Macau no Século XIX

Macau, Eça, Corvo e o tráfico de cules

João Guedes*

Praia Grande, vista do extremo sul, c. de 1870. À direita, adiantados a S. Francisco, vêem-se os andaimes do Clube Militar em começo de construção (In China/The Land and its People /Early Photographes by John Thomson/Revised and edited by John Warner, 2aed. 1979).

Ao longo da história, Portugal sempre se colocou na vanguarda das novas ideias políticas e sociais. Sem paralelo, Portugal tem demonstrado uma capacidade inata para absorver os erros, colmatar omissões e "fugir para a frente", passando da cauda para a vanguarda da história em saltos aparentemente descontínuos, mas que poderão explicar talvez a independência de um pequeno povo ao longo de oitocentos anos e um império feito de meio mundo e meia história.

Na abolição da pena de morte, esteve Portugal à frente do mundo civilizado. Esteve-o, também, no que toca à abolição da escravatura.

Nesta questão, porém, continuaremos a transportar, ainda hoje, sobre os ombros, o principal ónus do tráfico de escravos através do Atlântico com destino às Américas.

Na política, Portugal entrou com atraso considerável no liberalismo mas, feita a revolução, saiu ao povo a constituição mais avançada entre as leis fundamentais da liberalíssima Europa.

Para o mundo porém diz mais a "vilafrancada" do que o "setembrismo". Para a história universal ficou o D. Miguel analfabeto e pegador de touros a marcar o Portugal do primeiro quartel de oitocentos, que não o liberal D. Pedro, esclarecido e maçon. Para além de toda a controvérsia, e numa época ainda muito recente, a descolonização portuguesa feita sem reservas nem condições, ao contrário da de muitos outros países, deixou afinal a imagem de uma condenação de povos inermes, que deveriam ter sido protegidos, às forças soberanas do destino.

O processo português do erro e da regeneração reviu-se em labéus que hoje ainda perduram, sem que o rigor dos factos corrija a interpretação estrangeira movida pelos pontos de vista e pelos interesses da política.

Passados os anos de glória de "Quinhentos", Macau afundou-se no esquecimento para voltar à memória internacional muito mais tarde: três séculos depois, quando já não havia prata do Japão onde se reflectir a riqueza, que se embotava baça nas bolas de ópio, consumidoras das vontades de um império inteiro. O século XIX desenterrou Macau do esquecimento da história para marcá-lo como centro difusor do vício e exemplo da contravenção internacional.

Duas grandes questões contribuiram primordialmente para que Macau fosse assim indelevelmente assinalado por uma revolução industrial: o ópio e o tráfico de cules.

Um e outro absorveram a atenção dos que directa ou indirectamente estavam ligados a Macau desde finais do século XVIII até à Segunda Guerra Mundial.

Se o ópio provocou a condenação internacional de Macau, o tráfico de cules assumiu, num momento particularmente saliente da história do mundo, importância que ultrapassou as fronteiras da região para se projectar nos jornais, nas chancelarias, nos parlamentos e até nas ruas da culta Europa, que acabava de infligir um golpe mortal no tráfico de escravos submetendo pela primeira vez em grande escala os interesses económicos aos humanitários.

O tráfico de cules ganhou muito vulto a partir do final da primeira metade do século XIX quando foi posto termo à escravatura e as grandes plantações de cana-de-açúcar, algodão e outras se confrontaram com dramática falta de braços.

Muitos países sul-americanos, passaram então a receber jovens chineses que fugiam à miséria dos seus campos de arroz, devastados pelas inundações, e à total falta de perspectivas de vida num país afectado por violentas convulsões políticas e sociais.

A abertura dos portos chineses, na sequência da segunda guerra do ópio, constituiu não só a porta de entrada para a indústria ocidental, mas também a de saída para aqueles que pretendiam deixar o país mais populoso do mundo e buscar a sobrevivência noutras paragens.

Se nas Américas, Central e do Sul, as plantações de cana-de-açúcar precisavam de braços, na América do Norte o caminho de ferro, a indústria mineira nascente e até os grandes projectos agrícolas de algodão da Califórnia constituíam áreas que necessitavam urgentemente de mão-de-obra. Igual situação se desenhava também na Austrália, embora em menor escala.

Grupo de chineses em Amoy, sudeste de Fukien (Idem, ib. o.c. página anterior).

Para satisfazer estas necessidades, não eram suficientes os que, na China, voluntariamente buscavam os portos livres ou as colónias estrangeiras e por isso o angariador de emigrantes nasceu subver- tendo por completo todas as regras do relacionamento humano.

Correspondendo ao espírito oriental, que engendra o intermediário nas situações mais insólitas, o angariador de colonos para as Américas nasceu e proliferou, criando uma situação anómala em que o objecto do negócio era a pessoa humana, como o tinha sido pouco antes, na abolida e condenada escravatura.

As potências ocidentais, profundamente marcadas ainda e ansiosas de se libertarem dos sentimentos de culpa de uma história de escravatura, que teve na vitória das forças do norte, nos Estados Unidos, a sua mais elevada expressão, reagiram a uma situação que não desejavam.

A esta reacção, liderada pela Inglaterra, não foram alheias questões político-económicas que tinham a ver com a concorrência de outras potências coloniais com o império britânico.

No entanto, faça-se justiça, a moralidade inerente à questão dos cules acabou por sobrepôr-se na sua essência às intenções materialistas subjacentes, dos governos de Londres.

Tradicionalmente na China, os imperadores desencorajavam a emigração considerando-a até um acto de traição que chegou a ser punido com a morte. Por isso, ao êxodo para os "eldorados" americanos se opôs a pesada máquina imperial e a proibição de deixar a China foi rapidamente posta em execução, restando como porta aberta apenas o minúsculo Porto Interior de Macau.

Da mesma forma que, antes, Macau centrara em si o tráfico do ópio como única porta de serviço da China, o dos cules passava também a processar-se inteiramente pelo Território.

As estatísticas mostram-se esclarecedoras quanto ao crescente papel da colónia portuguesa num negócio em que Macau era mais uma vez apenas o intermediário.

(Idem, ib. o.c. "China, The Land and its People").

Em 1856 o número de emigrantes saídos através de Macau era de 2493, ascendendo a 10712 dez anos depois, para se fixar em 13016 em 1873, quando as atenções internacionais apontavam o dedo acusador ao governo português de Macau.

Antes porém que as nações se unissem contra o degradante negócio, lançando ultimatos humilhantes, foi Portugal quem decidiu pôr termo a uma situação vexatória em que mesmo os lucros não eram suficientes para encobrir as vergonhas.

A campanha contra o tráfico de cules foi lançada sem rebuços nem hesitações por Andrade Corvo, um dos raros políticos portugueses que consagraram a sua vida pública à causa das colónias.

MACAU PODIA E DEVIA SER UM VASTO EMPÓRIO

Em Macau contou com o apoio dos governadores Ponte e Horta, Sérgio de Sousa e principalmente do Visconde de S. Januário. A emigração de cules levou à formação em Macau de novas profissões, viradas para a angariação de jovens chineses pelos contratadores estrangeiros que aguardavam com os seus barcos no Porto Interior.

Apesar, no entanto, do súbito incremento, o novo ramo de "negócio" não era rendível para Macau, como afirma João Andrade Corvo: - "... a emigração por Macau não promoveu o desenvolvimento comercial, antes parece haver absorvido toda a actividade da colónia, anulando as suas fontes naturais de riqueza. Macau podia e devia ser um vasto empório, um mercado aberto ao comércio do mundo com a China; em vez desta brilhante posição, vê hoje Macau reduzido o seu tráfico, quase exclusivamente aos seus próprios consumos e a uma limitada cabotagem: dominando na importação em navios de alto bordo e na exportação em embarcações chinesas, principalmente em ópio". Na mesma linha de raciocínio o Visconde de S. Januário, governador de Macau e de Timor, afirmava em 1873: - "A nação portuguesa, sofrendo muito no seu crédito, não é a que mais lucra com a emigração. Este movimento de trabalhadores engrandece principalmente países estrangeiros (Hespanha, Peru, etc.) é dominado pelos capitais estrangeiros, e enriquece companhias e agentes estrangeiros, conquanto aumente assim a receita pública de Macau e ocasione um certo comércio e movimento de fundos na colónia, favorável à sua população".

No plano moral, a situação dos milhares de jovens cules que esperavam em Macau a sua vez de embarcar era, apesar dos regulamentos publicados pelo governo, praticamente a mesma infligida aos escravos africanos.

Os angariadores, normalmente ao serviço de outros que por seu turno trabalhavam para as oito firmas estrangeiras que chegaram a estar legalmente registadas em Macau, partiam para o interior da China em busca dos candidatos à emigração.

A necessidade de respeitar contigentes pré-definidos e os prejuízos financeiros que comportaria a sua falta de cumprimento, levavam os engajadores a utilizar todo o tipo de artifícios para arrancar jovens pouco mais do que adolescentes às suas famílias nas aldeias.

As promessas de multiplicação de riqueza e as garantias de um retorno seguro constituíam repertório estudado dos agenciadores que, assim, conseguiam encher os armazéns espalhados por Macau, onde os candidatos a emigrantes eram depositados.

O arrependimento da decisão anteriormente tomada, já em Macau, implicava por norma o encerramento do cule e a utilização de outro que, sob o seu nome e recebendo um pagamento fixo pelo que fazia, declarava perante uma junta do governo português aceitar as condições de contratação da agência e que emigrava de livre vontade.

O destino da maior parte desses emigrantes, as mais das vezes forçados, era o Perú ou Cuba onde, como afirmava Eça de Queirós, a falta de mão-de-obra se fazia sentir, obrigando os engenhos a uma dependência dramática dos afluxos de emigrantes oriundos de Macau.

Apesar da legislação protectora dos cules vigente em Macau, a situação era de facto incontrolável. No interior da China, o quadro era mostrado na exposição de uma deputação chinesa feita em 1872 ao governador de Hong Kong, em que eram pormenorizados alguns dos artifícios dos engajadores para levar os cules a deixar as suas aldeias com promessas miríficas que tinham em conta a ignorância dos interlocutores. Afirmava o documento: - "Algumas vezes, quando estes homens do campo são aliciados com fraude, depois de terem chegado ao seu destino reconhecem a realidade do estado em que se acham e não querem partir. São imediatamente fechados numa casa separada e castigados severamente com açoites. São levados dali para um barracão e conduzidos à presença de um suposto agente oficial, sendo interrogados a fim de declararem se têm vontade de partir. Se dizem que não querem ir, são imediatamente castigados por terem recebido dinheiro (no acto da contratação) e recusarem. O aliciador de cúlis segue-os por todos os lugares e narra a sua história. O suposto agente oficial sentencia-os a uma pena mais pesada. São dali mudados para outro lugar e sofrem repetição do castigo, sendo açoitados mais severamente e repete-se isto até que manifestem vontade de partir e só então acaba. No dia seguinte são levados perante o verdadeiro agente ofi-cial para serem examinados.

Estes cúlis dos campos, atemorizados com o regime que sofreram, são compelidos pela força das circunstâncias a darem a sua anuência. Muitos deles nunca viram sequer um estrangeiro e muito menos estiveram fora do seu país, nem mesmo em Macau. Quando se acham a grandes distâncias amotinam-se e não têm recursos. Fora das suas casas a quem podem recorrer? Talvez lhes seja recomendado secretamente que fujam, são porém dadas ordens para serem agarrados e levados para outro barracão e sofrem o mesmo tratamento; são açoitados desapiedadamente até que se lhes torna impossível recusar".

Se a situação era incontrolável fora de Macau, ela revela-se também impossível de fiscalizar mesmo na cidade onde um sem número de artifícios iludiam leis e regulamentos e até a vigilância directa das autoridades. Ao mesmo tempo, nos navios fora das águas de Macau, os cúlis eram arrumados como gado apesar das condições de higiene, espaço, água e luz nos transportes estarem meticulosamente regulamentadas pelo governo português.

Apesar disso, as estatísticas reveladas pelo parlamento britânico sobre o número de vítimas nos transportes de cúlis é elucidativo. De Janeiro de 1847 até Dezembro de 1857, em 23.928 cúlis partidos da China 3.342 morreram na viagem, o que implica uma percentagem de 14 por cento de óbitos a bordo.

O Cônsul de Portugal no Perú afirmava então em carta para o governador de Macau que a mortalidade chegava a atingir metade dos passageiros, e algumas vezes mais do que isso, vítimas do escorbuto e de outras doenças.

O caso ocorrido em meados de 1870 com o navio "Dolores Ugarte", de S. Salvador, é demonstrativo da tragédia que se vivia.

O "Dolores Ugarte" largou de Macau com um carregamento de 600 cúlis com destino ao porto de Calau, na América Central. O navio, com uma capacidade de apenas 800 toneladas, levava uma quantidade excessiva de passageiros que logo no início mostraram tendência para se amotinar, pelo que foram confinados a um espaço exíguo entre as cobertas, não lhes sendo permitido chegar ao convés. Durante as primeiras três semanas os cúlis viajaram em regime de prisão sendo, depois disso, autorizados a subir ao convés em grupos de cinquenta para uma hora de exercício diário, sob a mira das armas aperradas da tripulação.

Apesar disso os tumultos eclodiram e, num deles, 18 cúlis foram pura e simplesmente lançados pela borda fora.

Para agravar a situação, a comida e a água começaram a escassear e os cúlis passaram a dispor de rações insuficientes que os levavam a despojar-se das míseras moedas de que ainda dispunham para obter uma caneca de água dos cúpidos tripulantes.

As doenças devastaram rapidamente a desgraçada carga humana e os jornais do Havai, onde o navio aportou para deixar grande quantidade de mortos e feridos, denunciaram pela primeira vez o sucedido em notícias que correram mundo. As desventuras de cegos, estropiados, mortos, vítimas de inanição, do tifo, do escorbuto e da desinteria foram descritas em páginas de horror por toda a imprensa.

O "Dolores Ugarte" aportou mais tarde a Calau e ali o Cônsul de Portugal no Perú oficiou assim o governador de Macau: "A fragata salvadorenha "Dolores Ugarte" fundeou no porto de Calau procedente de Macau trazendo a bordo 486 colonos chinas dos 605 que recebeu no porto de procedência, havendo tido que desembarcar, por doentes, 43 em Honolulu onde foram detidos, segundo afirma o capitão e morrendo 76 na viagem de doença natural; e que das informações tomadas por este consulado geral resulta que os ditos passageiros foram bem tratados e servidos durante a navegação".

PASSO EM QUE INTERVÉM UM CÔNSUL ESCRITOR EM PRINCÍPIO DE CARREIRA

"Há 8 mezes chegou à ilha (Cuba) um China, não como colono, mas livremente como súbdito de Macau, médico de profissão e como tal empregado a bordo de um navio de emigrantes. Este desgraçado foi preso pela polícia, em seguida ao seu desembarque, como colono sem papéis. Há dezoito meses que está no presídio; ultimamente conseguiu vir ao consulado reclamar-se como português, está consumido de trabalho e quase idiota de terror. Há um mêz que reclamei energicamente pedindo a sua imediata liberdade; não houve resposta alguma e o miserável continua no presídio ".

Esta lancinante reclamação foi feita pelo cônsul português em Havana, José Maria Eça de Queirós, o escritor, que efectuava a sua primeira missão ao serviço da diplomacia portuguesa.

Eça de Queirós que "assumiu sempre a atitute de espectador descomprometido que observa irónico e sorri ao de leve", não pôde dissociar-se do drama que lhe passava quotidianamente perante os olhos e para o qual lhe escasseavam poderes. No entanto, em páginas vigorosas dirigidas ao ministro dos negócios estrangeiros de Portugal, descreveu a situação e exigiu medidas que a remediassem.

O diplomata e escritor pôs a nú o procedimento dos possuidores de colonos e o assentimento cúmplice das autoridades, lembrando que os proprietários de Cuba "na véspera de perderem os escravos procuram des forrar-se pelos colonos e substituir subtilmente a escravatura importada à escravatura indígena".

Eça de Queirós, no entanto, reconhecia que no começo de 1870 a existência e condição dos trabalhadores asiáticos era verdadeiramente inumana:

"Mais de 80 mil colonos sem protecção e sem direitos estavam pelo facto de uma legislação tirânica abandonados à exploração do proprietário, às arbitrariedades das autoridades, às extorsões da polícia e às exigências dos "ayuntamientos". O consulado de Portugal apesar do seu zelo não podia modificar este estado de injustiça...".

Na sua primeira missão diplomática, Eça descreve assim o quadro da "nova escravatura" no "Novo Mundo".

- "Como V. Exa. sabe, esta legislação é dominada por dois factos principais: 1. Os colonos que chegaram antes de 1861 à ilha são livres e têm o direito de receber a sua cédula de estrangeiro, e com ela contratar-se livremente pelos preços que marcarem, estabelecerem-se etc.. 2. Os colonos que chegaram depois de 1861 e cumpriram o seu primeiro contrato têm de sair da ilha no prazo de dois meses, ou de se recontratar uma segunda vez por mais seis anos, obrigatoriamente.

Esta é a lei: vejamos agora a arbitrariedade da execução. Uma disposição antiga determina que todo o colono que cumpriu o seu primeiro contrato será entregue pelo amo à autoridade local, que o encerrará no "depósito". O "depósito" é uma das mais características instituições desta legislação. Os "depósitos", cada capital de distrito tem o seu, são largos barracões ou casebres, onde os colonos que cumpriram o seu primeiro contrato são encerrados como numa prisão, até que se lhes imponha um contrato novo. O depósito tem assim dois fins: 1° impedir que se desperdice a porção de trabalho que pode dar o colono no intervalo de dois contratos; 2° impedir que o colono se possa contratar livremente, ou sair da ilha ocultamente, ou perder-se nas jurisdições do interior e da "manigua" e libertar-se portanto da tutela e do domínio dos plantadores que estão no depósito das obras municipais do "ayunta-iento", sem salário; o segundo exercendo sobre eles uma vigilância igual em dureza à que se emprega com presidiários. Os "depósitos" pela maior parte não têm higiene, nem asseio, nem ordem, nem humanidade; o fornecimento de alimentação para os colonos é dado por arrematação a donos de tabernas que especulam materialmente sobre os víveres, e enriquecem com a fome dos colonos; e ali se conservam aqueles desgraçados até que um proprietário vá ao "depósito" reclamar um certo número de braços para a servidão de um segundo contrato. Assim o "depósito" é apenas um intervalo escravo entre duas escravidões".

Esta era a realidade que Eça de Queirós descrevia, mas os cúlis eram legalmente protegidos pelo governo português, possuindo para isso documentos probativos. No entanto, uma coisa era a legislação e outra a realidade dos factos como diz o escritor.

-"Ora é justamente nos depósitos que se encontra grande parte dos colonos chegados antes de 1861, e com direito portanto à cédula de português; mas pelo facto de estarem ali, sob um regulamento penitenciário, não têm faculdade de reclamar a sua cédula, e perdem portanto todo o benefício da lei; assim a lei liberta-os e o regulamento escraviza-os. Sucede também que um grande número dos que chegaram antes de 1861 estão agora em segundo contrato no campo e nas jurisdições do interior e, não podendo portanto vir produzir o seu direito perante o consulado da Havana, porque raro é o patrão que consente que o colono perca dois ou três dias de trabalho para vir a Havana, não aproveitam com a disposição que os favorece. Assim, estando parte destes colonos nos depósitos, parte nas fazendas, apenas um pequeno número pode alcançar a sua cédula e as garantias do trabalho livre".

Reconhecida a situação de facto, Eça avança com um argumento forte junto do seu ministro tendente a acudir à situação dos milhares de trabalhadores que morriam em Cuba: - "A falta de braços na ilha é excessiva. Muitos engenhos estão parados. E com as leis de emancipação dos escravos crescerá a necessidade dos colonos. E como aos importadores não convém ir buscá-los a Hong Kong ou Cantão, porque o governo inglês só permite que o colono seja contratado por cinco anos, é forçoso que os vão buscar a Macau. No dia em que o porto de Macau se fechasse à emigração, uma grande ruína abalaria a indústria açucareira de Cuba; por isso todas as exigências do governo de Sua Majestade serão aceites, pela dependência em que Cuba está de Macau.

Suplico pois a V. Exa. se digne atender, em qualquer acordo, às ideias que exponho, e com tal reforma o governo de Sua Majestade fará justiça a cem mil colonos, e responderá dignamente às antigas acusações; e certamente o governo de Espanha aderirá à justiça desta reforma, pois que a nação que emancipa os escravos não pode logicamente escravizar os colonos".

(Idem, ib. o.c. "China, The Land and its People").

O LEAL SENADO

Mas o processo de defesa desencadeado por Eça de Queirós na longínqua Cuba tinha ecos profundos em Lisboa e o ministro Andrade Corvo propunha-se tomar medidas radicais convencido da ineficácia de qualquer legislação implementada, tendo em conta o fracasso dos regulamentos em vigor que pura e simplesmente não protegiam ninguém, nem sequer salvavam a face de Portugal perante a comunidade internacional.

O espírito era o de acabar de vez com a emigração de cúlis por Macau, pondo termo a uma vergonha que durava há mais de uma década.

Aliás, as sensibilidades eram unânimes quanto à necessidade de pôr termo a tal estado de coisas. Neste ponto é exemplar a posição do Leal Senado de Macau, tradicionalmente sempre pronto a contemporizar ou a negociar antes de optar por gestos decididos.

A posição sobre o tráfico de cúlis é expressa num parecer do município na sequência de uma petição assinada por um grande número de portugueses e chineses manifestando-se contra as tendências monopolistas no sistema de contratação de cúlis em Macau.

Os peticionários defendiam a legitimidade do negócio a que se dedicavam e também a livre concorrência com as consequentes subidas e descidas dos preços que a competição comercial produz.

O Leal Senado, porém, deixando as questões jurídicas para resolução em sede própria, tomou uma posição clara de defesa do "bom nome, honra e moralidade do município" e assumiu-se como promotor do "verdadeiro bem estar do povo".

Sublinhando que a emigração empobrecia Macau, o parecer afirmava: - "A emigração, em consequência de crassos abusos que a têm afrontado, há chamado sobre Macau má reputação e péssimo nome, ódio dos chins, desprezo dos europeus, e inimizade dos distritos vizinhos de Macau".

O parecer deixava depois claro que: - "É imoral considerar a emigração como comércio, porque seria fazer dos homens mercadoria. É igualmente imoral haver preço de emigrantes e a razão é óbvia. É ainda mais imoral haver alta e baixa de preço, pois que a competência, ou o aumento da corretagem, produz graves males tanto aqui como no Perú e Cuba: aqui faz crescer o incentivo de crimes, o que é imoral; lá aumenta o trabalho do colono, o que é bárbaro e injusto. A culpa de tão deplorável situação é de haver deixado, contra a opinião e avisos de pessoas respeitáveis, que a emigração absorvesse no seu seio tão grande número de habitantes desta cidade, e que se confiasse a prosperidade dela num absurdo económico".

O documento concluía enfático: - "À vista do que este Leal Senado acaba de expor, e depois de protestar contra a pretenção dos signatários da representação, que querem converter a emigração em comércio e por conseguinte em escravatura; o mesmo Leal Senado entende que o único meio profícuo que há para salvar a emigração que se faz por este porto é que essa imigração seja emigração, como V. Ex. o quer, e como o governo português o deseja; que ela seja colocada nas suas verdadeiras bases, isto é, liberdade e espontaneidade dos emigrantes; um contrato equitativo e justo; e o seu cumprimento devidamente garantido; devendo ser proibida toda e qualquer competência na corretagem, porque é esta competência o característico mais frisante do comércio dos homens, da escravatura enfim".

A posição do Leal Senado, rejeitando a contemporização, assinalava sem sombra a condenação geral de um negócio que chegou a constituir rendimento directo ou indirecto de uma média de 9 mil pessoas, um número tanto mais impressionante quanto tivermos em conta que a população do território era de cerca de 20 mil habitantes pelos anos de 1870.

Apesar de pelo menos 130 portugueses se encontrarem envolvidos no tráfico de cules pela década de 70, as cinco firmas de contratação existentes em Macau, segundo o cônsul britânico em Cantão, Robertson, eram oriundas de países sul-americanos e dos Estados Unidos, enquanto os navios que faziam o tráfico eram na sua quase totalidade de outras nacionalidades, que não a portuguesa.

Em 1874, João de Andrade Corvo, Secretário de Estado da Marinha e do Ultramar, em nome da "probidade e da honra da Nação" pôs termo à vergonha nacional que representava uma actividade cujos contornos se assemelhavam demasiadamente aos da escravatura que estava a ser progressivamente abolida desde 1858.

O Visconde de S. Januário acabou definitivamente com o negócio de acordo com as ordens de Lisboa, em 27 de Março de 1873, prevendo uma "certa crise" mas reconhecendo que se efectuava "uma grande reforma aconselhada pela moral, pela conveniência das nossas relações internacionais e pela dignidade da nação porquanto se o defeito não era nosso, é evidente todavia que a permissão deste sistema de emigração pelo nosso porto e a sanção do governo português aos contratos aqui feitos lhe impunha grande responsabilidade".

Com o fim do tráfico, Macau deixava de vez de andar nas bocas do mundo confinando-se a si próprio, enquanto a sua "rada" assoreava, afastando de vez todo o contacto directo com o mundo exterior para além de Hong Kong, e Hong Kong prosperava.

Esta foto e as anteriores, tiradas entre 1868 e 1872 por John Thonson, fazem parte de uma reportagem fotográfica que mostrou ao Ocidente as primeiras imagens do interior da China. Estes meios de maltrapolhos e fumadores de ópio eram o campo privilegiado do recrutamento dos cúlis (ldem, ib.).

*Jornalista; investigador de temas da história de Macau.

desde a p. 41
até a p.