Linguística

De D. Inês a Yang Guifei e Zhenfei

Wang Suo Ying*

Desde que conheci o drama de Inês de Castro, e sempre que me ocorre à memória o seu nome, lembro-me imediatamente de duas heroínas de tragédias amorosas chinesas, igualmente vítimas da razão de estado ou da política - Yang Guifei e Zhenfei.

Yang Guifei (719-756) era a concubina favorita de Tang Ming Huang (685-762), impedrador da Dinastia Tang. Fora, antes, nora do Imperador. Bela e inteligente, inspirou a paixão do Imperador que a mandou passar algum tempo num templo tauísta, para que se tornasse, mais tarde, sua concubina. Em chinês, guifei (concubina preciosa) era um título designativo da primeira concubina do Palácio, imediatamente inferior à Imperatriz na escala hierárquica do harém imperial.

Na antiga china, a poligamia dos imperadores estava institucionalizada. Na Dinastia Tang, um imperador podia ter uma "mulher legítima", a imperatriz; quatro fei (concubinas de 1a categoria) designadas guifei, shufei, defei e xianfei; nove pin (2a categoria); nove jieyu (3a cateogria); nove meisen (4a categoria); nove cairen (5a categoria); vinte e sete baolin (6a categoria); vinte e sete yunu (7a categoria); vinte e sete caimu (8a categoria) - além das numerosas fâmulas dos palácios.

Entre tantas mulheres, era com Yang Guifei que Tang Ming Huang vivia maritalmente, razão por que o famoso poeta Bai Ju Yi (772-846) se referiu no seu célebre poema "Ode ao Ódio Eterno", aludindo à situação, a "três mil belas no palácio, três mil amores numa só"*.

Por amor de Guifei, o Imperador concedeu graças a toda a família Yang: o pai de Yang Guifei recebeu o título póstumo de guogong (maior distinção honorífica concedida a cidadãos não pertencentes à casa imperial), o tio foi feito ministro, um primo foi chefe do departamento de protocolo, um outro primo foi casado com a filha do Imperador, outro ainda (Yang Guozhong) foi elevado a primeiro-ministro e obteve o título de guogong, três irmãs foram agraciadas com o título de guofuran (o equivalente de guogong para as mulheres).

"Assassínio de lnês de Castro", por Desenne ("Os Lusíadas", edição monumental do Morgado de Mateus).

Tradicionalmente, sempre os chineses preferiram ter varões a meninas. Confúcio dixit: "Dentre os três pecados contra o amor filial, não ter varão é o mais grave". Mas a sorte da família Yang modificou os conceitos reinantes nos seus contemporâneos que passaram a "preferir ter filhas a filhos" (Ode ao Ódio Eterno).

A rara edição da "Castro" (Inocêncio F. da Silva e Júlio de Castilho atribuem um erro à data da impressão, que supõem ser do século seguinte).

"A felicidade implica sempre a desgraça"; assim, passados dezasseis anos, uma extrema tristeza gerou-se da extrema alegria em que mergulhavam Yang Guifei e Tang Ming Huang. Em 755, An Lushan, poderoso general do Imperador, revoltou-se contra a dinastia sob a bandeira de escorraçar o mal do país, referindo-se a Yang Guozhong, primeiro-ministro e primo de Yang Guifei. À aproximação dos revoltosos da Capital, o Imperador fugiu aterrorizado, com toda a corte, rumo à província de Sichuan. Quando chegou a Ma Wai Ting, hoje no distrito de Xingping da província Shanxi, a escolta recusou-se a continuar. Exaltado, lançou as culpas da revolta e da sua desgraça sobre Yang Guifei e Yang Guozhong, condenando-os à morte. Assim morreu Yang Guifei estrangulada.

Alguns estudiosos pensam que foi o príncipe Li Heng, para consolidar a sua posição de sucessor legítimo e ampliar as suas influências, quem instigou os soldados da escolta a exigirem a morte de Yang Guifei. Segundo a tradição, ela morreu sem uma queixa, por amor ao Imperador. Esta versão revela-se numa peça de dança, "Ode ao Ódio Eterno", levada à cena na China no ano passado.

Após a morte de Yang Guifei, Tang Ming Huang concedeu o trono ao príncipe Li Heng e este conseguiu esmagar a revolta e recuperar a capital.

A partir daqui é a lenda que fala. Tang Ming Huang, regressado à capital, vivia na mais profunda tirsteza, pensando dia e noite na sua amada. Comovido por essa atitude, um tauísta deslocou do corpo a sua própria alma, ao paraíso, ao inferno, a todos os mundos, em busca de Yang Guifei, encontrando-a finalmente: era deusa num palácio da montanha Penglai (residência dos deuses na lenda chinesa), situada no Mar Leste.

Yang mostrou profundas saudades do marido; pediu-lhe então o tauísta para lhe revelar um segredo íntimo dos dois, como prova desse encontro. Yang revelou, então, que no ano 751, alta noite do dia 7 de Julho lunar, noite em que se encontravam anualmente o Pastor e a Tecelã (casal de amantes que era separado todo o resto do ano pela Imperatriz Celestial, segundo a lenda chinesa) ela e Tang Ming Huang tinham jurado no Salão da Longevidade, à puridade absoluta, que seriam marido e mulher em todas as suas vidas. O tauísta voltou à terra e contou isto a Tang Ming Huang. Este ficou tão impressionado que adoeceu, e morreu.

A aventura amorosa de Zhenfei (1876-1900) com o Imperador Guangxu (1871-1908) não foi tão romântica nem tão complicada como a antecendente, mas também não carece de passos emotivos.

Dizem que o Imperador Guangxu (penúltimo da monarquia chinesa) elegeu Zhenfei para sua imperatriz, mas que a imperatriz-mãe lhe impôs a sua sobrinha, pelo que Zhenfei ficou relegada a concubina favorita do Imperador.

Quando subiu ao trono, era ainda criança o imperador Guangxu, tendo a imperatriz Cixi usurpado todo o exercício do poder. Em 1887, Guangxu começou a tomar rédeas do poder mas, na realidade, tudo continuou sob o rígido controle de Cixi.

Em 1887, Guangxu decidiu introduzir reformas na China, mas a isso se opôs obstinadamente a imperatriz-mãe, à cabeça das forças mais imobilistas. Assim Guangxu acabou por ser encarcerado às ordens de Cixi.

Como Zhenfei era favorita do imperador derrubado, e sempre o apoiara na conquista do poder e nas intenções reformistas, tornou-se alvo do ódio de Cixi. Em 1900, quando as tropas estrangeiras invadiram Pequim, a Imperatriz Cixi, antes de fugir, mandou aos eunucos que afogassem Zhenfei num poço do Palácio Imperial. O imperador Guangxu, sempre enclausurado e desgostoso, morreu alguns anos depois.

Na história chinesa, sempre foi frequente o recorrer-se à acusação de que as "mulheres arruinaram o país" para justificar alguns incidentes históricos. Na realidade, as mulheres de grande beleza foram, antes, vítimas da necessidade política, bodes expiatórios de ambições e lutas alheias, como pode comprovar-se nas duas tragédias reais.

A Imperatriz viúva Cixi (1835-1908) posando num cenário como Deusa Budista da Misericórdia. O famoso chefe eunuco Li Lien-Ying, encontra-se à direita. É suposto ter sido sob o seu comando ou ordem que Zhenfei foi executada. (Foto atribuída à Princesa Der Ling).

É curioso notar a analogia nas histórias diferentes dos dois países. O grande escritor chinês Lu Xun, disse: "... atribuir às mulheres as culpas da derrota e da ruína, é de homens desprezíveis. Há demasiado tempo que as mulheres suportam as culpas dos erros de todos".

De facto, tanto D. Inês de Castro como Yang Guifei e Zhenfei, cometeram apenas o "crime" de serem belas e amadas de príncipes, reis e imperadores. Embora os seus amores se situem nas zonas da "razão de estado" e do poder, por ligação aos seus agentes directores e supremos, e mesmo sabendo que a política, como o amor, é uma guerra exigente algumas vezes de vítimas humanas, tudo isto não pode desculpabilizar os verdadeiros responsáveis e, automaticamente, operar uma transferência de culpas. Em D. Inês, em Yang Guifei, também em Zhenfei, o que ressalta é a inserção do abuso nepótico na área nuclear do poder, e suas consequentes ameaças e corrupções. Todos se salvam, elas pagam. É a injustiça, que dá maior carga poética à tragédia.

Da mesma maneira que a tragédia de Inês e D. Pedro inspirou muitos poetas e obras literárias, cinematográficas, teatrais e plásticas (célebres ficaram as estrofes de Camões nos "Lusíadas", a "Castro" de António Ferreira, "La Reine Morte" de Henry de Montherlant), também a tragédia amorosa de Yang Guifei tem sido um dos temas mais férteis da literatura chinesa, inspirando, entre outras, a famosa peça "Salão da Longevidade" de Hong Sheng, e o famosíssimo poema de Bai Ju Yi, "Ode ao Ódio Eterno", que narram o drama, nele integrando a história, a lenda e o folclore chineses. Dentre as inúmeras obras sobre a história amorosa de Zhenfei, a mais conhecida é o filme intitulado "História Secreta do Palácio Qing".

Tanto em Portugal como na China, pode verificar-se a grande afeição, dos letrados às classes populares, pelas três heroínas, elevadas a mito na alma colectiva, e assim despertando sempre emoções tão profundas e duradouras.

Tal como o monumental túmulo de D. Inês em Alcobaça, também ainda existem hoje, na China, a estância termal que Tang Ming Huang mandou construir para Yang Guifei no antigo Palácio Huaqing (perto de Xian), e o poço onde morreu Zhenfei, no Palácio Imperial (Cidade Proibida) em Pequim, que são visitados todos os dias e objecto de condolência de tantos turistas.

Último consolo, para tão desgraçadas vítimas do amor.

NOTAS

NR- O número global de concubinas, e bem assim a sua divisão em classes hierárquicas e os números de cada uma das classes, não era arbitrário, na antiga China. Tratava-se de um escalonamento em pirâmide, rigorosamente adequado ao calendário lunar e à simbologia e metafísica eróticas segundo a sabedoria tauísta. Assim, era lícito ao Imperador dispor de um número limitado de concubinas, em progressão decrescente e começando nos escalões inferiores ao topo. Tudo era ordenado segundo o número 9, omnipresente no esoterismo chinês (e também no ocidental, pelo menos em certas tradições, v. g. "O esoterismo de Dante", de René Guenon). As quatro fei podiam servir o Imperador nos dias imediatamente antecedentes da Lua Cheia plena, noite unicamente reservada ao encontro com a Imperatriz.

Com certas regras e fórmulas, o enlace imperial simbolizava operativamente a união do elemento masculino (yang) com o feminino (yin), do Sol (o Imperador era filho do Sol) com a Lua, na sua máxima plenitude (imperatriz - arquétipo feminino).

NR - A propósito desta referência a um poema da Bai Ju Yi alusivo à situação de Yang Guifei, remetemos também o leitor para o no 4 da RC, pág. 70, onde se publica um poema de Li Bai, cujas notas remetem ao mesmo assunto. Transcrevemos a II parte do poema ("Canções para as peónias") e uma dessas notas, de autoria (como o artigo) do Dr. António Graça de Abreu:

II

Um ramo de soberbas e belas flores

docemente matizadas de orvalho gelado.

Incomparável noite de amor

na Montanha da'Mulher Encantada (2)

onde todo o sofrimento é vão.

Eu pergunto quem se assemelha a ela

no Palácio dos Han?

Como não lamentar a "Andorinha Voadora"

que apenas pode contar

com seus enfeites? (3)

"Como explicação do poema, tem sido normalmente aceite pelos comentadores chineses, ao longo dos séculos, a seguinte história:

"O imperador Xuanzong estava com Yang Guifei, a concubina favorita, nos jardins do palácio. Colhiam peónias, flor recente no império, importada da Índia, quando Xuanzong mandou chamar Li Bai e lhe pediu um poema. Li Bai chegou completamente bêbedo, tendo sido necessário reanimá-lo com água fresca. Logo depois, o poeta compôs estas três estrofes que seriam uma das causas do seu banimento da corte. O influente eunuco Gao Lishi terá conseguido convencer Yang Guifei de que o poeta a havia comparado a Zhao Feiyen, a famosa "Andorinha capaz de dansar na palma de uma mão". Feiyen foi cortesã e depois a concubina favorita do imperador Cheng, dos Han, no século I da nossa era. Depois de ter sido abandonada pelo imperador, suicidou-se. Yang Guifei considerou tal comparação um insulto e preparou a vingança, tendo conseguido que Li Bai fosse afastado da corte.

Arthur Walley, um dos primeiros grandes tradutores ingleses de poesia chinesa, nega esta interpretação e defende, com base em fontes chinesas que, em 745, data da elevação de Yang Guifei a concubina favorita, Li Bai já não vivia na corte imperial".

*Professora de Português da Universidade de Estudos Internacionais de Xangai (Departamento de Português); investigadora de temas da Cultura portuguesa. Bolseira do ICALP, prepara neste momento a tradução de "A Queda de um Anjo" (Camilo Castelo Branco) para língua chinesa.

desde a p. 119
até a p.