Linguística

António Sérgio em Macau Nove cartas inéditas

(Prefácio de Daniel Pires*)

António Sérgio Guarda-Marinha, pelo tempo em que escreveu estas cartas

Comemora-se este ano o 20 o aniversário da morte de António Sérgio, vulto emérito da cultura portuguesa do presente século, razão suplementar, além do seu interesse intrínseco, para apresentarmos nesta revista 9 cartas suas, escritas na juventude, durante asua efémera estadia em Macau. Estas cartas são inéditas e foram-nos amavelmente cedidas pelo Engenheiro António Sérgio Pessoa. Eram dirigidas a seu pai e a "Tuca", diminutivo da sua irmã, Matilde Sérgio de Sousa Cisneiros de Faria.

Conhece-se muito pouco da estadia de António Sérgio em Macau. Em contrapartida, sabe-se bastante mais acerca da actividade do seu avô, António Sérgio de Sousa, governador de Macau e Timor de 1868 a 1872 (1), e de seu pai, ajudante do governador no mesmo período e Vice-Almirante, que mais tarde viria a gerir os destinos de Damão e de Cabinda. Concitemos, porém, a nossa atenção em António Sérgio. Numa entrevista concedida a Igrejas Caeiro para o Rádio Clube Português, em 1958, felizmente consignada em disco (2), refere brevemente a sua passagem por Macau. Dados um pouco mais consistentes são-nos facultados pelo seu registo biográfico militar (3).

Registe-se, por outro lado, que o P.e Manuel Teixeira, no livro que dedica às personalidades portuguesas que viveram neste Território, mais concretamente Vultos Marcantes em Macau, não faz qualquer referência à estadia daquele pensador.

António Sérgio nasceu em Damão, em 1883. Regressado à Metrópole, ingressou no Colégio Militar em 1894 e foi transferido para a Armada em 1901. Tendo concluído o curso de Oficiais da Escola Naval três anos depois, partiu para Macau no dia 16 de Outubro de 1904, a bordo da canhoneira Rio Lima, onde chegou na 2a quinzena de Janeiro de 1905 e se manteve até Novembro do mesmo ano.

Relativamente à carreira militar de António Sérgio, diga-se que foi um processo pouco pacífico. Com efeito, este ensaísta, na entrevista anteriormente mencionada, afirma ter sido "um erro de orientação ter ido para a Marinha". Sabe-se, com efeito, que foi extremamente pressionado pelo pai, que argumentava que a tradição e a vocação familiar não deveriam ser quebradas. O que nos parece insofismável é que esta falta de motivação pelas actividades castrenses foi um dos factores que esteve na origem da sua demissão da Marinha, na sequência do 5 de Outubro de 1910.

Faceta ignorada desta personalidade da cultura portuguesa é o facto de ter trilhado a senda da ciência náutica. Na realidade, foi exactamente quando esteve em Macau, no âmbito da sua actividade de Guarda-Marinha, que fez uma descoberta relevante: um gráfico polar de desvios, de que dá informação mais precisa nos Anais do Clube Militar Naval (4), assunto que nos propomos focar em artigo próximo.

As cartas, que agora apresentamos, foram escritas aos 21 anos e revelam já algumas das qualidades que virão a caracterizar lapidarmente a sua obra: uma capacidade analítica digna de realce; uma observação exaustiva da sociedade anémica em que vivia, que lhe permitiu equacionar com rigor a problemática da época; o humor cáustico e caricatural; uma sede incomensurável de conhecer que o levou a debruçar-se, mais tarde, sobre assuntos tão diversificados como a história, a pedagogia, a linguística, a crítica literária, a economia, a filosofia, a sociologia política, a linguística e a criaçáo literária (5).

Eis as referidas cartas, apresentadas cronologicamente:

(Carta)

Macau, 27-1-1905

Meu Pae:

Dizem "elles" que a mala d'hoje chega lá primeiro que a francêsa de 23 - por que mandei uma carta à Pilar no mais incommodo papel madeira de todo o "far-east", e um cartão postal para si. - Ao que vejo não recebeu as duas lérias que lhe mandei de Palermo: Lá se me perdeu a prosa! O Rego Botelho não me entregou ainda as encommendas; não sei quando o verei. O Allemão já me veio visitar, e estão ambos no "Adamastôr". Mas tudo isso são coisas que o meu pae já deverá saber à data da chegada desta, se é que "elles" não teem razão - ou que pouco depois saberá, a ser verdadeira a contraria hypótese. Contraria hypótese é mais harmonioso que hypótese contraria; mais ameno, mais dôce - dulce, dólce, sweet, time (em china: leia como em português). Esta ultima finança polyglotta foi-me ensinada pela senhôra Atái: - a minha tankareira: Entrando no assumpto, vou-lhe dizer o que tenho feito. Já agora uma recomendação que "acudiu aos bicos da penna" como sóem dizer os "articulistas de fundo". "Articulistas de fundo" quer dizer na minha: fazedôres de artigos de fundo - ou tolice inicial. E vem a ser esta: que do dinheiro que eu mandar, a Tuca se pague dos cães do livreiro que lhe forem bater à porta.

Começo pois. Et dixit insipiens:

Dia 23. Depois do almoço no Macau-Hotel, visitas. Primeiro, ao governadôr, que me convidou para jantar: Como não me entendi com o culi, explicou-lhe um intérprete onde me havia de levar: - sucessivamente. Mas pela ordem que elle entendeu: donde me resultou entrar nas casas sem saber quem era o dono.

- E um typógrapho, para bilhetes de visita?

- Ali à direita, o Noronha.

Fui ao Noronha. Mandaram-me subir para casa de s. Exa.

- Perdão: eu não venho visitar o Sr. Noronha; quero uns bilhetes...

- Mas tenha a bondade...

Ao cimo da escada um homem de ar atarefado, miudinho, bigode branco, magro, engelhado, muito vivo. Que perdoasse receber-me assim, mas andava no seu trabalho... E entrei na salla por entre um piano de cauda e um busto branco de Goethe. Sentado no sofá comecei a disfructar os quadrinhos das paredes, as chinesices, as brancuras de estatuêtas, as cadeiras e sofas cobertos de panno branco com flôres azues - enquanto explicava que tinha vindo ali por um misero negocio de bilhetinhos...

-? Sergio de Sousa? Mas permitta que o cumprimente, que o trate como amigo... Sou muito amigo do Sr. seu pae, somos muito amigos, eu e a minha familia... Mas que felicidade!... Tenha a bondade de não fazer cerimonia, tem a minha casa às suas ordens... Venha muitas vezes, conversamos, fazemos musica, dansamos... Passam-se as noites... Que bom homem!... Quem é amigo do pae deve ser do filho, não é assim? E um parceiro!... Mas venha, venha muitas vezes, às suas ordens, completamente às suas ordens... Sem cerimonia, não é verdade? Peço-lhe encarecidamente...

Ouvidas as exclamações e os offerecimentos do homem fui comprar umas luvas. Caramba! Duas patacas e meia! Pois então? Se tinha de ir à senhora condessa...

O prinrichshá (?) parou. Vi-me numa casa quadrada, grande, estantes seguidas ao longo das paredes. Li os titulos de alguns livros: Eram códigos monótonos, uniformemente encadernados, em fileira como soldados firmes, uma phrenologia, "Les femmes d'aujourd'hui", alfarrabios que indicavam pertencer a um homem de leis. Não era a senhora condessa... Ao fundo uma secretaria, e dependurado um calendario duma companhia de vapôres. Appareceu um sujeito de cára preoccupada e cansada, cheio, de suissas, vestido com flanela clara. Era o advogado Bastos. Os livros indicavam o advogado e o calendario o consul. Achamo-nos "vis-a-vis" no sofá.

- Pois eu agora tenho muita pena, não posso fazer-lhe companhia. A minha mulher há um mês que está grave e perigosamente doente... Estou num estado... "três désolé", como dizem os franceses, três désolé. Já não posso occupar-me de todos os meus antigos trabalhos. Deixei o consulado da França - de resto incompativel com o meu cargo actual de presidente do Senado... Mesmo assim ainda homem recebi uma carta do almirante francês no mar da China - que estava para vir hospedar-se aqui em minha casa... Um homem muito attencioso, muito delicado... Mas veja o meu amigo: nestes ultimos tempos teem sido desgostos sobre desgostos. A minha filha foi para a Europa: nisto morre-lhe cá um petizinho que tinha ficado. Ella volta, a minha mulher cáe doente. Ao ir receber a minha filha a Hong-Kong vejo no paquete a bandeira amarella: tinha a rapariga morrido de chólera na viagem: calcule, um horrôr... Ando nisto há meses...

Vê o meu Pae atravez isto as preocupações do homem? Conhecer novos homens é conhecer novas formas de miseria humana - Adiante.

Seguiu-se, na avenida ao longo da praia onde é o palacio do governo, uma casa branca, luxuosa, com varanda de colunas e vasos sobre a balaustrada com flores côr de laranja. Já me esperava á porta o Sr. Ferreira, hospitaleiro e risonho. Exigiu que fosse lá muitas vezes e os tratasse como familia. Elle era um velho, não podia acompanhar-me em grandes caçadas, mas tinha sobrinho, tinha amigos, tinha familia... Vinte e um annos? Quem diria?

E elle que tinha conhecido o avô! Pois o Pae tinha-lhe escripto - e havia de responder immediatamente, a dizer que tinha chegado, que estava bom... Agora estava com sarampo uma sobrinha - mas mal ella melhorasse havia de lhes dar o prazer de jantar com elles, não é verdade?...

A senhora condessa estava do outro lado, calada, um sorrisito machinal de bôca e olhos que mais fazia reparar no apagado da sua figura, como quem passa a vida d'hoje a sonhar em tempos velhos...

O governador tem duas petisitas - 6 e 8 anos - divinas. Falam às vezes com mais censo que muitas damas. Entretiveram-se muito e diziam à mamã que aquelle senhor gostava d'ellas, muito, muito... Porque dizes isso Maria?

- Porque me está sempre a fazer festas.

Ensinavam-me china:

Fai-ti, depressa!

Man-man, devagar;

ai-ló, sim;

iát, ngui (nhi), san… um, dois, três…

E o palacio era grande, muito grande… Tão grande que ao princípio elles se perdiam pelas salas e se sentavam numa cadeira á espera que passasse alguem…

Sahi de lá à meia-noite e meia-hora e fui dormir ao Macau-Hotel. Não encontrei em casa os senhôres Homem de Carvalho -

Dia 24. Passei o dia a bordo sem fazer coisa nenhuma. De noite fui contractar um quarto num hotel qualquer na Flora, simplesmente para dormir enquanto não arranjo casa.

Dia 25. Vim para bordo às 9 horas. Ás 3 mudamos para a amarração da "Diu", que foi para Hong-Kong. Á noite veio a correspondência que tinha chegado na mala inglesa. Não tive nada - Esse serviço d'escripturação está ainda muito mal montado. Estive com o Annibal Telles Henriques, a quem entreguei as encommendas da mãe Leonildes. O rapaz já cá me tinha vindo visitar a bordo. Recebi um bilhete do doutor Silva Telles a dar-me as bôas-festas do Natal. A proposito: no dia 4 de Fevereiro é o "anno-nôvo" china. Os homens de rabicho farão festas de estrondo. "Estrondo" não tem agora significação figurada: significará, aqui, barulho, tiro, estallo, ribombar, bombardeamento, espinoteio: porque como sabe o "panchão" é elemento infallivel e constante nos festejos do celeste Imperio - e talvez o principal.

Por má sorte só posso ir de noite a terra, por estar de retem. Um dos guarda-marinhas que cá estava foi para a "Diu" e vieram de lá três para o nosso navio. Um d'elles foi o Athouguia, que me deu essa photographia minha. Um dia, ao tempo do tirocinio hydrographico em Portimão, estando nós dois de serviço á escala de mares, foi elle encontrar-me sentado numa pedra a pensar não sei em quê e como levasse por acaso um machina photographica - zás, o retrato que ahi vae…

Dia 26. Estive em terra depois do almoço a tomar conta do "Tennis-Naval", uma associação de "sport", de que me pediram para tratar enquanto se não nomeia uma direcção.

Dia 27. Hoje. Entrei de serviço às 8h da manhã, às 6 levantei-me e escrevi esta carta até ao fim da pg. 13. São 2 horas da tarde e o correio vae para terra.

António

(Cartão)

Pae:

Acabam as festas do anno-nôvo china: dizem que ellas, como tudo o resto em Macau, estão inferiosíssimas ao que foram. Só notei e mais que o costume uma maior porção de lorchas no porto interior, mais barulho nos pagodes, e filas de clu-clus nas ruas do bairro china.

Lembra-se dos clu-clus? Está um typo de rabicho com uma mesita em frente, sentado entre dois candieiros de petróleo: na mesa estão pintados os numeros. Uma canecasinha voltada sobre um pires esconde três dados. "Ablê"! (abre). Um cinco, um quatro, um dois: onze. A gente tinha jogado no doze, e perde.

Não encontrei, e não tornei a casa de ninguem da terra. De dia, quando posso, jogo o "lawn-tennis"; não para me divertir - abomino a palavra - mas para fazer um pouco de exercicio, de que estou precisado. Durmo no tal hotel de Flora, onde continuarei. Foram 45.000 reis por um vale de correio. António

(Carta)

Macau, 4 de Maio

Vae com esta uma lettra de 36$000 reis. Recebi ante-hontem uma carta tua, estylo do Pae, contando da rainha Alexandra, Kaiser Guilherme, e mais algumas novidades.

Eu é que não tenho muitas que te dar. O "Adamastor" continua na rada. No dia 1 fui a Hong Kong comprar um apparelho meteorologico para o navio. No dia anterior tinha jantado no "Bôa-Vista" com o Rego Botelho, e á noite, ao vir para casa, escrevi uma carta de parabens á prima Ruth com a letra mais apurada que me foi possivel. Se não fôr recebida, justifica-me convenientemente.

Em Hong Kong estive em casa do fornecedôr Sousa, que ainda se lembra do Pae quando comandante do "Africa". Tive também 2 cartas do França com photographias - "tem-te, não caias" - e miniaturas muitissimo bôas, lunetas e historias. Tinha recebido nessa ocasião uma carta minha escrita a lapis que lhe mandei não sei quando. São agora 7 horas da manhã, ouvi dizer que havia mala amanhã, razão porque vim escrever-te para a minha casita da pilotagem tendo estado hontem de divisão e hoje de retem, já bastante farto de serviço de noite inutil, a que nos obriga a proximidade das esquadras russas.

Gostava que o "Adamastor" retirasse o mais depressa possivel: Mene e Botelho tinham nisso intefesse. O primeiro tem o estomago estragado pelos refrescos em Angola, muitissimo tempo de estação a séguir, fartura de andar já há muito "a granel", arrependimento de não ter feito economias, porque lhe apetece Lisbôa e quer… casar! Caspite!

Cheguei ao fim da folha. Já basta. Sabes que antes de escrever uma carta determino primeiro o número de paginas que ella hade vir a ter, e que encho depois á força, haja a dizer ou não? Eis uma faina violenta.

António

(Postal - Outer harbour)

Uma vista da Praia Grande onde é o Palacio

do Governo. Não sei se já cá esteve. Julgo que não. António (Carta a lápis) Macau, 9 de Maio 905 E esta? Esqueci-me de que havia mala hoje e ainda lhes não tinha escrito. "Qui nova?". Nada. Não tenho feito senão divisões, retens, quartos, e passear em terra com o Mene nos outros dias. Ante-hontem, por exemplo, joguei o "tenis" das 4 às 6, e passeei depois com gentes da "Lima" e do "Adamastor', em grande "troupe", mai'la senhôra D. Ita Carreira d'Azevedo. Já a deves conhecer: aquella a casa de quem fui no dia da minha primeira ida a Hong-Kong. É uma creaturinha pequena, galante, mto viva, palradôra, passeadôra, jogadôra, furavidas, casada com o Dr. Azevedo e educada à inglesa como as nhonhas de Hong Kong. Ri-se da educação recatada das nossas damas, não escreve a cavalheiros portugueses com medo que elles desmaiem, indigna-se quando elles escrevem ao marido em vez de se dirigirem directamente a ella, e quando, nas ruas por onde anda só, encontra um sujeito conhecido: - Tem que fazer? -Não senhôra... -Então venha d'ahi commigo, vamos passear... E hontem, quando entrei de divisão às 8 horas, passava o vapôr para Hong-Kong com o Sr. doutor e a sua esposa, que me fazia grandes adeuses com o lencinho. Uma educação assim, na senhôra D. Ita, inteligente, sensata, e sem filhos, produziu uma creatura que realmente agrada, interessante, e que mais naturalmente impõe o respeito que todas as sisudas e graves deste mundo. É pois, com a abolição da sentimentalice, o respeito, a lealdade, a confiança, a sympathia. Numa sala, em sua casa, na rua, ve-la-heis sempre alegre, sempre conversando e divertindo sempre, elegante sem affectação, inteligente sem pretensões, apresentando-se perfeitamente em todas as circunstancias e todos os logares, tratando com familiaridade todas as pessoas dignas d'isso. Falei com ella dois minutos, mas esses me bastaram para adivinhar essa especie desconhecida completamente em Portugal. As meninas portuguesas, quando querem ser assim, não são nada d'isto e são ridiculas, não ganham o respeito nem a confiança de ninguem, e perdem a dignidade e a sensatez. Esta é o ideal, o typo de educação inglesa bem comprehendida. Por enquanto, em Portugal, parece-me a nossa preferivel - por enquanto, pelo menos. Porquê? Porque para dar bom resultado não exige da pessôa qualidades extraordinárias. Peguem numa petiselha pouco inteligente, com pouca instrução, sem grandes principios, e façam della uma menina recatada, simples, timida, callada, modesta, e terão uma bôa rapariga, muito sympathica e muito respeitavel. Esconder-se, callar-se, ter as opiniões dos outros, não chamar sobre si a attenção - são os meritos que pode adquirir quem naturalmente não tem outros, - e que uma educação à portuguesa pode dar. Decididamente, não me deixam continuar hoje. Na proxima carta te explicarei porquê e direi as extraordinarias circunstancias em que escrevi esta. Adeus. António (Carta) Macau, 10 de Junho de 1905 Ao Pae: Chegou na última mala allemã um postal da Tuca. Caracteres physionomicos: No Rio Tinto, passagem difficil; uma rapariga de saias arregaçadas e pes mergulhados, dando a mão a uma mulher de costas pro observador na margem esquerda, e em pose parada, a petiselha, por via do photographo. Percebeu? Pois não é facil. Dias antes vieram cartas. Uma sua, classificada de "transitoria". Tinha sabido, e com agrado, do banquete no anniversario da prima Leonildes. O rapaz convidou-me, mas não fui por estar de serviço. Entretanto os papeis tinham annunciado "o meu bom appetite e melhor dente" - "indicio seguro de bôa saude e melhor disposição!" Pelo que se achava exultante! Se tivesse ido é possivel que lhe tivesse atestado; mas a verdade é que não fui. As meninas, pelo visto, esperavam blusas pela "Diu". Julgo que expliquei porque mandava só uma: não havia mais no género. Esperam mal as meninas uma só blusa, e essa, coisa modesta, 4 vintens de fazenda. Novidade, creio eu, e bonito; mais nada. O interrompido diario da Tuca já foi, com as suas quarenta e tantas páginas. Como ia pesado e não registei, naturalmente roubaram, visto que se queixam do meu silencio. Dizem da Russia ter pedido a paz. A ultima victoria continua a attribuir-se aos torpedeiros. Está-me interessando um pouco o caso. Trata-se hoje em Portugal de defender as costas. Não seria preferivel comprar torpedeiros, em vez de couraçados? Estou com vontade de conhecer um certo numero de coisas do assumpto. E são, mais ou menos: 1o Especies de torpedeiros ultimamente construidos. Preço e valôr militar de alguns modelos, principalmente os de primeira classe francêses, genero 20%. 2o Organizações das esquadrilhas de torpedei-ros. Opiniões das auctoridades technicas sobre o assumpto. 3o Finalmente, a historia da proposta feita ao governo português pela Holland Torpedo Boat Company, para a compra do submarino "Fulton". Da comissão de officiaes que foram assistir às experiências fazia parte o tenente Rolla. Sobre o "Fulton" queria era saber: 1o Se é da especie denominada autónoma, isto é, tendo motôr electrico para marcha em immersão, e motor thermico para marcha á su... (Carta) Macau, Agosto de 905, Ao Pae: Fazem-me especie as repetidas queixas da Tuca, porque julgo eu que tenho escrito em todas as malas. Parece-me inutil pôr "Via Londres", como ella tem feito. O bilhete que ella queria mandar pelo paquete allemão veio no inglês como os outros. Sobre a ida do "Africa" vou-lhe dizer o que penso. O nosso actual commandante pediu a demissão segundo me consta; ora, se o futuro captain levasse esta traquitana até Timor e até Saighon, talvez pudesse fazer as derrotas sem mudar de navio. Mas não succedendo assim, convir-me-ha passar para o "Africa". O que me custa é de ter de variar de barco, de camaradas, de commandante, de alojamento, etc. Uma vez de regresso, acabar o tempo nos Açores seria o mais agradavel. Neste caso não julgo que fosse difficil ao França fazer a viagem completa do transporte, ida e volta: guarda-marinha não occupa logar e está no navio em que faz derrotas. Teem-se sentido aqui, com muita frequencia, tremôres subterraneos. A população anda afflictissima: dormem na rua, aos bandos, reunem-se nos largos como caravanas ou como soldados em campanha. O governadôr não passa a noite no palacio: vae para uma barraca que tem ali ao pé. Fizeram uma grande procissão para que a coisa acabasse; o pápa, dizem elles, preveniu de que no dia 12, á meia-noite, acabaria o mundo. Correm manifestos chinas, fazendo mêdo; Macau está sobre a cabeça de uma vacca: a vacca accorda, mexe-se, Macau treme; - ou então é a repercussão da formidavel queda da Russia, o terrôr da Europa... De noite veem na lua phantasmagorias tremendas... Os chinas acertaram, os chinas sabem: é o ultimo alento do Universo! Isto dá ensejo a observações psychologicas curiosas: Certo menino encommendava-se aos santos, confessava-se, era devoto, um dia lêu dois romances de Zola, julgou conhecer a ultima palavra do saber humano, fez-se atheu, livre-pensadôr, avançado; julgou-se socialista. O seu assumpto de conversação predilecto era troçar dos milagres de S. António, dos padres, das beatas. Por acaso sahem certas duas ou três previsões do manifesto china; um homem de rabicho impinge-lhe não sei que lerias; - e logo o nosso grande homem acredita, tem fé, apostoliza a adivinhação chinêsa: Je crois, je vois, je vis, de suis désabusé! Fez troça dos milagres de S. António, mas venera os milagres dos mandarins. No domingo houve outra recita de cantoria no theatro "D. Pedro V". Cantaram coisas da "Favorita" da "Bohême; do Trovadôr. O publico applaudiu e foi contente para casa... e para a rua. Os padres aproveitam os medos, mandam confessar toda a gente, decretaram uma communhão em massa; o governador continua a dar pessimo exemplo de não dormir no palacio. Quando alguem pretende socegar os povos, é certa a resposta: Então quando o pentáu, que é official de marinha, a primeira auctoridade, tem um solido palacio, etc. etc, foge de casa, - que hei-de fazer eu, que sou uma mulher e moro numa casa a cahir? É isto o que dizem que succede, porque eu não fallo senão com os camaradas. Recebi o manual de gymnastica do Sr. Joaquim Costa. Mandei ha tempos pedir ao amôr de França que me encommendasse pelo correio as Memorias de Stuart Mill (livraria F. Alcan) mas não sei se elle estará em tirocinios quando receber o meu pedido. Peço-lhe que indague a coisa se puder, e m'as mande vir pelo Ferreira, se elle (França) estiver impossibilitado de o fazer. A tinta com que lhe estou escrevendo é pessima, gorumosa, borrativa: uma razão para acabar. A. Recomendações do Dr. Lopes do Rio. (Carta) Macau, 31 de Agosto de 1905 Á Tuca: Aqui me tens todo catita sahidinho de um tufão. Estive ante-hontem de serviço; começou a coisa a mostrar-se feia pela tardinha, e fizemos os primeiros preparativos. Hontem de manhã metteu-se a mastreação em baixo, embarcações dentro, e o navio reduzido á expressão mais simples. Ás 11 horas começou o vento rijo com chuva, e depois foi aguenta-lo como se poude. Passei o dia em observações e magicancias, e de noite, como estava de retem, fiz o quarto da meia-noite às quatro. Não tivemos avaria alguma a bordo; em terra é que ouvi dizer que houve estragos grandes, tendo sido derrubada a muralha da Praia. Grande e escangalhado o passeio. Hoje de manhã quando accordei já o tempo estava bom. Só desembarquei agora (9 da noite), vindo immediatamente para a minha nova casa, de onde te escrevo. Como ainda cá não tenho papel de carta, escrevo-te neste pedaço que achei num livro. Vae esta registada porque leva uma letra de 76$000 reis. Continuo na mesma vida. De dia fico a bordo; pelas 4 e meia venho para terra com o meu immediato, deitamos até à Areia Preta ver um viveiro de patos que para ali há. São muitos, de dois tamanhos: uns muito pequerruchitos, de pennugem amarella, e os outros mais crescidos, mas sem pennas ainda, e ainda sem asas. Estes vão para um tanque grande onde lhes dão comida. Os outros ficam em recintos limitados com redes baixas; os mais ageis saltam para as celhas, os outros chafurdam na agua que d'ellas cáe. Quando o sol já vae baixo começa a chiadeira a diminuir; deitam-se aos montinhos, muito juntos, e de olhito fechado; alguns que estavam de fora e querem ficar quentinhos no meio do monte, desatam a empurrar os que já estavam accomodados e levanta-se uma pequena desordem. Por fim todos se deitam, socegam todos, ouve-se apenas um ou outro que accorda sobressaltado porque o visinho o pisa... Isto é bonito, mesmo a unica bonita coisa que vejo aqui. Voltamos para bordo ao jantar; pelo caminho ralo-me immenso à procura de uma tolice qualquer para dizer ao meu companheiro e não armar em urso. É uma atarantação que sempre tenho quando somos dois. Apezar do Pae dizer que a "Rio Lima" foi auctorisada a ir a Hong-Kong entrar em doca secca, nada consta por cá desse caso. Deixei de escrever ao Amôr de França porque já em Outubro elle terá talvez começado a "vida errante" de penosa sem derrotas. O amigo Zouriga não sei bem onde para, se em Florença, se em Veneza, se na Cidade Eterna. Já o bom Crisóstomo costumava dizer que não entendia como o menino ia vêr quadros para Italia, quando tantos tinha no Museu de Madrid. Está por força bem melhor do que eu. Não leio, aborreço-me, tenho dôres de cabeça. Desespera-me vêr passar tão inutilmente os meus dias. Procuro não pensar em tal: assim consigo estar em paz, despreocupado, e, segundo me dizem, mais gordo. O teu Baezinho portanto sente-se o melhor que pode sentir-se. Um senhôr qualquer Aureliano Gutters Jorge, escripturario de 1a classe da repartição Superior de fazenda de Macau, pediu a demissão do cargo, e o nosso primo Annibal Cesar Xavier Henriques, escripturario de 2a classe do mesmo quadro e mais antigo, pediu a prommoção. Os dois requerimentos foram officialmente para Lisbôa na mala de 25 de Agosto, devendo chegar a Lisbôa em fins de Setembro. Todo este discurso me foi ensinado pelo mesmo primo Henriques, que pede a protecção do nosso Pae. Na terça-feira 5 deve chegar a mala francêsa. Espero ter cartas tuas Adeus A. (Cartão) Macau 1905 Meu Pae: O cozinheiro "Cabo Verde", José António, no 1554, é considerado sabedor do seu officio como poucos na Armada, homem capaz de fazer bifes sob os mais horrendos aguaceiros - e é verdade. Proposto para despenseiro pelo Commandante Macieira, não tem sido promovido por falta de funccionarios da sua classe: perfeitamente. Quanto ao homem, é naturalissimo querer chegar a braza á sua sardinha, - elle que as prepara tão bem para os outros. Ahi estão três entidades em seu direito pleno, puxando cada qual de argumentos irrespondíveis: elle, o meu Pae, o Serviço Público. Eu é que não tenho direito de intervenção nem razões especiaes de pugnar pelo Vatel negro, mas era humano recusar dois rabiscos a uma creatura que os leva afinal como uma esperança de futuro, - como um allivio de miserias? António (Carta) Macau, bordo da "Lima", 4 de Novembro, 11 horas da noite Á Tuca Por causa de não sei que rascada no canal de Suez, as duas malas da semana passada, francêsa e inglêsa, vieram juntas; - de maneira que recebi ao todo seis cartas tuas e uma da Pilar. Vou relê-las agora para lhes responder, uma a uma. É bom effectivamente que não seja o mal de Parkinson o que o Pae tem: seria uma doença incurável, acabando em paralysia. Coisas bonitas para presentes? Para mim não o são: não gosto do chinesismo nem do japonesismo. Em se tratando de arte europêa não sei o gosto dos outros, mas tenho o meu ao menos: para as chinesisses não tenho criterio: nada me interessa, de nada percebo. Acho tudo banal e insipido; sempre a mesma coisa, sem significação e sem graça: os mesmos motivos sempre, os mesmos processos, o mesmo gosto rotineiro e estupido. Paciencia, trabalho? Sim; mas arte, belleza, gosto, não, nada d'isso, absolutamente nada. Quem viu ha mil annos uma colcha chinesa, uma mesa, um prato, viu todas as colchas, todas as mesas, todos os pratos, de todos os artifices e de todas as épocas, in omnia secula seculorum. Queres que eu escolha "coisas bonitas e de gosto"; impossivel, pela minha completa insensibilidade para a arte china; era o mesmo que pedir a um cego que escolhesse entre dois quadros de Raphael, ou a um surdo entre a Bohemia de Puccini e a Cavallaria Rusticana. Não é taiáco como diz a filha do sargento Raymundo, mas taiáte que significa bom, superfino, comme-il-faut.