Comemora-se este ano o 20 o aniversário da morte de António Sérgio, vulto emérito da cultura portuguesa do presente século, razão suplementar, além do seu interesse intrínseco, para apresentarmos nesta revista 9 cartas suas, escritas na juventude, durante asua efémera estadia em Macau. Estas cartas são inéditas e foram-nos amavelmente cedidas pelo Engenheiro António Sérgio Pessoa. Eram dirigidas a seu pai e a "Tuca", diminutivo da sua irmã, Matilde Sérgio de Sousa Cisneiros de Faria.
Conhece-se muito pouco da estadia de António Sérgio em Macau. Em contrapartida, sabe-se bastante mais acerca da actividade do seu avô, António Sérgio de Sousa, governador de Macau e Timor de 1868 a 1872 (1), e de seu pai, ajudante do governador no mesmo período e Vice-Almirante, que mais tarde viria a gerir os destinos de Damão e de Cabinda. Concitemos, porém, a nossa atenção em António Sérgio. Numa entrevista concedida a Igrejas Caeiro para o Rádio Clube Português, em 1958, felizmente consignada em disco (2), refere brevemente a sua passagem por Macau. Dados um pouco mais consistentes são-nos facultados pelo seu registo biográfico militar (3).
Registe-se, por outro lado, que o P.e Manuel Teixeira, no livro que dedica às personalidades portuguesas que viveram neste Território, mais concretamente Vultos Marcantes em Macau, não faz qualquer referência à estadia daquele pensador.
António Sérgio nasceu em Damão, em 1883. Regressado à Metrópole, ingressou no Colégio Militar em 1894 e foi transferido para a Armada em 1901. Tendo concluído o curso de Oficiais da Escola Naval três anos depois, partiu para Macau no dia 16 de Outubro de 1904, a bordo da canhoneira Rio Lima, onde chegou na 2a quinzena de Janeiro de 1905 e se manteve até Novembro do mesmo ano.
Relativamente à carreira militar de António Sérgio, diga-se que foi um processo pouco pacífico. Com efeito, este ensaísta, na entrevista anteriormente mencionada, afirma ter sido "um erro de orientação ter ido para a Marinha". Sabe-se, com efeito, que foi extremamente pressionado pelo pai, que argumentava que a tradição e a vocação familiar não deveriam ser quebradas. O que nos parece insofismável é que esta falta de motivação pelas actividades castrenses foi um dos factores que esteve na origem da sua demissão da Marinha, na sequência do 5 de Outubro de 1910.
Faceta ignorada desta personalidade da cultura portuguesa é o facto de ter trilhado a senda da ciência náutica. Na realidade, foi exactamente quando esteve em Macau, no âmbito da sua actividade de Guarda-Marinha, que fez uma descoberta relevante: um gráfico polar de desvios, de que dá informação mais precisa nos Anais do Clube Militar Naval (4), assunto que nos propomos focar em artigo próximo.
As cartas, que agora apresentamos, foram escritas aos 21 anos e revelam já algumas das qualidades que virão a caracterizar lapidarmente a sua obra: uma capacidade analítica digna de realce; uma observação exaustiva da sociedade anémica em que vivia, que lhe permitiu equacionar com rigor a problemática da época; o humor cáustico e caricatural; uma sede incomensurável de conhecer que o levou a debruçar-se, mais tarde, sobre assuntos tão diversificados como a história, a pedagogia, a linguística, a crítica literária, a economia, a filosofia, a sociologia política, a linguística e a criaçáo literária (5).
Eis as referidas cartas, apresentadas cronologicamente:
(Carta)
Macau, 27-1-1905
Meu Pae:
Dizem "elles" que a mala d'hoje chega lá primeiro que a francêsa de 23 - por que mandei uma carta à Pilar no mais incommodo papel madeira de todo o "far-east", e um cartão postal para si. - Ao que vejo não recebeu as duas lérias que lhe mandei de Palermo: Lá se me perdeu a prosa! O Rego Botelho não me entregou ainda as encommendas; não sei quando o verei. O Allemão já me veio visitar, e estão ambos no "Adamastôr". Mas tudo isso são coisas que o meu pae já deverá saber à data da chegada desta, se é que "elles" não teem razão - ou que pouco depois saberá, a ser verdadeira a contraria hypótese. Contraria hypótese é mais harmonioso que hypótese contraria; mais ameno, mais dôce - dulce, dólce, sweet, time (em china: leia como em português). Esta ultima finança polyglotta foi-me ensinada pela senhôra Atái: - a minha tankareira: Entrando no assumpto, vou-lhe dizer o que tenho feito. Já agora uma recomendação que "acudiu aos bicos da penna" como sóem dizer os "articulistas de fundo". "Articulistas de fundo" quer dizer na minha: fazedôres de artigos de fundo - ou tolice inicial. E vem a ser esta: que do dinheiro que eu mandar, a Tuca se pague dos cães do livreiro que lhe forem bater à porta.
Começo pois. Et dixit insipiens:
Dia 23. Depois do almoço no Macau-Hotel, visitas. Primeiro, ao governadôr, que me convidou para jantar: Como não me entendi com o culi, explicou-lhe um intérprete onde me havia de levar: - sucessivamente. Mas pela ordem que elle entendeu: donde me resultou entrar nas casas sem saber quem era o dono.
- E um typógrapho, para bilhetes de visita?
- Ali à direita, o Noronha.
Fui ao Noronha. Mandaram-me subir para casa de s. Exa.
- Perdão: eu não venho visitar o Sr. Noronha; quero uns bilhetes...
- Mas tenha a bondade...
Ao cimo da escada um homem de ar atarefado, miudinho, bigode branco, magro, engelhado, muito vivo. Que perdoasse receber-me assim, mas andava no seu trabalho... E entrei na salla por entre um piano de cauda e um busto branco de Goethe. Sentado no sofá comecei a disfructar os quadrinhos das paredes, as chinesices, as brancuras de estatuêtas, as cadeiras e sofas cobertos de panno branco com flôres azues - enquanto explicava que tinha vindo ali por um misero negocio de bilhetinhos...
-? Sergio de Sousa? Mas permitta que o cumprimente, que o trate como amigo... Sou muito amigo do Sr. seu pae, somos muito amigos, eu e a minha familia... Mas que felicidade!... Tenha a bondade de não fazer cerimonia, tem a minha casa às suas ordens... Venha muitas vezes, conversamos, fazemos musica, dansamos... Passam-se as noites... Que bom homem!... Quem é amigo do pae deve ser do filho, não é assim? E um parceiro!... Mas venha, venha muitas vezes, às suas ordens, completamente às suas ordens... Sem cerimonia, não é verdade? Peço-lhe encarecidamente...
Ouvidas as exclamações e os offerecimentos do homem fui comprar umas luvas. Caramba! Duas patacas e meia! Pois então? Se tinha de ir à senhora condessa...
O prinrichshá (?) parou. Vi-me numa casa quadrada, grande, estantes seguidas ao longo das paredes. Li os titulos de alguns livros: Eram códigos monótonos, uniformemente encadernados, em fileira como soldados firmes, uma phrenologia, "Les femmes d'aujourd'hui", alfarrabios que indicavam pertencer a um homem de leis. Não era a senhora condessa... Ao fundo uma secretaria, e dependurado um calendario duma companhia de vapôres. Appareceu um sujeito de cára preoccupada e cansada, cheio, de suissas, vestido com flanela clara. Era o advogado Bastos. Os livros indicavam o advogado e o calendario o consul. Achamo-nos "vis-a-vis" no sofá.
- Pois eu agora tenho muita pena, não posso fazer-lhe companhia. A minha mulher há um mês que está grave e perigosamente doente... Estou num estado... "três désolé", como dizem os franceses, três désolé. Já não posso occupar-me de todos os meus antigos trabalhos. Deixei o consulado da França - de resto incompativel com o meu cargo actual de presidente do Senado... Mesmo assim ainda homem recebi uma carta do almirante francês no mar da China - que estava para vir hospedar-se aqui em minha casa... Um homem muito attencioso, muito delicado... Mas veja o meu amigo: nestes ultimos tempos teem sido desgostos sobre desgostos. A minha filha foi para a Europa: nisto morre-lhe cá um petizinho que tinha ficado. Ella volta, a minha mulher cáe doente. Ao ir receber a minha filha a Hong-Kong vejo no paquete a bandeira amarella: tinha a rapariga morrido de chólera na viagem: calcule, um horrôr... Ando nisto há meses...
Vê o meu Pae atravez isto as preocupações do homem? Conhecer novos homens é conhecer novas formas de miseria humana - Adiante.
Seguiu-se, na avenida ao longo da praia onde é o palacio do governo, uma casa branca, luxuosa, com varanda de colunas e vasos sobre a balaustrada com flores côr de laranja. Já me esperava á porta o Sr. Ferreira, hospitaleiro e risonho. Exigiu que fosse lá muitas vezes e os tratasse como familia. Elle era um velho, não podia acompanhar-me em grandes caçadas, mas tinha sobrinho, tinha amigos, tinha familia... Vinte e um annos? Quem diria?
E elle que tinha conhecido o avô! Pois o Pae tinha-lhe escripto - e havia de responder immediatamente, a dizer que tinha chegado, que estava bom... Agora estava com sarampo uma sobrinha - mas mal ella melhorasse havia de lhes dar o prazer de jantar com elles, não é verdade?...
A senhora condessa estava do outro lado, calada, um sorrisito machinal de bôca e olhos que mais fazia reparar no apagado da sua figura, como quem passa a vida d'hoje a sonhar em tempos velhos...
O governador tem duas petisitas - 6 e 8 anos - divinas. Falam às vezes com mais censo que muitas damas. Entretiveram-se muito e diziam à mamã que aquelle senhor gostava d'ellas, muito, muito... Porque dizes isso Maria?
- Porque me está sempre a fazer festas.
Ensinavam-me china:
Fai-ti, depressa!
Man-man, devagar;
ai-ló, sim;
iát, ngui (nhi), san… um, dois, três…
E o palacio era grande, muito grande… Tão grande que ao princípio elles se perdiam pelas salas e se sentavam numa cadeira á espera que passasse alguem…
Sahi de lá à meia-noite e meia-hora e fui dormir ao Macau-Hotel. Não encontrei em casa os senhôres Homem de Carvalho -
Dia 24. Passei o dia a bordo sem fazer coisa nenhuma. De noite fui contractar um quarto num hotel qualquer na Flora, simplesmente para dormir enquanto não arranjo casa.
Dia 25. Vim para bordo às 9 horas. Ás 3 mudamos para a amarração da "Diu", que foi para Hong-Kong. Á noite veio a correspondência que tinha chegado na mala inglesa. Não tive nada - Esse serviço d'escripturação está ainda muito mal montado. Estive com o Annibal Telles Henriques, a quem entreguei as encommendas da mãe Leonildes. O rapaz já cá me tinha vindo visitar a bordo. Recebi um bilhete do doutor Silva Telles a dar-me as bôas-festas do Natal. A proposito: no dia 4 de Fevereiro é o "anno-nôvo" china. Os homens de rabicho farão festas de estrondo. "Estrondo" não tem agora significação figurada: significará, aqui, barulho, tiro, estallo, ribombar, bombardeamento, espinoteio: porque como sabe o "panchão" é elemento infallivel e constante nos festejos do celeste Imperio - e talvez o principal.
Por má sorte só posso ir de noite a terra, por estar de retem. Um dos guarda-marinhas que cá estava foi para a "Diu" e vieram de lá três para o nosso navio. Um d'elles foi o Athouguia, que me deu essa photographia minha. Um dia, ao tempo do tirocinio hydrographico em Portimão, estando nós dois de serviço á escala de mares, foi elle encontrar-me sentado numa pedra a pensar não sei em quê e como levasse por acaso um machina photographica - zás, o retrato que ahi vae…
Dia 26. Estive em terra depois do almoço a tomar conta do "Tennis-Naval", uma associação de "sport", de que me pediram para tratar enquanto se não nomeia uma direcção.
Dia 27. Hoje. Entrei de serviço às 8h da manhã, às 6 levantei-me e escrevi esta carta até ao fim da pg. 13. São 2 horas da tarde e o correio vae para terra.
António
(Cartão)
Pae:
Acabam as festas do anno-nôvo china: dizem que ellas, como tudo o resto em Macau, estão inferiosíssimas ao que foram. Só notei e mais que o costume uma maior porção de lorchas no porto interior, mais barulho nos pagodes, e filas de clu-clus nas ruas do bairro china.
Lembra-se dos clu-clus? Está um typo de rabicho com uma mesita em frente, sentado entre dois candieiros de petróleo: na mesa estão pintados os numeros. Uma canecasinha voltada sobre um pires esconde três dados. "Ablê"! (abre). Um cinco, um quatro, um dois: onze. A gente tinha jogado no doze, e perde.
Não encontrei, e não tornei a casa de ninguem da terra. De dia, quando posso, jogo o "lawn-tennis"; não para me divertir - abomino a palavra - mas para fazer um pouco de exercicio, de que estou precisado. Durmo no tal hotel de Flora, onde continuarei. Foram 45.000 reis por um vale de correio. António
(Carta)
Macau, 4 de Maio
Vae com esta uma lettra de 36$000 reis. Recebi ante-hontem uma carta tua, estylo do Pae, contando da rainha Alexandra, Kaiser Guilherme, e mais algumas novidades.
Eu é que não tenho muitas que te dar. O "Adamastor" continua na rada. No dia 1 fui a Hong Kong comprar um apparelho meteorologico para o navio. No dia anterior tinha jantado no "Bôa-Vista" com o Rego Botelho, e á noite, ao vir para casa, escrevi uma carta de parabens á prima Ruth com a letra mais apurada que me foi possivel. Se não fôr recebida, justifica-me convenientemente.
Em Hong Kong estive em casa do fornecedôr Sousa, que ainda se lembra do Pae quando comandante do "Africa". Tive também 2 cartas do França com photographias - "tem-te, não caias" - e miniaturas muitissimo bôas, lunetas e historias. Tinha recebido nessa ocasião uma carta minha escrita a lapis que lhe mandei não sei quando. São agora 7 horas da manhã, ouvi dizer que havia mala amanhã, razão porque vim escrever-te para a minha casita da pilotagem tendo estado hontem de divisão e hoje de retem, já bastante farto de serviço de noite inutil, a que nos obriga a proximidade das esquadras russas.
Gostava que o "Adamastor" retirasse o mais depressa possivel: Mene e Botelho tinham nisso intefesse. O primeiro tem o estomago estragado pelos refrescos em Angola, muitissimo tempo de estação a séguir, fartura de andar já há muito "a granel", arrependimento de não ter feito economias, porque lhe apetece Lisbôa e quer… casar! Caspite!
Cheguei ao fim da folha. Já basta. Sabes que antes de escrever uma carta determino primeiro o número de paginas que ella hade vir a ter, e que encho depois á força, haja a dizer ou não? Eis uma faina violenta.
António
(Postal - Outer harbour)
Uma vista da Praia Grande onde é o Palacio