Atrium

RAFAEL BORDALO PINHEIRO O HOMEM E O ARTISTA

Irisalva Moita

RAFAEL Augusto Bordalo Pinheiro nasceu a 21 de Março de 1846, em Lisboa, na Rua da Fé, n° 47 (actual n° 33) terceiro filho de Manuel Maria Bordalo Pinheiro, funcionário público, artista enciclopédico, pintor, escultor, gravador, e de Dona Maria Augusta Prostes. Cresce num ambiente sobremaneira predestinado para as artes, mais próximo, pela idade, dos irmãos mais velhos, Manuel, Oficial da Marinha, e Feliciano, o futuro empresário da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha; liga-se, porém, pelo mesmo culto da Arte, aos irmãos mais novos, Maria Augusta, a delicada criadora de maravilhosas e artísticas rendas de bilros, e o grande Columbano. A sua juventude passou-a na casa que os pais tinham alugado na Praça da Alegria onde, com os irmãos mais velhos, organiza tertúlias com amigos, entre os quais se contava Gomes de Brito que viria a ser seu biógrafo, e a modesta casa da Rua da Correnteza, em Alcolena, por onde passaram alguns dos nomes que se viriam a celebrizar nas artes e na literatura contemporâneas e cujos saraus familiares Columbano imortalizou em telas de grande efeito.

Irrequieto, caprichoso e avesso a qualquer disciplina, não chegou a concluir uma carreira escolar, como sempre fora desejo de seu pai, o bondoso Manuel Maria. Chegou a matricular-se, sucessivamente, na Academia de Belas-Artes, no Curso Superior de Letras e na Escola de Arte Dramática, para, logo, de seguida, desistir, ou nem sequer chegar a frequentar Espírito criador, dotado de grande espontaneidade, confiou apenas no seu auto-didatismo. A alguém que, no Brasil, acintosamente indagara sobre as suas habilitação literárias, respondeu:“Tenho o curso da Rua do Ouvidor... Cinco Anos. Canto de ouvido!"

Muito jovem tenta a carreira teatral, chegando a estrear-se como actor no pequeno Teatro Garret, na Travessa do Forno, aos Anjos-Crítico exigente, considera-se um cómico falhado, o que o levara a desistir de aparecer na ribalta. Fica-lhe, porém, a paixão pelo Teatro, que o levará a colocar grande parte da sua arte e do seu génio ao serviço da cena e dos actores, muitos dos quais ajudará a imortalizar.

Em 1866 casa com Dona Elvira Ferreira de Almeida, casamento romanesco que se celebra contra a vontade dos pais da noiva, o que o levará a tirá-la, por intermédio da justiça, de casa dos pais. Deste casamento por amor resulta, naturalmente, um ambiente familiar calmo e feliz que nem mesmo a terna e espiritual paixão pela bela Maria Visconti, devido à extrema descrição usada por Rafael, chegou a perturbar. Teve três filhos, Manuel Gustavo (1877), seu discípulo e continuador, Dona Helena Bordalo Pinheiro e uma outra filha que morreu criança. As suas relações com a família foram sempre privilegiadas por uma grande dedicação, tanto em relação à mulher e aos filhos, como em relação aos irmãos e aos pais. São testemunho de uma grande ternura para com os seus progenitores, o retrato familiar que compôs no Brasil, quando soube da morte da mãe, que intitula "Um olhar para o passado" e em que tão sentidamente expressa a saudade pela terra e pelos seus, como também as enternecidas páginas que, com Columbano, dedica a seu pai em "O António Maria", quando da morte deste em 1881.

Influenciado pelo ambiente familiar pensou, de início, ganhar a vida como artista plástico, concorrendo, com regularidade, entre 1867 e 1874, às exposições da Sociedade Promotora de Belas-Artes, com obras onde deu uma preferência, quase exclusiva, a tipos populares e cenas de costumes. A este artista extremamente convivente, a paisagem dizia pouco. É o homem como figura social que já nesta fase o preocupa e se transformará no grande motivo de inspiração em qualquer das modalidades artísticas que vai explorar.

Ao mesmo tempo que concorria às exposições da Promotora, onde chegou a alcançar alguns dos prémios, e tentava os primeiros avanços no ingrato campo da caricatura crítica e artística, para subsistir e manter a família, desenvolvia uma grande actividade como ilustrador e decorador, compondo desenhos para capas, ilustrando romances, colaborando em almanaques, assinando litografias e anúncios ilustrados, tendo chegado a colaborar em revistas estrangeiras, como“El Mundo Cómico”(1873 e 1874), na "lllustrated London New" (1873), em“El Bazar", etc,

Foi, na realidade, neste período, que Ingram, co-proprietário da “lllustrated London News", procurando alguém capaz de desenhar, para aquela exigente revista, aspectos da luta entre carlistas e liberais que, então, ensanguentava a Espanha, encontra através de Tomás da Anunciação Rafael Bordalo Pinheiro que, aceitando o convite, parte para Espanha em Março de 1873, donde envia uma série de admiráveis desenhos de costumes espanhóis que despertam tal interesse que é convidado a transferir-se para Londres. O apego à sua terra e à sua família, outro traço do carácter de Bordalo, leva-o, porém, a desdenhar este e outros convites.

Outras solicitações, principalmente ligadas ao teatro, também o atraem. Data desta época a sua colaboração em “Os Teatros de Lisboa", obra do seu amigo Júlio César Machado, para a ilustração da qual compôs cerca de duas centenas de delicados desenhos, e, datadas de 1873, são as litografias de Actores e Actrizes que destina a um álbum que, aliás, deixa incompleto.

É, porém, no campo da caricatura artística, modalidade de que é o iniciador entre nós, que se vai notabilizar como o primeiro e o maior caricaturista português. Começara a fazer caricatura por brincadeira, nos velhos corredores do Convento de Jesus, para fazer rir os companheiros, mas é a partir de 1870, com o êxito alcançado com "O Dente da Baroneza" alusiva à peça de Teixeira de Vasconcelos, então em cena, que a caricatura se lhe vai impor como uma opção decisiva. Segue-se-lhe "O Calcanhar de Aquiles" (1870), álbum onde Bordalo representou algumas das figuras mais conhecidas do meio literário lisboeta, ao mesmo tempo que se abalança, ainda no mesmo ano de 1870, à publicação dos primeiros jornais de crítica e caricatura: "A Berlinda", folha litografada de que se publicaram sete números; interrompida esta publicação, no seu terceiro número, lança "O Binóculo", hebdomadário de caricaturas que se vendia nos teatros; depois da morte de "O Binóculo", em Dezembro de 1870, retoma "A Berlinda", de que publica mais quatro números.

Em 1875, com Guilherme de Azevedo e Guerra Junqueiro que se ocultavam sob o pseudónimo de Gil Vaz, já utilizado pelos mesmos, como autores da Viagem à roda da Parvónia", lança o primeiro jornal de crítica de grande fôlego, "A Lanterna Mágica", cujo primeiro número sai a 15 de Maio daquele ano. É neste jornal que Bordalo, além de documentar acontecimentos sociais e efemérides várias, inicia a crítica sistemática às instituições, ao governo e aos políticos. É nele também que, pela primeira vez, aparece o Zé Povinho, figura símbolo do povo português, genial criação do grande caricaturista.

O êxito que obtiveram junto do público estes seus primeiros jornais de caricaturas, levaram-no a tomar verdadeira consciência da sua própria identidade, como artista, como intelectual e como cidadão, ao mesmo tempo que se dá conta da importante arma de que passa a dispôr a partir de agora, e do seu alcance pedagógico sobre a sociedade. Encoraja-se, então, a quebrar com a rotina familiar e, a partir de 1874, envereda decididamente pela caricatura, campo onde, aliás, triunfou às primeiras tentativas.

Na realidade, concorria em Rafael Bordalo Pinheiro um tão importante conjunto de predicados necessários ao caricaturista, espírito crítico, poder de síntese, penetração psicológica, amor ao próximo, desenho incisivo e rápido, intuição, poder de fixação do essencial, que era neste campo que o Artista havia de, forçosamente, encontrar-se.

ídolo da juventude intelectual e boémia de Lisboa, convivendo e estroinando com escritores, artistas e actores, dispõe de condições exepcionais de observação. O palco donde assentava a sua luneta crítica situava-se no interior da sociedade que o seu lápis iria escalpelizar.

Apesar destes sucessos iniciais, não vislumbrando, contudo, para breve, um rumo definido que o libertasse das exigências do dia-a-dia, deixa-se entusiasmar pela proposta que lhe dirige Manuel Carneiro, director de "O Mosquito", jornal humorista carioca.

Interrompe a publicação de "A Lanterna Mágica", cujo último número tem a data de 31 de Julho de 1875, e, diante do pasmo dos amigos e colaboradores, embarca para o Brasil, no famigerado Potosi, a 19 de Agosto de 1875.

Permanece no Rio de Janeiro durante quatro anos, lutando contra um meio hostil, saudoso da família e da terra. Na realidade, Rafael Bordalo Pinheiro era o que se pode chamar um produto da terra, que nunca se conseguiu aclimatar a outras paragens. Em 1876 manda ir a mulher e a filha, então ainda bébé; Manuel Gustavo, o filho mais velho, fica aos cuidados dos avós. Nunca quebra, porém, o cordão umbilical com a Pátria. Continua a enviar colaboração para jornais e revistas. É em 1876 que sai, em Lisboa, o "Álbum de Phrases e Anexins da Língua Portuguesa" com desenhos seus e gravuras de Severini, Alberto e Pastor.

Porém, às saudades da Pátria, juntam-se as dificuldades dum meio hostil que se tornam cada vez maiores, provocadas pelo seu temperamento inconformista que abala o corrupto meio brasileiro, onde o emigrante português era, muitas vezes, humilhado, o que muito magoava os sentimentos patrióticos de Bordalo Pinheiro. Em resposta a um ataque do Barão do Lavradio, aludindo a certos portugueses que iam para o Brasil fazer fortuna, de jaqueta de trinta botões, mandou fazer uma jaqueta azul, fechada por três ordens de dez escandalosos botões de madre-pérola, pôs umas calças brancas e, assim vestido, com as cores da sua pátria, fez o giro das principais ruas da cidade.

Depois da efémera colaboração em "O Mosquito" de que, por desinteligências com Manuel Carneiro, acaba por se tornar o director, funda, ainda em 1877, o "Psit!…" de que apenas se publicaram nove números e onde o caricaturista vai criar novos símbolos: o Psif!, elegante espirituoso, o Botafogo e o Arola, pé de boi apalermado, o "Canal de Mangue". Ainda lança uma nova revista, o "Besouro" que dura o curto espaço dum ano (1878-1879), folha humorística onde aparece um novo tipo-símbolo, o Fagundes, uma espécie de Conselheiro Acácio.

Ao lado de algumas amizades que gerou no Rio de Janeiro, provocou ódios que vão ao ponto de tentar a sua liquidação física. Uma segunda tentativa de assassinato frustrado e as súplicas de sua mulher, acabam por o demover e resolve-se a regressar a Portugal, onde chega, no vapor Valparaíso, em Agosto de 1879, para iniciar a fase mais brilhante da sua carreira de caricaturista.

Na realidade, é com "O António Maria", cujo primeiro número aparece em 12 de Junho de 1879, jornal que pretendia viesse a tornar-se a "crónica da vida política, vida social e artística portuguesa" e com o "Álbum das Glórias", considerados, no seu conjunto, as obras-primas da caricatura pessoal e política em Portugal, que Rafael Bordalo Pinheiro, em plena maturidade, atinge o ponto mais alto da sua brilhante carreira de combatente, político e social.

Não tendo sido nunca um político militante foi, porém, sempre, um espírito inquieto e uma personalidade interveniente, para quem não podia ser indiferente o destino do país e do povo. Assim, é nas páginas de "O António Maria"(1879-1885) e (1891-1899) e dos "Pontos nos ii" (1885-1891), jornal com índole idêntica à do anterior, e que se publicou entre a primeira e a segunda série de "O António Maria", que Bordalo se vai revelar o demolidor das caducas estruturas duma monarquia decadente e o entusiasta defensor do, então, nascente Partido Republicano. Na verdade, intervindo através da caricatura, cabe a Bordalo Pinheiro boa parte da responsabilidade da rápida ascenção e propagação das ideias republicanas. São páginas de grande empenhamento no triunfo destas ideias, "O Voto Livre", o "Amor da Pátria" e tantas outras belas composições em que a figura que personifica a República é sempre tratada como a encarnação dum elevado ideal.

Se para o conhecimento do político, do crítico e do panfletário se torna fundamental compulsar os jornais desta fase, não o são menos para o conhecimento de Rafael Bordalo em toda a sua dimensão de homem desinteressado e isento. Alguns factos, relacionados com a vida destes jornais e com figuras neles retratadas são, na realidade, importantes achegas que ajudam a melhor caracterizar a sua corajosa e humana personalidade. Estou a recordar-me da atitude por ele assumida, quando da greve dos jornalistas, em Janeiro de 1895, que esteve na origem da interrupção da primeira série de "O António Maria", quando se arvorou em defensor intransigente da mesma tendo então sido acusado por alguns colegas de o fazer por ser o seu jornal um semanário que, por isso, não seria atingido por aquela. Num rasgo audacioso, próprio do seu carácter de meridional, leva a sua atitude de intransigência às ultimas consequências. Interrompe a publicação do jornal e declara aos amigos que se vai fazer oleiro...

Na realidade, desde 1884, Rafael Bordalo Pinheiro aliara às outras suas actividades, mais uma: a de ceramista. Estreara-se, em Abril daquele ano, na Fábrica de Gomes de Avelar, nas Caldas da Rainha, para pouco depois inaugurar oficina própria, a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, de que era empresário o irmão, Feliciano, e onde iria dar largas ao seu poder criador, produzindo uma obra de grande originalidade que, além de ocupar um lugar de excepção na renovação da cerâmica artística em Portugal, não raro nos esmaga pela exuberância e novidade.

Mas o barro que, nas suas mãos, tanto se transformava no simples prato de servir à mesa, como no jarrão artístico para ornamentar o hall de um palácio, ou se modelava em figuras de populares ou políticos cheias de graça e humor, mostrava-se resistente a exprimir a crítica de panfletário. Por isso, breve, e paralelamente com a sua actividade ceramista, volta aos jornais e, assim, ainda no mesmo ano de 1885, em 7 de Maio, sai o primeiro número, dos "Pontos nos ii", onde Bordalo, faz substituir, logo na sua apresentação, o quixotesco António, pela Velha Maria (o senso prático), com a expressa intenção de vir pôr os "Pontos nos ii", sem apelo nem agravo. Na sua forma e conteúdo não diverge da linha que havia norteado a publicação anterior, mas é nas suas páginas, principalmente nas que consagra à "Questão com a Inglaterra", ao "Monopólio dos Tabacos", ao "Ultimatum" e à "Revolta do Porto de 31 de Janeiro", que o cidadão e o patriota se assumem em toda a sua dimensão e dignidade, denunciando, com violência e sem disfarces, a política de compromissos dos últimos governos liberais. Foi em consequência das violentas páginas dedicadas à Revolta de 31 de Janeiro do Porto e, principalmente ao virulento texto de Fialho de Almeida (Irkan) que, por ordem do Governo Civil, são encerrados os "Pontos nos ii", no seu número 293 de 5 de Fevereiro de 1891. Renasce, então, "O António Maria", 2a série, logo em 5 de Março.

Desencantado com a indiferença do público e, principalmente, profundamente desiludido com o conformismo mesquinho que se seguiu à grande afronta do "Ultimatum Inglês" de 1890, o lutador e panfletário vai dando cada vez mais lugar ao crítico e comentador de efemérides sociais. São belas páginas de crítica e de arte as que dedica a Sara Bernardt e à Duse, ao Carnaval de 1897, às Recitas de Gala em S. Carlos, e tantos outros acontecimentos que deram vida a Lisboa nos finais do século XIX.

Esta fase, menos combativa, mas não menos irónica, vai acentuar-se em "A Paródia", seu último jornal, cujo primeiro número é datado de Janeiro de 1900 e onde a colaboração do filho, Manuel Gustavo, já se sobreleva à sua. O desprezo que começa a sentir pelos jogos políticos e oportunismos está bem expresso na série de caricaturas com que abre alguns números deste semanário, dedicados à Política: a Grande Porca, às Finanças: o Grande Cão, à Economia: a Galinha Choca.

Bem expressiva da melancolia que dele se ia apoderando, na última fase, é a célebre caricatura em que se retrata nos dois pólos da vida, colocando o Rafael, na pujança dos seus 30 anos, diante do Bordalo, alquebrado, de "Vinte anos Depois", que se dirige ao primeiro, pedindo-lhe: "Dás-me lume?

De regresso duma viagem ao Porto onde fora encarregar-se das decorações para o Carnaval, morre, na sua casa da Rua da Abegoaria (actual largo de Rafael Bordalo Pinheiro), n° 28, no dia 23 de Janeiro de 1905. Ainda não tinha completado 59 anos de idade.

O artista plástico de tipos e costumes

TENDO crescido num ambiente especialmente devotado às artes plásticas, cedo desabrocharam as naturais aptidões artísticas de Rafael Bordalo Pinheiro. Júlio César Machado, seu amigo e, talvez, o seu melhor biógrafo, no Prefácio do "Álbum de Caricaturas" (1876), diz datar de 1857, quando, com a família, residiu em Cacilhas, fugindo à febre amarela, o seu primeiro desenho, afinal a cópia duma litografia representando uma família de camponeses, à beira-mar, esperando um fllho ausente. Este desenho que provocou um certo alarido na família - o jovem Rafael mal ultrapassara a dezena - não terá, porventura, outro mérito, senão indicar já, pela escolha do tema - uma cena popular- uma predilecção do Artista pelas cenas populares, predilecção que se vai transformar numa das grandes forças da obra do grande caricaturista, e que reflecte já a sua íntima ligação com o povo e com a terra.

Tendo desistido da carreira dramática que o vinha atraindo desde 1863, volta-se, a partir de 1886, data do seu casamento, mais decididamente para as artes plásticas. Foi durante a estadia, mais ou menos prolongada, que, a seguir ao casamento, fizera na Golegã, na quinta da Borôa, em casa do padrinho, o rico lavrador Rafael José da Cunha, que se dedicou, com afinco, ao desenho e à aguarela, datando desse período muitos dos seus estudos e um interessante álbum com esboços. Por estes esquissos vê-se que ainda que tenha tentado a paisagem, foi a figura humana, representada através dos tipos populares que o rodeavam, que, desde o início, o vai interessar principalmente. Uma vez instalado em Lisboa, conclui alguns destes estudos que envia à Exposição da Sociedade Promotora de Belas-Artes, onde mereceram, duma forma geral, o agrado público, sendo-lhe concedida uma menção honrosa, logo na primeira exposição a que concorreu, em 1867, o que o anima a prosseguir. Entre 1867 e 1874 vão aparecer, com regularidade, obras suas, desenhos e aguarelas principalmente, nas exposições anuais da Promotora.

O insucesso económico dos seus primeiros jornais de caricaturas, "O Binóculo" e a "Berlinda" - não obstante o grande sucesso que logo alcançaram as suas caricaturas - leva-o a dedicar maior atenção aos desenhos e aguarelas, compondo, então, a sua obra mais acabada e que, na época, produziu certo efeito. Refiro-me ao desenho a carvão, denominado Bodas na Aldeia ou A volta da Igreja que Júlio César Machado classifica, com algum exagero, de obra "admirável, de talento, de naturalidade, de composição, em que brilham juntos, a verdade e a graça". Datada de 1871, foi enviada com mais sete aguarelas e desenhos à Exposição Internacional de Madrid de 1872, onde conquistou uma menção honrosa para o autor, na modalidade do desenho. Voltou a ser exposta na IX Exposição da Sociedade Promotora de Belas-Artes, sendo, então, adquirida pelo Conde de Casal Ribeiro por um preço inferior ao gasto que o Artista havia dispendido com a sua execução. Este grande quadro a carvão e alguns dos estudos que o prepararam, encontram-se hoje expostos no museu dedicado ao caricaturista. Encontramos, ainda, obra sua na X Exposição da Promotora, em 1874, mas o sucesso alcançado pelo Almanach de Caricaturas (1873) e, principalmente, por A Lanterna Mágica (1875), confirmando, definitivamente, os seus excepcionais dotes de caricaturista, levam-no a abandonar a carreira artística onde, na realidade, só mercê da influência que o pai disfrutava no meio, conseguira ganhar algumas modestas "menções honrosas".

Aliás, a crítica, pressentindo o enorme talento para a caricatura que já se adivinhava em Bordalo, tratara de o desencorajar, fazendo crer que a caricatura não passava do refúgio procurado pelo artista falhado...

Além do desenho e aguarela - excepcionalmente, também alguns óleos - Rafael Rordalo Pinheiro entregou-se, ainda, nesta primeira fase, com interesse, à gravura, campo onde a sua intervenção parece ter trazido algumas novidades. Segundo Júlio César Machado, a gravura em madeira ficou a dever-lhe muito, pois foi o primeiro, entre nós, a tentar a gravura sobre claro-escuro. Ensaiou também a gravura em zinco e estudou a forma de fazer águas-fortes com meia-tinta. O Museu Rafael Bordalo Pinheiro possui uma interessante colecção de ensaios a água-forte que mostram o seu empenhamento no aperfeiçoamento deste processo que, aliás, utilizou não só na reprodução de estampas isoladas - com temática de natureza idêntica à das aguarelas e desenhos - mas também na reprodução de caricaturas de alguns dos seus álbuns, especialmente em O Calcanhar de Aquiles (1870), e no Álbum de Caricaturas (1876); aparecendo no primeiro como autor dos desenhos e das gravuras.

Paralelamente a esta incerta actividade de artista plástico, Rafael Bordalo Pinheiro foi ilustrador e, nesta modalidade que retomaremos em capítulo especial, foi muitas vezes buscar inspiração aos mesmos grupos e cenas populares com que se apresentara nas exposições da Promotora, É, na realidade, com quatro gravuras sobre tipos portugueses que colabora em "El Mundo Comico", A Cosquevilheira, A Ovarina, Os Fadistas e o Andador de Almas, publicadas, sucessivamente, na 1a, 2a e 3a séries daquela conceituada revista madrilena, entre 1873 e 1874; para "El Bazar", também revista ilustrada espanhola, envia duas ilustrações sobre tipos e costumes populares, Chicos jogadores de "a pefisca"e El Vendedorde Husos y Ruecas. Também a "lllustrated London Almanac" no seu volume de 1875, inseriu uma estampa reproduzindo uma aguarela, dada como sendo de sua autoria, The Portuguese Fisherman, se é que algumas das outras estampas, reproduzidas no mesmo volume, não lhe pertencem também.

Em Portugal, além da colaboração que presta, com regularidade, à Livraria Editora de Matos Moreira, no Rossio, colaborou no álbum "A Gravura de Madeira em Portugal" (1872), dirigido por J. Pedroza, com uma gravura, Os Fadistas, e em alguns periódicos. Além da portada e de várias vinhetas, algumas também reproduzindo cenas populares, a revista "Artes e Letras", dirigida por Rangel de Lima, insere, no seu 1° volume (1872), duas gravuras suas, representando, respectivamente, Os Dois Pequenos e O Rapaz dos Phosphoros. Para o "Diário Ilustrado", além de alguns retratos, envia O Jogo da Pefisca que é reproduzido no seu n° 468, de 29 de Novembro de 1873.

Mais tarde, já em pleno período de consagração, aceita colaborar no "Álbum de Costumes Portugueses", editado em 1888 por David Corazzi, com uma aguarela representando um dos tipos populares que, constantemente, e em qualquer das modalidades artísticas que praticou, o atraíu, a alfacinha de capote e lenço, quer a denominasse de Velha Maria, de. Alcoviteira ou de Mulher de Capote e Lenço, como neste álbum.

Nesta primeira fase, tentou-o também o retrato individual, modalidade que continuará a explorar, durante toda a vida, especialmente sob a ângulo caricatural. Além de alguns retratos a óleo e a carvão de membros da sua família, o óleo denominado Cabeça de Senhora que representa sua irmã, Maria Augusta, o retrato a carvão do mano Columbano, este tendendo já para a caricatura (ambos expostos no Museu Rafael Bordalo Pinheiro), são por ele subscritos alguns retratos de figuras contemporâneas, publicados no "Diário Ilustrado": retrato de Manuel Maria da Silva Bruschy, n° 439, 1873; de Jaime Jasé Ribeiro de Carvalho, n° 439,1874; de Rafael Zacarias da Costa, n° 921, 1875, etc). Dele são também o retrato de Rebelo da Silva inserto nos Contos e Lendas da nossa terra (1874) e o retrato do editor Dr. João da Silva Matos (1874), este publicado em folha solta.

Grande parte da sua actividade como retratista diz respeito, principalmente, a figuras ligadas ao mundo do espectáculo, actores e actrizes, dramaturgos, empresários, etc..

O balanço final da actividade de Bordalo Pinheiro nesta primeira fase, revela-nos uma obra, na sua maior parte, inacabada, reduzida, muitas vezes, a simples esboços logo abandonados, como se, por não terem satisfeito as exigências do artista, este as tivesse rejeitado antes de as dar por concluídas. Por outro lado, com excepção de alguns retratos que deixou, datados desse período, toda a sua obra artística se resume a alguns desenhos a lápis ou a carvão, algumas aguarelas nem sempre concluídas, excepcionalmente alguns óleos, toda ela, porém, inspirada numa motivação de tipos e costumes populares, - os campinos que o impressionaram quando da sua estadia na Golegã, após o seu casamento, o saloio com que cruzava todos os dias nas ruas de Lisboa, as crianças em luta pela sobrevivência, a donairosa varina apregoando, os agrupamentos populares nas feiras e mercados, o descanso nas hortas fora de portas, enfim, o povo no trabalho, em sofrimento ou na humilhação do seu dia-a-dia. Era, pois, já o crítico social que se adivinhava e que brevemente se irá afirmarem toda a sua potencialidade através da caricatura.

Deveremos, pois, considerar a obra desta sua primeira fase mais como um período de experiências e desenvolvimento das suas aptidões artísticas e da afirmação do seu espírito crítico e que farão, mais tarde, a glória do caricaturista e do ceramista. ·

(Este texto, publicado em sequência, é transcrição de dois, de autoria da Dra. Irisalva Moita, - "Rafael Bordalo Pinheiro, o homem e o artista", e "Rafael Bordalo Pinheiro, a Obra", insertos no catálogo "Rafael Bordalo Pinheiro e a República Portuguesa", Ed. ICM, Biblioteca Nacional/Sector Editorial).

Conservadora - Chefe-dos Museus Municipais de Lisboa.

desde a p. 135
até a p.