Macau no Século XIX

Macau visto pelo Comodoro Perry em 1854

Manuel Teixeira*

Igreja de S. Domingos - G. Chinnery Tinta e sépia em papel; 20 x 20 cm.. (M. Luís de Camões)
Em banda (Págs. 16 e 17) 1 - Grupo de tancareiras com crianças (1835)
2 - Jogadores (1842)
3 - Carro ambulante de venda de comidas (1835)
4 - Pastores com gado

DECADÊNCIA DO COMÉRCIO

Na sua Narrative of an Expedition of an American Squadron to the China Seas and Japan, o Comodoro americano Mathew-Calbraith Perry relata:

"A residência do Comodoro em Macau deu-lhe a oportunidade de estender as suas observações deste lugar além do que lhe oferecera a sua casual visita anterior.

Macau, outrora tão famoso pelo seu extenso e lucrativo comércio e pela sua riqueza, está agora completamente privado deles, e parece ser sustentado apenas por um pequeno comércio costeiro, pelo dinheiro que gasta uma pequena guarnição e pelas despesas das famílias dos comerciantes ingleses e americanos que têm ali a sua residência de verão; e que, tendo muito dinheiro, o gastam liberalmente. A jurisdição portuguesa exerce-se dentro de pequenos limites. Os estabelecimentos chineses parece que vão absorvendo todo o espaço; de facto, a maior parte da população da cidade compõe-se já de homens e mulheres chineses, que exercem os ofícios mais baixos nos estabelecimentos domésticos, tanto dos portugueses como dos estrangeiros.

Os chineses são os donos das lojas, das oficinas e do mercado. Difícil é conjecturar o que fazem os portugueses.

Com algumas excepções de comerciantes ricos, eles são na maioria pobres e demasiado orgulhosos para trabalhar; contudo, alguns deles são amanuenses nas várias firmas comerciais estrangeiras, ao passo que a grande maioria passa o tempo na ociosidade, gozando do resto das principescas fortunas dos seus antepassados e ainda ocupam, na sua pobreza de mendigos, as magníficas mansões dos antigos tempos da esplêndida prosperidade de Macau.

Há ainda uma amostra de poder militar da parte dos portugueses, que se vê nas colinas circundantes, cobrindo a cidade de fortificações, construídas no estilo do séc. XVII. Estas parece serem suficientes para imporem respeito aos chineses que, se tivessem a mais pequena energia, poderiam facilmente desalojar os portugueses, aos quais não consagram grande afeição, e expulsá-los todos do país.

A guarnição portuguesa compõe-se de cerca de 200 soldados regulares e outros tantos da milícia local, todos excelentemente disciplinados, e dificilmente se encontram homens mais bem vestidos e aprumados.

Será bom talvez lembrar que a Companhia Inglesa das Índias Orientais, antes da abolição da sua Carta, fez de Macau uma espécie de entreposto do seu comércio na China, e algumas das residências mais elegantes foram construídas por esta magnâ-nima corporação, ou pelos ostentosos portugueses nos seus dias de riqueza e prosperidade.

Uma destas magníficas mansões, com um jardim de mais de um acre de extensão, construído com gosto e até hoje conservado em ordem com grandes despesas, podia ser arrendada, aquando da visita do Comodoro, pela pequena soma de 500 doláres por ano; e este lugar tem mais a vantagem de andar romanticamente associado com o nome do poeta Camões, tendo sido o seu favorito retiro e o local onde, como o leitor já sabe, está erecto um monumento à sua memória.

Foi de Macau, nos dias da sua opulência, que foram despachadas para o Japão muitas das expedições comerciais portuguesas; e foi também em Macau que a Igreja de Roma teve um dos estabelecimentos eclesiásticos mais poderosos, sustentado pelo terrível poder da Inquisição (1) que, nos tem-pos antigos, exerceu no Oriente toda a força da sua negra e cruel disciplina.

Hoje, porém, desapareceram a opulência e os empreendimentos dos seus comerciantes; e o tremendo domínio dos altivos eclesiásticos e o seu sanguinário tribunal (2) cairam nas mãos fragéis de padres empobrecidos, que fazem humildemente apelo à caridade e dependem apenas da liberalidade da reduzida população portuguesa.

Desde que começaram a construir-se navios de calado superior ao dos antigos, poucos daqueles que visitam Macau podem entrar no Porto Interior; no entanto, este é suficientemente profundo para os barcos empregados no comércio costeiro, que navegam com a bandeira portuguesa e são chamados lorchas, que são uma espécie indescritível de curiosa construção e cordame. Os juncos chineses são também capazes de entrar no Porto Interior, como também ocasionalmente um brigue ou escuna. O navio de provisões Southampton, que desloca 13 pés e meio, ancorou dentro. Barcos de 13 pés e meio e, na maré cheia, de 14 pés, podem entrar neste porto e outros semelhantes podem entrar num porto oposto à cidade, chamado Taipa. Foi na Taipa que a corveta portuguesa D. João II (3) estava ancorada quando explodiu, tendo a corveta de guerra ameri-cana Marion, que estava ancorada perto, prestado óptimos serviços.

Supõe-se geralmente que foi o artilheiro quem fez explodir intencionalmente o navio por haver sido punido nessa manhã pelo capitão, por não ter feito as necessárias preparações para as celebrações desse dia, que era um aniversário nacional (4).

Navios de guerra e grandes navios mercantes com destino a Macau ancoram na rada, a uma distância de 3 a 5 milhas da cidade; isto torna a comunicação com terra sempre inconveniente e no mau tempo absolutamente impraticável.

5 - Pescador com cana
6 - Figuras à mesa (adivinho de rua?), (1836).
7 - Pescador com vara de bambu
8 - Jogadores

Esta e outras razões levaram o Comodoro a recomendar a transferência do depósito naval para Hong Kong. O Comodoro Perry expôs longamente as suas vistas sobre este assunto num comunicado ao Secretário da Marinha. Declarou então que, devido à inconveniência e consequente demora, o que acarretara aumento de despesas na descarga em Macau dos artigos enviados pelos Estados Unidos para uso do Esquadrão, sobretudo do carvão, ele via a necessidade de ter um depósito em Hong Kong, que tinha sido antes a estação naval; mas que nos tempos agitados da questão de Oregon (5), dali fora removida, pois se supunha iminente uma ruptura com a Inglaterra.

Como agora já não existem mais tais embaraços, não pode haver dúvida alguma de que a propriedade do Estado estará mais segura em Hong Kong do que na cidade mal defendida de Macau. Hong Kong tem todas as vantagens de ancoradouro, pois que os maiores navios podem ancorar nas suas águas serenas, a 700 jardas da terra, permitindo o transporte de artigos de todas as espécies em quaisquer condições atmosféricas, com grande facilidade, da terra para o navio e do navio para terra.

A única objecção que se poderia pôr contra Hong Kong seria a sua insalubridade; mas esta não abrange os que vivem no mar, que têm estado isentos dos maus efeitos das causas prejudiciais que prevalecem em terra. Mais: Hong Kong tem a vantagem de ser o mercado para as várias provisões que podem ser necessárias para um esquadrão naval e tem os meios para o conserto e reparação de navios.

Estando próxima a partida naval, o Comodoro fez todos os arranjos preliminares necessários para obter depósitos para o carvão e outras provisões em Hong Kong e ordenou aos navios de carvão e de abastecimento que descarregassem nesse porto as suas cargas.

O Comodoro achou Macau um lugar extrema-mente agradável para residir, pois as belezas pitorescas da terra são cheias de interesse; e a cidade com a sua agradável sociedade estrangeira, apresentava muitas atracções. Durante a sua estadia ali, ele entreteve relações com muitos residentes, incluindo as famílias de alguns comerciantes de Cantão, que tinham as suas residências de verão em Macau, para onde eles se retiravam durante a estação calmosa e onde exerciam a hospitalidade mais delicada e mais liberal.

Monsieur de Bourboulon, ministro francês em Cantão (6), tinha uma residência em Macau; e com sua esposa, senhora americana (7), com quem tinha casado quando era secretário da legação em Washington, contribuía muito para animar o encanto das relações sociais.

O Comodoro francês, Monsieur de Montravel, chegou com o seu Esquadrão a ancorou na rada exterior; e o Comodoro Perry teve a oportunidade de se relacionar com ele e de trocar com ele, com Monsieur Bourboulon e ainda com os residentes principais de Macau, aqueles actos de hospitalidade e delicadeza que andam invariavelmente ligados à justa apreciação de cortesia mútua.

9 - Figuras (criado, vendedor?) observam grupo de jogadores de Tek-Hin (Tchiquia) - arremesso de um volante a pontapé, um dos jogos tradicionais de Macau.
10-Restaurante ambulante (1843); ao lado, vendedores e senhora acolitada por criado com sombreiro.

Com o governador Guimarães (8), oficial da Marinha Portuguesa, com quem o Comodoro se encontrara na Costa de África, mantinha as relações mais amigas e íntimas, bem como com o Cap. Loureiro (9), do mesmo serviço; e é de reconhecer o procedimento cortês destes oficiais no decurso de todas as transacções oficiais com eles.

Prevaleceram os melhores sentimentos nas relações com Sir George Bonham (10), superintendente britânico dos negócios na China e governador de Hong Kong, bem como com os supremos comandantes militares e navais, os mandarins do país e as autoridades locais".

INCIDENTES COM OS INGLESES

"Em 1849 ocorreram em Macau dois acontecimentos, durante a administração do governador Amaral, oficial distinto e universalmente estimado; apesar de terem sido divulgados nos jornais de Hong Kong desse tempo, ilustram ainda notavelmente a decadência das fortunas e o deprimido carácter nacional dos portugueses, e por isso não será fora de propósito relatá-los neste lugar. O primeiro caso foi provocado por um daqueles actos de insensatez, algumas vezes exibidos pelo entusiasmo indisciplinado de fanáticos nas nações estrangeiras, em que a religião é diferente da deles.

Um jovem inglês (11), ligado a uma escola missionária de Hong Kong, fez uma visita a Macau, e, pouco depois de desembarcar, deparou com uma das procissões religiosas tão comuns nos países católicos, em que aquilo que se chama Hóstia é levada com grande pompa pelas ruas principais com a participação de numerosos padres e outros em vestes corais, com velas acesas, oscilar dos incensórios e toda a rica exibição das cerimónias eclesiásticas romanas.

Este jovem, ao ver, talvez pela primeira vez, a singular exibição do que a ele lhe parecia um insulto ao cristianismo e não fazendo, talvez, o desconto suficiente às diferenças de opinião de crenças religiosas e à sinceridade, ainda que errada (12), daqueles que pertencem a outras crenças, teve a ideia de mostrar o seu desprezo por esse aparato. Por conseguinte, colocou-se ostensivamente no percurso da procissão e recusou tirar o chapéu quando a Hóstia passava. Se ele, por objecção de consciência, não quisesse realizar esse acto, poderia evitá-lo, voltando e passando por outra rua. Muitos protestantes assim procedem em países católicos. Mas este jovem não procedeu deste modo muito óbvio e simples, com o qual podia salvar a sua consciência e permitir que outros de religião diferente procedessem de acordo com as suas vistas. Quando viram o inglês, ali de propósito no percurso da procissão, de chapéu na cabeça, os padres pediram-lhe delicadamente que tirasse o chapéu ou que se afastasse; mas em vez de atender esse pedido, o jovem enterrou mais o chapéu na cabeça e conservou-se ali como um mártir. Então a polícia armada aconselhou-o a tirar o chapéu ou a retirar-se; mas resistindo obstinadamente, apesar deste aviso, foi preso e levado para a casa da guarda.

Então foi a catástrofe: um dos súbditos de Sua Magestade encerrado numa casa da guarda portuguesa!

11 - Vendedor com a tradicional balança manual.
12 - Jogadores (1836).
13 - Pastor com porco.

A indignação do Cap. Keppel, comandante do navio de guerra inglês Dido, então ancorado na rada de Macau, subiu ao rubro e dirigiu imediatamente um pedido a Amaral, governador português, para a libertação incondicional do inglês. O governador pediu uma breve demora a fim de consultar o conselho eclesiástico. No entanto, estava para se realizar uma regata de barcos pertencentes ao navio Plymouth dos E. U. A. e ao navio comandado pelo Cap. Keepel, que havia sido nomeado um dos juizes. Deveriam também estar presentes o governador Amaral e muitos dos oficiais da guarnição local. Chegando o dia, o Cap. Keppel afastou-se discretamente daquele lugar e, com um grupo de marinheiros e alguns oficiais voluntários, abandonou a rada, cena da regata, dirigiu-se à praia e desembarcou em frente da casa de Patrick Steward; daí seguiu através duma casa desabitada e dum jardim para evitar a rua principal, caiu subitamente sobre o guarda da guarnição e precipitando-se sobre a sentinela, arrancou pela força o inglês, cujo entusiasmo inoportuno deu causa a este ultraje militar".

ASSASSINATO DE AMARAL

"O segundo incidente, a que fizemos alusão, foi igualmente de carácter surpreendente, do que resultou a morte do governador. Parece que Amaral era um homem de grande energia e tinha a ambição de melhorar a cidade de Macau rasgando estradas através e em volta do seu limitado espaço. Nos seus esforços para efectuar estes melhoramentos, foi acusado pelos chineses de dessagrar os seus antigos lugares de sepulturas. Recebeu algumas insinuações veladas de que a sua vida corria perigo, mas prestou-lhes pouca ou mesmo nenhuma atenção. De acordo com o seu costume habitual, cavalgava à tarde nos arredores da cidade, local preferido pelos cavaleiros, acompanhado pelo ajudante de campo, ten. Leite, também a cavalo, achando-se a pequena distância outros cavaleiros, quando, ao chegar a uma parte da estrada orlada de arbustos, um chinês, ou talvez mais, pois o número nunca foi exactamente precisado, saltou sobre ele detrás dos arbustos; arrancou-lhe a rédea da sua única mão (pois tinha apenas um braço, tendo perdido o outro numa batalha) e ele próprio foi derrubado do seu cavalo na sequência da emboscada. Foi-lhe cortada a cabeça e amputada a mão, não ficando mais do que o seu corpo mutilado e sem vida à vista alarmada dos outros cavaleiros que ali acorreram, procurando o assassino avidamente, mas sem resultado. Não se descobriu nenhum rasto do cobarde assassino ou assassinos, e o Conselho do Governo de Macau, apesar das mais rigorosas investigações, nunca conseguiu qualquer indício dos autores do crime. Mas suspeita-se que as autoridades chinesas tinham conhecimento das pessoas dos vilões, pois que, após repetidas intimações do Conselho do Governo de Macau, a cabeça e a mão do malogrado governador foram enviadas para a Cidade.

Este assassinato ocorreu apenas dois meses depois do acto do Cap. Keppel, que irritou muito o galante Amaral".

14 - Vendedor sentado (1842); em baixo o tudum, chapéu de largas abas, típico de serviçais e cules.
15 - Grupo de jogadores apostando (1843).
16 - Vendedor ambulante com balança.
17 - Vendedor de azeite.

GASTRONOMIA CHINESA

Perry era um bom observador, a quem nada escapava. Na sua citada Narrative of an Expedition of an American Squadron to the China Seas and Japan, escreve ele acerca da gastronomia chinesa:

"Quanto à abstenção dos chineses com respeito à comida, esta, como já foi notado, é simplesmente uma virtude de necessidade, pois parece que gostam bastante de carne e de toda a espécie de comida, ainda que grosseira, quando a podem apanhar. São certamente os mais desregrados comilões do mundo, quando são fornecidos com o material necessário para o exercício das suas propensões gastronómicas.

As classes mais pobres estão acostumadas só ao uso do arroz cosido, misturado com pequenas porções de peixe salgado, e ocasionalmente com alguns simples condimentos, e consomem enormes quantidades deste alimento, se tiverem meios de o arranjar.

Cães e gatos são levados pelas ruas para vender e devem ser considerados acepipes acima do alcance das classes mais pobres, a julgar pelo dinheiro que pedem por eles. Ratos, leitões e outros bichos são também avidamente procurados e são cozinhados de maneira a dar saborosos pratos.

Para as famílias que habitam nos barcos velozes que acompanham o navio, um rato gordo é um dos presentes mais agradáveis; eles cozinham-no, preparam-no com arroz, de que resulta um prato muito semelhante ao francês Poulet-au-riz, na aparência; mas quanto ao gosto, esta pergunta deve ser feita às autoridades chinesas, pois ainda não apareceu nenhum americano ou europeu, segundo creio, que o tenha realmente experimentado. Os chineses empregados nos navios do esquadrão acharam sempre as rações da marinha insuficientes para satisfazer a sua glutonaria, apesar de as rações dos navios americanos serem muito mais abundantes e de melhor qualidade do que a ração da marinha de qualquer outra nação...

Os chineses não só devoram toda a ração que lhes é servida, como andam em volta do convés açambarcando tudo o que podem apanhar dos restos das messes e invariavelmente assediam os cozinheiros dos navios para lhes darem as raspas dos caldeirões.

Os criados chineses, empregados na cabine do Comodoro, comem, misturando tudo, arroz, pão, porco e os restos da mesa, três vezes mais do que os outros criados. De facto, a enorme quantidade de arroz que eles consomem, com tudo aquilo de que podem lançar mão, é incrível. Quanto ao açúcar e outros doces, surripiariam tudo se não fossem cuidadosamente vigiados pelo ecónomo. Este excesso de alimentação produz os seus efeitos nos criados chineses, tornando-os gordos e preguiçosos como animais mudos.

Muitos dos criados chineses empregados pelas famílias europeias e americanas estabelecidas na China tratam do seu próprio alimento; os seus salários vão de 4 até 7 dólares ao mês; os cozinheiros recebem de 7 a 10. Todos os artigos para o consumo doméstico nos estabelecimentos estrangeiros são procurados por intermédio de uma pessoa chamada comprador, que assalaria criados, paga-lhes os salários e fica garantia da sua honestidade; ele conserva uma conta regular da despesa doméstica e faz contas com os seus empregados em prazos determinados.

Nos grandes estabelecimentos mercantis os lucros destes compradores são muito consideráveis. Ainda que um jantar haja sido preparado e fornecido com toda a abundância, será difícil assegurar comida para um hóspede que resolva chegar uma hora depois de terem sido servidas as refeições; e isto mesmo naquelas residências onde os proprietários prestam pouca atenção à economia da casa. Mal os pratos são retirados da mesa, já eles estão a caminho das vizinhas casas de pasto, onde são de novo estufados e vendidos às classes médias.

18 - Mulher com lenço e tudum (tancareira).

19 - Jogadores (de xadrez?).

20 - Cambista, de cabaia e sapato de bico levantado.

Os comerciantes devem ter abundantes mesas nos seus hongs (13) para manter o seu negócio; e com isto fazem-se necessariamente grandes despesas; mas, como estas estão incluídas nos lucros e perdas dessas empresas, tudo isso é de pouca importância. Os missionários e outras pessoas de pequenos meios vêem-se em grande dificuldade para equilibrar os seus orçamentos (com estes repastos)".

CRIADOS

"Nas casas dos negociantes estrangeiros, onde não haja senhoras, nunca se empregam criadas; e até mesmo (o que parece repugnar ao nosso sentido de delicadeza) há algumas famílias inglesas e americanas sem criadas (apenas com criados), apesar de haver senhoras nessas casas.

A razão que dão é a dificuldade de arranjar criadas fiéis.

Mas deve observar-se que em todas as famílias onde há crianças se empregam criados ou criadas de Macau, chamadas "Amahs" ou "Ayahs".

Os salários destas últimas são quatro dólares por mês mas, levadas para Cantão ou Hong Kong, elas pedem uma compensação. Muitas das mulheres falam um pouco a língua chamada chinês-inglês ou, na frase da gíria, pigeon, que parece muito ridícula ao ouvi-la pela primeira vez; mas a gente é levada necessariamente a usá-la para se fazer entender. As mulheres de Macau que possuem este elegante dote pedem salário mais elevado.

Há certamente alguma escusa em empregar criados para os quartos de dormir e de vestir ao saber-se que os chineses, senhores da situação, são os únicos alfaiates, costureiros, mainatos, engomadores e fabricantes de fina roupa branca.

Em Cantão, porém, há algumas mulheres empregadas pelos marinheiros para fazer simples costura, pelo que recebem quase tão pouco como as nossas operárias de agulha, ou aquelas pobres criaturas na Inglaterra, mais mortas do que vivas, sobre cuja miséria Hood (14) cantou as suas endechas. O seu soldo é de 5 a 7 avos por dia.

Os alfaiates do sexo masculino são melhor pagos; vão a qualquer casa e trabalham 12 horas por 25 avos por dia, assegurando a sua própria comida, ou, como eles chamam, o seu chau-chau.

É vulgar ver uma mulher suja de pés pequenos sentada a qualquer canto da rua, com objectos de costura e alguns farrapos, pronta a cozer um rasgão ou a pregar um remendo no fato de qualquer transeunte que precise dos seus serviços. À noite vê-la-eis voltar a casa manquejando com os seus instrumentos de trabalho, nos seus horríveis cotos de pé, dos quais parece muito orgulhosa".

21 - Barbeiro de rua.

22 - Grupo de jogadores.

23 - Tancareira com criança (1827), de lenço e min-nap (gabão acolchoado).

PÉS PEQUENOS

"Todas as mulheres chinesas, de facto, se orgulham muito do seu casco semelhante ao da cabra e têm o maior desprezo por um pé natural.

Diz-se que as rapariguinhas importunam suas mães com lágrimas nos olhos para lhes comprimirem os pés, o que lhes acarreta uma posição mais elevada na sociedade, muito embora apareçam também mulheres de classe mais baixa com o seu casco aristocrático, que são possivelmente aquelas que já conheceram melhores dias.

É difícil aos estrangeiros poderem ver estas singulares deformidades, pois as mulheres chinesas manifestam a maior repugnância em as mostrar; mas o Dr. Parken (15) conseguiu que uma rapariga de 13 anos, que estava doente no hospital dele, tirasse as ligaduras na presença de sua mãe para satisfazer a curiosidade do Comodoro, que deitou apenas uma olhadela para esse coto disforme, que se parece mais com um espécime de má cirurgia, de que o Dr. Parken se teria sem dúvida envergonhado, ainda que os chineses considerem isto uma moda elegante.

Estes cascos horríveis são cuidadosamente tratados pelas mulheres chinesas e estão envolvidos em alegres ligaduras de todas as cores, e calçados com sapatos de calcanhar alto, ricamente trabalhados e adornados".

MODISTAS

"Um costureiro de vestidos femininos da moda, onde todos os indispensáveis modistas são homens, é muito frequentado pelas senhoras estrangeiras, e é necessário encomendar os seus serviços com tempo em Cantão e Macau, como os de Miss Lauvan em Nova Iorque. Estes modistas exigem geralmente aquilo que eles chamam muster, ou modelo, que eles, com a sua costumada habilidade imitativa chinesa, reproduzem exactamente, seja a moda de Londres, de Paris ou de Nova York, que adaptam a qualquer forma ou tamanho. Não foi de forma alguma uma vista agradável, ao passar por uma das escuras e sujas alfaiatarias de Macau, contemplar um chinês meio nu e untuoso, alta noite, ocupado a lançar os dedos sujos sobre um esplêndido vestido feminino, destinado a adornar a figura graciosa de alguma mulher bela para um próximo baile ou jantar. Estes alfaiates são tidos em tanta estima pelos residentes na China, que algumas senhoras europeias e americanas, quando deixam este país, levam com elas um alfaiate chinês.

Os soldos ordinários para todos os trabalhadores de Cantão (têm de garantir o alimento por si próprios) varia de 12 a 20 avos por dia. Os agricultores, quando recebem comida, recebem 6 avos por 12 horas de trabalho, isto é, um quarto dum péni por hora. Os jornaleiros, portadores de cadeirinhas e outros carregadores, se não são avençados para o trabalho, recebem 20 ou 25 avos. Os barqueiros recebem de um dólar e meio a 2 doláres e um quarto por mês (quando se encontram), incluindo geralmente comida para eles próprios, mulheres e filhos, que vivem com eles no barco.

Os carregadores e outros artífices em Cantão constituem e designam leaders ou chefes, que fazem os contratos para os vários trabalhos".

24 - Cães deitados (pormenor).

25 - Jogadores (1835).

MENDIGOS

"Este sistema de organização não é apenas confinado àqueles que trabalham, mas estende-se também aos mendigos. Os mendigos, como os ciganos, têm os seus reis. Estes atribuem aos seus esfarrapados súbditos os seus ofícios particulares de vagabundagem e os seus campos de operação; e o que é singular é que as leis da China outorgam a estes tratantes certos direitos e privilégios. Estas leis dão-lhes o direito de se chegar e bater à porta de qualquer domicílio, ou de entrar nas lojas e bater um par de paus semelhantes aos usados pelos guardas nocturnos empregados pelas famílias para guardar as suas casas dos ladrões; estes paus produzem um som desagradável. Por mais tempo que os mendigos continuem com este aborrecimento, não podem legalmente ser postos na rua até que lhes paguem a costumada gorgeta, que é a mais pequena moeda em uso, chamada cash (sapeca) e que vale cerca de um duo-décimo de um avo; quando o mendigo a recebe, sai e vai à porta vizinha repetir o incomodativo bater de paus e assim sucessivamente até completar o circuito.

Diz-se que nada menos que cem mendigos são designados pelo seu rei para a Old China Street (de Cantão), que é ocupada pelas lojas dos comerciantes ricos. Alguns deles arranjam-se com os mendigos, pagando-lhes uma determinada soma para se verem livres do aborrecimento destes barulhentos visitantes; outros recusam-se a fazer isto, e aguentam o barulho tanto quanto a paciência lhes permite a fim de fazer perder tempo ao mendigo que, tendo o direito de visitar todas as lojas, deseja cobrir o maior número delas no decurso do dia e assim poder à noite levar à tesouraria geral o maior número de sapecas. Os mendigos organizados têm as suas próprias instituições de beneficência, que olham pelos velhos, doentes e necessitados.

O estrangeiro dificilmente pode calcular o número destes bem disciplinados sujeitos, mas devem ser muitíssimos a julgar pelas multidões que infestam aquelas partes da cidade de Cantão acessíveis aos estrangeiros.

26 - Rapaz com cesto.

27 - Colector de lixo e pescador.

Cada cidade tem as suas leis com respeito aos mendigos. Em Cantão há quatro associações principais de beneficência: uma para as viúvas, outra para as crianças engeitadas, a terceira para fornecer caixões aos parentes mortos de famílias indigentes e a quarta para os vadios. Mas são tão mal administradas que correspondem mal ao objectivo para que foram instituídas, pois acontece geralmente na China, como também nos países cristãos, que aqueles que estão à frente destas instituições procuram abotoar-se com as receitas, tornando-se assim ricos no ofício de cuidar dos pobres. Não se sabe se o roubar é uma das reconhecidas funções dos pobres ou não, mas é de todo evidente que eles podem lançar, e lançam de facto, as mãos com grande habilidade a somas ocasionais, no que se mostram tão grandes adeptos como os mais consumados carteiristas em qualquer parte do mundo".

Banda

28 - Crianças chinesas

Página seguinte Mulher chinesa da classe alta, com criada (c.1868). Exibe o "lótus de ouro", pé atrofiadíssimo que era apertado com várias faixas, obrigando os dedos a dobrarem-se sob a planta do pé. Foto atribuída a John Thomson. (In "The face of China / As seen by Photographers and Travelers/1860-1912", Ed. Aperture lnc., catálogo da exposição do Philadelphia Museum of Art,1978).

NOTAS

(1) Perry enganou-se: em Macau nunca houve Inquisição.

(2) Isto é pura fantasia.

(3) Chamava-se "D. Maria II" e não D. João.

(4) Foi o dia 29 de Outubro de 1850, em que se celebrava o aniversário natalício de D. Fernando de Saxe-Coburgo e Gotha, que em 1836 casara com a rainha D. Maria II, ficando de Príncipe Consorte.

(5) A convenção Anglo-americana de 1818 estabeleceu uma ocupação conjunta durante 10 anos do território em litígio de Oregon. Em 1844 intensificou-se a fricção entre os dois países que reclamavam a posse de Oregon. Devido a essas fricções entre a Inglaterra e a América, a estação naval americana passou de H. K. para Macau.

(6) Várias nações tinham cônsules em Cantão, tendo também residências em Macau. A França, para realçar o seu prestígio, dava ao seu representante a categoria de ministro. Um seu filhinho faleceu em Macau e acha-se sepultado no Cemitério de S. Miguel, sob o n.° 66 com esta inscrição: Auguste François Isidore de Bourboulon, né à Macao le 4 Mars 1852, mort à Macao le 5 Octobre 1852.

(7) Não era americana, mas escocesa e chamava-se Kate MacLeod; era sobrinha de Mme. Calderon de la Barca, esposa do ministro de Espanha nos Estados Unidos.

Bourboulon casou com ela a 17 de Março de 1851, três semanas depois de ser nomeado ministro da China.

(8) Isidoro Francisco Guimarães, Visconde da Praia Grande, governador de Macau de 13-9-1851 a 30-1-1863..

(9) Pedro José da Silva Loureiro, 1° Ten. da Marinha e Cap. do Porto de Macau, n.° 29-6-1792 na ilha de S. Miguel, m. 16-9-1855 em Macau, era filho de José da Silva Loureiro e de Genoveva Rosa Loureiro; casou aqui, a 12-4-1826 com Ana Rosa Inocência de Almeida, n.° 28-12-1810, filha de Luís João de Almeida e de Joaquim Vieira Pereira. Foi ele que construiu em 1847 um forte na Taipa, sendo louvado pelo governador Ferreira do Amaral por essa obra. O Regulamento do Porto de Macau foi elaborado por uma comissão, nomeada em 14-3-1851, de que faziam parte o com. da Estação Naval, Isidoro Francisco Guimarães, o Cap. dos Portos Pedro Loureiro e o comerciante José Vicente Jorge.

(10) Não era Sir George, mas Sir Samuel Bonham, governador de Hong Kong.

(11) Chamava-se James Summers e era professor da Escola Colonial dos Capelões de Hong Kong.

(12) Perry era protestante e, como tal, não acreditava que Cristo está na Hóstia consagrada.

(13) Os hongs eram as feitoriais estrangeiras, havendo 13 em Cantão.

(14) Thomas Hood (1799-1845) era poeta inglês que compôs inúmeras poesias humorísticas e é único no seu género. As suas obras mais conhecidas são: The Song of The Shirt, The dream of Eugene Aran e The Bridge of Sighs.

(15) Peter Parken, médico americano que exerceu clínica em Macau e Cantão.

* Laureado historiador de Macau, da presença de Portugal e da Igreja no Oriente, com mais de uma centena de títulos publicados. Membro de várias associações e instituições internacionais, v. g. a Associação Internacional dos Historiadores da Ásia. Grande Colar e Sócio da Academia Portuguesa de História.

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