abertas durante todo o dia e até à meia noite. A sala de jogo é no primeiro andar. Ao subir a escada, na parede do fundo, em frente do patamar, está escripto em caracteres chineses: "No primeiro andar está a felicidade". O jogo faz-se em volta duma mesa quadrada coberta com uma esteira fina. Sentado a uma das faces desta mesa está o banqueiro que coloca as paradas segundo a indicação dos pontos e as paga em seguida, ajudado por um outro china sentado perto delle em frente duma pequena banca. Este china, com uma balança deante de si, vae preparando os trocos, embrulhando o dinheiro em papel e escrevendo por fora o seu valor. Com a mania que os chinas têem de carimbar todas as moedas, ellas vão successivamente perdendo o seu peso, tornando-se por isso absolutamente indispensável a operação da balança. Na face contígua da banca, e à mão esquerda do banqueiro, está o china que prepara o golpe. Um quadrado de madeira collocado ao meio da mesa serve para marcar as paradas. Joga-se aos números 1, 2, 3 ou 4 ou a combinações destes números. Quem joga só a um número ganha três vezes o que aponta; quem joga a dois ganha duas vezes a parada; quem joga a três ganha apenas uma vez, sempre, já se vê, com a dedução de sete por cento para o banqueiro. O china que prepara o golpe tem deante de si um monte de sapecas, umas duzentas, talvez, e uma tigela de porcelana ou de metal. Com uma das mãos separa deste monte uma porção de sapecas que cobre com a tigela. Depois de estarem as paradas todas feitas descobre as moedas e com um estilete de madeira separa-as a uma e uma aos grupos de quatro. Se as últimas moedas que ficam são quatro, ganha o número 4, se três, o número três; se duas, o número 2, se uma, o número 1. Cada golpe, como se vê, com a contagem das sapecas e depois com as pagas é muito demorado".

Hoje, além do fan-tan, há muitos outros jogos em vários casinos da cidade.

AS SENHORAS

Escreve Arnoso: "Se é certo que das senhoras de Macau se não pode dizer que sejam verdadeiramente bellezas, na estúpida e estreita acepção desta palavra, é certo também que nos encantam com a lânguida morbideza do seu triste olhar magoado. Toda a macaísta sem excepção, pode dizer-se, tem as mãos e os pés bonitos. Sabem-no tão bem que na rua, e principalmente aos domingos, à saída da missa, mesmo aquellas que usam sempre o dó, e são muitas, encontram maneira de se envolverem n'elle por forma a deixar ver pé e mão, o que não é fácil. O dó é a velha e comprida mantilha portugueza, que as macaístas conservam ainda usando-a com requintada elegância".

O inglês Peter Mundy, que visitou Macau em 1637, fala das "lindas mestiçazinhas Escolástica e Catarina, e suas irmãs tão lindas, tão lindas, que não se acharia talvez igual em todo o mundo que pudesse rivalizar com a sua linda figura e compleição".

No entanto, século e meio depois, um holandês que visitou Macau, diz que as belezas entre as senhoras macaenses eram tão raras como corvos brancos. Trata-se de A. E. van Braam Houckgeest, que fez uma longa descrição de Macau no 2°vol. do seu livro Voyage de l’Ambassade de la Compagnie des Indes Orientales Hollandaises vers l’Empereur de la Chine dans les annés 1794 et 1795. Este homem de língua afiada não poupa os habitantes de Macau, dando-lhes ferroadas imerecidas. É claro, que nenhuma macaense ganhou até hoje o concurso de "Miss Universe", mas não faltam cá beldades.

FAMÍLIAS RICAS

Arnoso escreve: "Em Macau havia famílias muitíssimo ricas: essas riquezas, porém, desappareceram com a probição da emigração dos culis e o terrível tufão de 1874 seguido de inundações, de incêndios e de roubos. Dessa espantosa catástrophe apenas se salvaram as fortunas de poucos que tinham os seus valores em fortes companhias de seguros e algumas propriedades em Hong Kong. Fala-se ainda hoje, como dum sonho, do luxo desse tempo em que as senhoras se faziam acompanhar aos bailes pelas suas aias para mudar de toilette três vezes durante a noite! Casas havia em que punham nos sobrados cubos de ouro maciço para as portas não baterem contra os rodapés das paredes. No theatro lyrico, nas noites de benefício das primas-donnas o entusiasmo não se traduzia apenas numa chuva de flores. Atiravam-se para o palco collares de pérolas, adereços de brilhantes, de saphiras e rubis. Ganhava-se muito dinheiro quasi sem trabalhar; gastava-se à farta; ninguém pensava no dia seguinte, passando ricos e remediados uma vida de verdadeiros nababos ociosos!"

Há aqui muito exagero. Arnoso escreve o que ouviu contar a algum macaense gabarola. Nós, que publicámos o nosso livro O Teatro D. Pedro V, nunca deparámos com senhoras a deitar pérolas e colares para o palco.

Com a fundação de Hong Kong, Macau entrou em decadência. Houve apenas o intervalo da emigração dos cules, em que algumas famílias enriqueceram, mas muito poucas.

O êxodo constante dos macaenses para Hong Kong mostra onde estava a riqueza. ·

* Bernardo Pinheiro de Mello (1855-1911), 1°Conde de Arnoso, foi fidalgo da Casa Real, secretário de D. Carlos l e seu amigo. Filho do visconde de Pindela, aparece referido como Bernardo Pindela nos meios e tertúlias que frequentou, v. g. Eça de Queirós, de quem foi amigo, e no célebre grupo "Os Vencidos da Vida" a que pertenceu. Oficial de Engenharia, foi escritor conhecido no seu tempo (Azulejos, com prefácio de Eça de Queirós: De braço dado, contos, de colaboração com o Conde de Sabugosa; Primeira Nuvem e Suave Milagre, peças de teatro). Acompanhou D. Carlos nas viagens a Espanha, França, Alemanha e Inglaterra. Em missão diplomática, acompanhou Tomás de Sousa Rosa a Pequim, viagem de que resultou o seu livro Jornadas pelo Mundo (1894).

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até a p.