Ethnos

A famosa Pedra Cordial de Goa ou de Gaspar António

Ana Maria Amaro*

De grande renome que vinha já dos tempos antigos, não só da tradição médica grega como também da árabe, as pedras cordiais gozaram em Portugal de grande popularidade, principalmente nos séculos XVI a XVIII, como cardiotónico e também para tratamento das febres ardentes, pestes e outras moléstias tidas por venenosas.

De acordo com o seu nome, as pedras cordiais deveriam ser remédios específicos contra doenças cardíacas, uma vez que cordial, segundo Plínio, era um remedium cordi utile, cordi conveniens, cordi auxilians (1). Por extensão, ter-se-ia passado a usá-las em casos de sustos e sobressaltos e contra palpitações. A semântica nada nos diz, porém, acerca das propriedades de alexifármaco atribuídas também às pedras cordiais.

Os remédios usados nos séculos XVII e XVIII contra a acção de qualquer tipo de venenos eram os chamados besoárticos, cujo nome deriva de pedra bazar, medicamento utilizado, por excelência, contra peçonhas (2). Segundo é nossa opinião, as ditas pedras bazar devem ter sido as primeiras pedras cordiais utilizadas em medicina pelos povos do Médio Oriente e dali introduzidas, posteriormente, na Eu-ropa pelos árabes.

Bezoar, bezar, bazar, pedra bezoar, pedra bazar, pedra pazar e pedra de bazar (boazar ou vazar) são as diferentes formas que aparecem nos escritos dos séculos XVI e XVII para designar a mesma espécie medicamentosa, muito popular no Oriente, e que consistia numa concreção calculosa formada no estômago das cabras bezoar (Capra algagrus Gm.), em capas concêntricas, em torno dum resíduo de palha ou de certa erva medicinal que lhes servia de pasto. Usava-se, reduzida a pó, contra todas as doenças venenosas e contagiosas, como sudorífero, cardíaco e litrontípico, e sendo tão amigo do coração que todos os remédios cardíacos se passaram a chamar, por analogia, bezoárticos.

Ao que hoje se admite, teria sido da palavra pazar, que teria derivado o nome de bazar, pelo qual este medicamento era conhecido pelos persas, árabes e coraçones. A etimologia correcta parece ser, porém, a palavra persa pa-zahar, que significa contra-veneno, nome dado à substância, a partir das suas principais propriedades. Por corruptela, muitos teriam passado a chamar à pedra pa-zahar, belzoar e bazar tornando-se vulgar em Goa o nome de pedra-bazar, o que correspondia à praça do mercado, onde tal medicamento se vendia. Ignorando a terminologia original, fácil é de compreender que tivesse sido este o nome mais popular na Índia e aquele que os portugueses difundiram.

Mestre Afonso, cirurgião que, no século XVI, fez a viagem de retorno da Índia a Portugal, refer--se à pedra-bazar que se usava reduzida a pó, dando-se 2 ou 3 grãos (3) numa colher de água de rosas, aos doentes.

Garcia d'Orta, precursor dos estudos de Patologia Exótica, em 1563 (Col. 45, p. 23), e Cristóvão da Costa, em 1588 (Cap. XVI - Tradição de las Drogas y Medicinas de las Indias Orientalles), também se referiram à popularidade desta pedra no Oriente, afirmando este último que, no seu tempo, era tida em Goa como o mais universal prestantíssimo antídoto contra todos os venenos, tanto em uso interno como externo.

Naquela altura, vendiam-se pedras bezoar de várias formas, tamanhos e cores, muitas delas artificiais, falsificações das verdadeiras, que eram muito caras e tidas por prodigiosas (4).

De acordo com Cristóvão da Costa, atrás citado, já em meados do século XVI, havia em Goa quem falsificasse pedras bezoar, utilizando barro, cal de conchas de ostra (chunambo), sangue seco e pedras bezoares verdadeiras de pequeno tamanho (e por isso de menor preço), tudo bem moído, e de tal forma que pareciam, realmente, verdadeiras.

A poderosa Companhia de Jesus, que dominou o pensamento científico em Portugal durante cerca de dois séculos, não poderia deixar de integrar nas suas missões religiosas, como fonte de prestígio e modo de introdução da sua doutrina, tanto na casa dos pobres como na dos ricos, a preparação dos remédios e a assistência na doença. Ficaram famosos muitos dos seus medicamentos, embora os religiosos dessem às suas curas um cariz milagroso, fazendo-as sempre com a presença das relíquias do seu patrono, água benta e o sinal da cruz. (5)

Onde estabelecia um Colégio, a Companhia de Jesus estabelecia uma botica bem apetrechada; e os medicamentos da terra e as formas de curar indígenas mereciam o mais aprofundado e aturado estudo dos seus especialistas, muitos dos quais honraram a sua Ordem, ficando inscritos na História das Ciências Naturais, não só portuguesa mas universal.

Criaram-se, assim, nas boticas dos jesuítas, diversos medicamentos novos que constituíam segredo, porque, na medida em que obravam curas, proporcionavam boa receita para a Ordem. Um dos mais famosos, de que se importavam em Lisboa, todos os anos, muitas arrobas (6) era a pedra cordial composta do Colégio de São Paulo de Goa. A pedra tinha tal fama e, por isso, tal valor económico, que passou a ser, por sua vez, imitada, ou melhor, falsificada, por boticários de Goa que dali a exportavam para o Reino. Este facto lesava os padres da Companhia de Jesus, que detinham o segredo da receita autêntica e daí o seu monopólio.

Na sequência da queixa apresentada ao Rei por aqueles eclesiásticos, foi determinado por Carta Régia enviada ao Governador da Índia, em 1675, que não fossem exportadas senão as autênticas, atendendo a que os mais boticários as faziam sem ciência dos materiais e sem os ingredientes necessários de que se compunham.

Por ter mostrado, porém, a experiência, que tal proibição não evitava as especulações e que o envio de pedras falsas para Lisboa continuava, o Rei, por nova Carta Régia datada de 21 de Março de 1691, dirigida ao Governador da Índia, advertia que mandava passar provisão para que o provedor da Casa da Índia não consinta que se despachem n'ella as ditas pedras sem virem com certidão de como foram obradas pelo boticário de S. Paulo (...), e ordenava que as que de novo se obrarem serão com diferente forma para se poderem conhecer das outras, que se tinham falsificado.

A Casa da Índia passou, assim, a receber apenas tais pedras quando acompanhadas de certificado de autenticidade.

Da pedra cordial de Goa, altamente conceituada, fazia-se consumo enorme, não só no Reino mas em vários pontos do mundo, nomeadamente nas cidades onde os jesuítas tinham Colégios. Macau, cuja ligação com Goa foi sempre muito estreita, não poderia ter sido excepção. De facto, a pedra cordial de Goa tinha ali tanta popularidade que, ainda nos nossos dias, conhecemos macaenses que continuam a conservá-la e a utilizá-la.

O médico John Freyer (7), que visitou Goa em 1675, registou que os Paulistas (jesuítas) possuíam ali o mais vasto de todos os conventos com o título de S. Roque (vulgarmente de S. Paulo o Novo) registando: há nele uma livraria, um hospital e uma botica bem provida de mézinhas onde Gaspar António, florentino, irmão leigo da Companhia e autor das pedras de Goa, granjeia, para a Casa, cada ano, 50 mil xerafins, com este invento. É já velho e quase cego e é havido em grande estimação por sua longa prática de medicina e por isso chamado para todas as principais pessoas da Cidade (8). Por esta descrição pode inferir-se que a pedra cordial data de meados do século XVII, tendo chegado assim a sobreviver três séculos em Macau. No século XVIII era tão popular e tida em tal consideração naquele território, que foram incluídas 5 pedras no total de duas onças, no saguate enviado pelos moradores ao Imperador da China, em 1714 (9). O valor destas pedras era, realmente, muito elevado naquela altura: 20 onças destas pedras custavam, sensivelmente, o mesmo que 10 varas de galão de ouro (10).

De facto, parece ser em Goa e em Macau que a pedra cordial de Gaspar António tem a mais longa vida da sua história. A crença nas suas virtudes venceu as inovações de três séculos, tal como sucedeu a muitas mezinhas de casa, algumas delas de inspiração nitidamente hibridada.

As pedras que chegaram aos nossos dias têm a forma de prisma quadrangular e são revestidas de folhas de prata ou ouro, sendo o seu pó alvíssimo e praticamente insípido, levemente adocicado ou com sabor a barro.

Como se disse atrás, a receita da pedra cordial de Goa era uma receita de segredo.

Por morte do irmão Gaspar António, esta receita passou para o padre Jorge Ungarate, que a transmitiu a outros farmacêuticos que se lhe sucederam na Botica do Colégio de Goa.

Quando, em 1759, a Companhia de Jesus foi expulsa do território português, o segredo da receita da pedra cordial foi cedido aos padres Capuchos do Convento da Madre de Deus de Goa, em cuja botica, então, se continuaram a preparar até 1835, quando os conventos foram, por sua vez, também extintos. Nessa data, o segredo ficou na posse do padre Frei Manuel do Carmo Pacheco, que fora Provincial dos referidos Capuchos.

A prodigiosa pedra continuou a preparar-se sob a sua orientação até à data da sua morte, no extinto Convento de São Francisco de Goa, de que era administrador. O segredo passou para um seu amigo leigo que, ainda em 1868, preparava as pedras cordiais e as remetia para Macau onde continuavam a ter bom mercado (11).

Depois desta data, a pista da receita perdeu-se e se, nos princípios do século XX, os macaenses ainda utilizavam com grande frequência a pedra de Goa ou pedra cordial, pelo menos depois da Guerra do Pacífico, com a onda de modernização que varreu muitas das genuínas tradições dos filhos da terra (12), tal medicamento, ao que nos foi dito, deixou de vender-se em Macau e também de poder adquirir-se em Goa. Guardadas ficaram as pedras que restavam, para serem usadas só em ocasiões de extrema necessidade: debilidade cardíaca num moribundo e convulsões ou outras enfermidades ligeiras das crianças, cuja causa presumível era considerada o susto. Ainda hoje, como já se disse, há quem as tenha e quem as use, considerando-as com valor terapêutico. Mas a verdade é que este uso está praticamente abandonado, até porque as próprias pedras são já muito raras e a juventude não acredita nas suas virtudes.

Por deferência do Rev. P.e António Leite S. J. obtivemos a reprodução microfilmada dum precioso manuscrito do Arquivo da Companhia de Jesus em Roma, manuscrito citado pelo Rev. P.e Serafim Leite S. J. (13) na sua monumental obra sobre a Companhia de Jesus no Brasil.

Compulsando tal manuscrito, de que consta vasto receituário, do mais famoso da época, que se manipulava nas Boticas dos grandes Colégios da Companhia de Jesus, copiado em 1766 por um membro da Companhia, provavelmente padre ou irmão, médico ou boticário, que não nos foi possível identificar, deparamos com duas versões da preparação da pedra cordial, acrescida duma terceira muito semelhante, chamada pedra bazar artificial da Botica do Colégio de Macau. As três receitas preparavam-se da mesma maneira, com vários simples idênticos de origem mineral, triturados ao gosto da mais actualizada corrente medicamentosa da época.

Este facto vem em apoio da nossa tese de que a pedra cordial de Gaspar António era, por assim dizer, uma reprodução artificial da pedra de bazar ou bezoar muito popular em Goa no século XVI. Aliás, a forma popular em Macau ainda nos nossos dias é cilíndrica ou prismática, alongada, lembrando um pau de giz dourado que, segundo Garcia d'Orta, era uma das formas mais frequentes da pedra bazar, em Goa, no seu tempo.

Analisemos o receituário autêntico e comparêmo-lo com o que foi divulgado pelas farmacopeias do século XVIII. Da Pharmacopea Tubalense (1735) consta, a páginas 310-311 (14), a seguinte receita, citando a Pharmacopea Bateana, p. 133 (15).

A receita autêntica, que consta do livro manuscrito do Arquivo da Companhia de Jesus em Roma, é, porém, a seguinte: Pedras cordiais chamadas comummente de Gaspar António do Colégio de S. Paulo de Goa (cf. fac-simile):

Re. Aljôfar

Almíscar

Âmbar griz

Coral vermelho

Coral branco

Esmeraldas

Línguas de S. Paulo

Topázios

Terra branca de S. Paulo

Rubins

Pedra de Cananor

Jacintos

Ponta de veado queimada

Safiras

Pedra bazar Oriental

Pharmacopea Tubalense (fac-simile, pág.310).

Far-se-ão do seguinte modo:

Pisam-se um a um. Depois juntam-se os símplices atrás descritos já moídos e moem-se de novo no almofariz com água de flor de laranjeira e estando bem preparado secam-se à sombra e guardam-se durante 6 meses a 1 ano, para fazer boa fermentação. Pode guardar-se, menos a pedra bazar, o âmbar e o almíscar.

Esta massa fermentada e seca torna-se a moer na pedra com água de flor ou qualquer outra água aromática, ajuntando-lhe a metade da pedra bazar feita em pó subtilíssimo e bem misturado se formem globos como de antes e se põe a secar e a fermentar à sombra e estando secos se tornem a preparar na pedra com qualquer água aromática e estando a massa em boa consistência se forma as pedras de figura oval de peso (meia onça) ou de (uma onça) ou de (duas onças) ou da grandeza que se quizer e se põe à sombra a secar. Toma-se então a outra metade da pedra bazar, âmbar e almíscar feito tudo em pó mais subtil que puder ser deitam-se em gral de marfim ou de pedra com água de flor e faz-se uma massa muito branda e então se tomam as pedras que devem estar secas ou quase secas e com um pincel se irá pondo por fora esta mistura em camadas sucessivas até ela se gastar. Novamente se põe à sombra. Há pedras destas incompletas ou sem cheiro que se fazem da mesma maneira mas não levam âmbar nem almíscar. Devem fazer-se em tempo em que fação ventos secos porque de outra sorte se abrirão em rachas e o mesmo sucederá se as massas não tiverem sido bem fermentadas. 2a versão (constante do mesmo manuscrito): Pedras de Gaspar António reformadas da Botica do Colégio de Goa: Re. Almíscar Âmbar Aljôfar Jacintos Topázios Safira Esmeraldas Rubins Coral vermelho Coral branco Pedra Bazar Oriental Pedra de Cananor Terra de Malta Corno de cervo Faz-se como na antecedente e tem a mesma virtude. 3a versão: Pedra Bazar Artificial da Botica do Colégio de Macau: Re. Âmbar Almíscar Cânfora Ispódio Topázios Safira Rubins Esmeraldas Granadas Bolo arménio Terra sigillada Corno de cervo Raspas de unicónio Raspas de marfim Olhos de caranguejo Coral vermelho Coral branco Aljôfar Pedra bazar oriental. Pedras redondas. Fazem-se como as anteriores. Para que servem: Tomam-se 10 grãos de trigo contra febres malignas ou ardentes com sede, mitiga a sede e alegra o coração e desterra os vapores malignos. Pode dar-se com água destilada de língua de vaca (16) ou outra. Como pode depreender-se da análise destas receitas de segredo, também na Botica de Macau se fabricava a pedra cordial de Goa, juntando-se-lhe como aditivos raspas de unicórnio e cânfora, entre outros, talvez por influência da medicina chinesa e dispensando-se a pedra de Cananor. Aliás, entre as duas receitas de pedra cordial preparadas em Goa nota-se, também, uma pequena diferença, porque, da segunda, não constam as ditas línguas de S. Paulo, provavelmente difíceis de adquirir ou caídas em desuso e menciona-se a terra de Malta em lugar de terra de S. Paulo, nomes que, aliás, se referem ao mesmo símplice. Quanto à receita registada na Pharmacopea Tubalense, pode verificar-se que já nesta se fala nas folhinhas de ouro, que não constam das receitas originais, omitindo-se a terra de Malta, as línguas de S. Paulo, o coral branco e o vermelho e ainda a ponta de veado. Além disso, o modo de preparação é assaz diferente, porquanto na receita publicada se preconiza o uso da mucilagem de alcatira como aglutinante e o dente de javali para brunir a preparação depois de seca. Sendo a cópia das receitas originais feita em 1766, pouco depois de explusos os jesuítas dos seus colégios portugueses, e transcrevendo a Pharmacopea Tubalense em 1735 uma receita publicada na Pharmacopea Bateana em 1713, não nos parece que se trate de uma receita alterada pelos seus preparadores mas sim de uma mera presunção da receita original, talvez parcialmente divulgada, mas que continuava a manter-se secreta. Pode suceder também que esta receita registada na Pharmacopea Tubalense corresponda a uma das pedras de Goa ali falsificadas e que eram exportadas imitando as verdadeiras, da Botica dos jesuítas, como atrás ficou exposto. O que é certo é que as folhinhas de ouro, que ainda se podem ver nas pedras que chegaram aos nossos dias, não são mencionadas na receita original servindo, provavelmente, apenas para envólucro atraente e valorativo ou, ainda, tendo sido a forma escolhida para as diferençar das falsificadas quando o Rei de Portugal, em 1691, mandou que algo fosse feito nesse sentido. Aliás, o facto de termos visto em Macau pedras já sem este envólucro e constar ter havido ali, outras, envolvidas em folhas de prata, parece apontar para diferentes preços ou categorias, se não mesmo origens de fabrico, e assim a sua diversificação de usos por classes sociais detentoras de diversos poderes de compra. Se tal se verificou alguma vez não nos foi possível, porém, comprová-lo. As pessoas de diferentes classes sociais que possuíam, em Macau a pedra cordial de Goa nos anos 60-70, apenas usavam a que era revestida de folhas de ouro. Numa das amostras, aliás, este revestimento era apenas pontual e noutra nem se notava já, talvez devido ao muito uso, uma vez que se tratava de um pedaço muito pequeno e antigo. Analisemos, pormenorizadamente, os componentes das três receitas atrás descritas para tentarmos tirar algumas conclusões acerca do seu valor terapêutico e simbólico. Seguiremos a ordem dos símplices indicados nas receitas: 1 - Aljôfar ou aljôfares - pérolas miúdas. Et. do árabe júlfar. São concreções em forma de pequenas esférulas, geralmente de cor branca, levemente prateada. Em farmacopeia, o mesmo produto aparece confundido sob os nomes de nácar, madre-pérola (17) e aljôfar.
(Ms. Arqo. Ca de Jesus, Roma)

As pérolas verdadeiras são produzidas por secreções de defesa contra corpos estranhos, possivelmente parasitas, por moluscos lamelibrânquios do género Margaritífera (nome derivado do latim - margarita) que compreende cerca de 30 espécies. São ricas em cálcio.

A recolha de pérolas nos séculos XVII e XVIII fazia-se, principalmente, no Golfo Pérsico, Costa de Ceilão, Japão, Ilha de Baharem, Mar de Pegú e em várias partes da China. No Ocidente recolhiam-se no Golfo do México e de uma maneira geral nas chamadas Índias Ocidentais.

Várias eram as crenças mais ou menos ingénuas acerca da origem das pérolas. Segundo Plínio congelavão do rocio que as ostras pela manhã recebião abrindo para isto as bocas. Outros supunham serem ovos das ostras.

A tradição oriental, por seu lado, considerava-as frutos da faísca eléctrica - união dos elementos fogo e água.

As pérolas mais estimadas eram as orientais e, destas, as maiores, redondas, brancas e transparentes. Na Medicina só se gastavam as miúdas, a que se chama aljôfar ou semente de pérolas pela sua pequenez. Segundo as antigas farmacopeias registaram, deviam eleger-se as mais brancas, transparentes, claras e sem impurezas. As pérolas orientais eram consideradas cordiais e próprias para resistir ao veneno, reparar as forças e purificar o sangue, destruindo e desfazendo todos os ácidos, melhor que qualquer outra matéria alcalina, pelo que serviam de grande alívio nas hemorragias de câmaras e semelhantes enfermidades, em doses de 1/2 a 2 escrópulos (18), reduzidas a pó subtilíssimo.

O aljôfar era, às vezes, adulterado com ponta de veado queimada ou qualquer outro osso calcinado. Podia verificar-se essa adulteração pelo fogo. Se os pós branqueassem mais, estavam adulterados, se mudassem de cor não o estavam. As adulterações, no entanto, eram muito frequentes nos séculos XVII e XVIII, para tornar maiores os lucros.

A pérola é um exemplo dum fenómeno de degradação dum simbolismo inicialmente metafísico que, de símbolo cosmogónico, rico em forças sagradas benfeitoras, se tornou num elemento decorativo, que passou a apreciar-se apenas do ponto de vista estético e económico (19).

Esta transformação, porém, foi feita por etapas. Na medicina, por exemplo, tanto oriental como ocidental, a pérola deve ser usada contra hemorragias, mas também usada contra os espíritos demoníacos e contra a loucura (20). Na Índia, o célebre médico indiano Suçruta já usava a pérola no seu receituário. Nazahari, médico em Kashmil cerca do ano 1240, escreveu também que a pérola cura osmales dos olhos, que é um antídoto eficaz em casos de envenenamento, que cura tísica e que assegura a força e a saúde (21).

O Harschacarîta lembra que a pérola nasce das lágrimas do deus do mar (o que era considerado a fonte da ambrósia eternamente curativa). Mais ainda considera este símplice como antídoto contra todos os envenenamentos (22).

Na China as pérolas virgens, não perfuradas, eram usadas como medicamento universal contra todas as doenças oculares, o mesmo acontecendo entre os árabes.

A partir do século VIII difundiu-se o seu uso, também, na medicina europeia. Foram feitos vários ensaios e diferentes autores referiram-se à pérola como um bom remédio contra loucura e epilepsia, considerando-a outros eficaz para fortalecer o coração e tratar a melancolia. O próprio Francis Bacon incluiu-a no grupo das drogas da longa vida.

É possível que a influência da pérola na medicina derive do seu antigo papel religioso e mágico. De facto, tendo sido emblema de força aquática geradora, não surpreende que tenha sido adoptada, posteriormente, como tónico geral e afrodisíaco e ao mesmo tempo usada contra a loucura e a melancolia, doenças consideradas de influência lunar e por isso sensíveis a um emblema da água e da mulher.

O valor mágico e a origem cosmogónica da pérola eram já conhecidos na Índia nos tempos védicos. A medicina chinesa, por seu turno, considerava este símplice um bom remédio em ginecologia devido às suas supostas propriedades fertilizantes.

O seu uso no tratamento oftálmico e como antídoto contra todos os venenos parece ser resultante da relação mítica pérola-serpente, relação que sobreviveu, por exemplo, no pensamento popular chinês que associa o dragão (sucedâneo de serpente) à pérola, considerando-a uma porção da sua saliva (23). Aliás, em muitos pontos da Terra considerava-se que, nas cabeças das serpentes ou nas goelas dos dragões, existiam as mais diversas pedras preciosas; entre elas as pérolas (24). Na charneira da medicina e da magia, a pérola parece, afinal, ter desempenhado durante muito tempo um papel ambíguo, tanto no Oriente como no Ocidente.

2 - Almíscar - (termo antigo do baixo lat. muscus; de or. persa) substância muito odorífera contida numa bolsa situada no baixo ventre do mamí-fero Moscus moschiferus, L., animal conhecido vulgarmente por almiscareiro ou cabra almiscarada.

Pedra Cordial, ainda hoje conservada como relíquia por uma família macaense.

Enquanto fresco, o almíscar é líquido, de consistência semelhante ao mel, avermelhado-escuro, de cheiro característico, extremamente forte. Depois de seco é castanho escuro, untuoso, e apresenta-se em pequenos grânulos irregulares, variando de dimensões entre a cabeça de um alfinete e uma ervilha pequena.

As principais variedades comerciais de almíscar são:

- Almíscar da China ou almíscar de Tonquim - escuro e de cheiro forte.

- Almíscar de Yun-Nam - granuloso, de cheiro forte e extremamente fino.

- Almíscar de Assam ou de Bengala - muito viscoso e forte.

- Almíscar da Rússia ou da Sibéria, da Tartária, ou almíscar kobardin - menos escuro, fibroso e de cheiro penetrante.

Aetius, médico árabe, foi o primeiro a chamar a atenção para o almíscar que considerava possuir propriedades anti-espasmódicas, estimulantes e emenagogas.

O almíscar, na antiga farmacopeia ocidental, era considerado atenuante, dessecante, cordial, alexifármaco e espirituoso. Fortifica o coração e o cérebro, restabelece as forças perdidas, é afrodisíaco e faz expulsar os flatos. Também um grão nos ouvidos, envolto em algodão, serve para tratar a surdez (25). Usava-se em doses de 1 a 4 grãos.

3 - Âmbar ou Âmbre - (do lat. mediev. ambar, do árabe, anbar) também conhecido por alambre ou âmbar fóssil. É uma substância resinosa e aromática que tem a consistência da cera.

O âmbar amarelo aparece nos túmulos neolíticos e da Idade do Bronze, na Dinamarca, Grã-Bretanha, Alemanha e Itália, principalmente em forma de pérolas.

Tácito registou que o âmbar vinha do Norte da Germânia servindo para trocas com as populações do Báltico, o que comprova o seu uso muito antigo na Europa.

O âmbar fóssil do Báltico (duro e resinsoo) é a resina de Pinus succinifer, L., que data do Terciário e que contém mais de 2.000 espécies de insectos fossilizados e perfeitamente conservados.

O âmbar cinzento ou âmbar griz é formado nos intestinos dos cachalotes (da espécie Physter macrocephalus) (26) e é constituído pela matéria negra que segregam os cefalópodes de que os cachalotes se alimentam. Essas concreções de 500 g. a 10 kg. são muito procuradas pelos perfumistas.

O âmbar cinzento é composto por uma substância gorda - a ambarina. Encontra-se nas costas de Madagáscar, Japão, Coromandel, etc..

Era dantes muito falsificado por ser um produto muito caro.

Na sua forma farmacêutica o mais vulgar era o chamado cachunde, pastilhas aromáticas cujo elemento essencial era o âmbar amarelo (resinas fósseis) ou cinzento (originário dos intestinos dos cachalotes).

Em medicina era, noutros tempos, usado como estomáquico, afrodisíaco e anti-espasmódico, em pó ou em tintura.

Garcia d'Orta (século XVI), no seu Col. III, segundo o Conde de Ficalho (ed. comentada dos Colóquios de Garcia d'Orta) não explicou bem a natureza do âmbar, que descreveu. Devia, pois, ser ainda mal conhecido no seu tempo.

António Nunes (Livro dos Pesos) fala do comércio desta droga no Oriente. Tomé Pires (1516) também fala das drogas negociadas em Goa e cita os alanberees que não há na India, mas não diz de que droga se trata.

4 e 5 - Coral branco e vermelho - os corais são Celenterados que segregam formações calcárias onde se abrigam os pólipos. Estes corais hermatípicos que chegam a constituir ilhas e atóis são, geralmente, vermelhos e, mais raramente, rosados e brancos.

Nos antigos tempos julgava-se, no Ocidente, que o coral era uma planta submarina, saída da cabeça da Medusa e por isso com certas virtudes mitológicas: defendia as casas e os homens contra os raios, afugentava as desgraças e secava o sangue das feridas. Admitia-se, ainda, que o coral se tornava mais vermelho quando era transportado por um homem, empalidecendo quando usado por uma mulher. De há muito que foi usado em jóias, sendo, em certos pontos da Terra, considerado um símbolo de prestígio e de fortuna. É o caso da China onde o coral é um emblema de riqueza e de prestígio social.

Em medicina também, devido talvez à sua suposta origem transcendente e à sua cor, de há muito que é usado pelos chineses na preparação de mezinhas constando, também, da farmacopeia ocidental.

Além das virtudes do coral como fármaco transcrevemos o que regista a Pharmacopea Tubalense (27):

"Pharmacopea Tubalense Chimico-Galenica".

6 - Esmeralda - dantes também conhecida por smaragdus, é uma pedra preciosa verde, diáfana, brilhante e da dureza do cristal de rocha.

Há duas espécies de esmeraldas: as orientais e as ocidentais; as Orientaes são mais duras, mais fermosas e mais estimadas que as Occidentaes e se nos trazem das Indias Orientaes (...) (Ph. Tubalense p. 306).

As esmeraldas orientais eram consideradas as melhores em medicina, embora se gastasse tanto de umas como de outras na preparação dos remédios. Eram preferidas as de melhor qualidade e com pouca roca ou pedra branca que sucede estarem pegadas. Na altura, os comerciantes pouco escrupulosos vendiam-nas misturadas com vidro verde e por isso chamava-se a atenção dos boticários para a necessidade de as não usarem nas suas preparações sem se assegurarem da sua autenticidade.

Às esmeraldas atribuía-se, ainda no século XVII1, a virtude de resistir ao veneno, de curar a epilepsia e abreviar o parto. Eram consideradas absorventes, e dulçorantes dos saes aereos, capazes de deterem as câmaras, as hemorragias e adoçarem os ácidos estomacais. A dose a utilizar, em pós muito finos, era de 1/2 escrópulo a 1/2 oitava.

Do ponto de vista mineralógico, a esmeralda do Ocidente é uma variedade de berílio que ocorre nos granitos. A esmeralda oriental (dureza 9) é uma variedade de corindo (sexquióxido de alumínio) e ocorre nas aluviões em certas regiões do Oriente, especialmente na Ilha de Ceilão.

Na terapêutica tradicional do Oriente, que passou à Europa, as pedras preciosas e os minerais raros ocupavam lugar de grande relevo. Quer trazidos pelos doentes, como amuleto, quer reduzidos a pó, eram usados contra certas doenças, nomeadamente antrazes e carbúnculos. Admitia-se, já em pleno século XVIII, que a esmeralda gozava da propriedade de absorver todo o veneno como se fosse uma ventosa (C. Semmedo, Polyanthea (...), 1727). Ainda segundo a mesma fonte, reduzida a pó e ingerida era usada contra o veneno pestilento.

Considerava-se ainda que uma esmeralda fina, oriental, trazida ao pescoço dava sorte, trazida no ventre tinha a virtude de impedir os "movitos", isto é, era anti-abortiva. Cria-se, também, que e-meraldas, outras pedras preciosas e corais não deviam ser moídos em almofariz metálico pois recebiam a sua maldade.

7 - Línguas de São Paulo - eram pedras com o feitio de línguas de pássaro, de cor parda, declinante às azeitonas de Elvas. O seu nome advém de se encontrarem na Ilha de Malta cuja terra foi benta por São Paulo aquando aí arribou, em consequência de uma tempestade, segundo reza a tradição. Há línguas de São Paulo de diferentes tamanhos sendo muito estimada a sua virtude contra as febres, principalmente contra as febres malignas porque, red-zidas a pó subtil mitigavam o calor febril, aliviavam as ânsias e por vezes provocavam a sudação. Também lhes era atribuída grande virtude contra o veneno, o que a experiência confirmara, segundo regista a Ph. Tubalense (p. 308). Pedras do mesmo tipo existiam também na Prayha de Casomdansu no Reino de Angola, segundo a mesma fonte. Seriam cristais de olivina? Não nos foi possível confirmar esta suposição.

8 - Topázio, topacio ou topacius - (do lat. topazus; do gr. topazos) é, do ponto de vista mineralógico, o chamado crisólito (fluorossilicato de alumínio - ([Si04 Fl2] A12). É uma pedra preciosa diáfana amarelo-esverdeada, brilhante com rayos doirados e esverdeados, de menor dureza do que as outras pedras preciosas porque a lima, a pule e gasta. Ocorre em ganga de quartzo e aliada à turmalina.

Há, tal como no caso das esmeraldas, duas es-écies de topázios: a oriental e a ocidental. A primeira (28) era trazida, para a Europa, da Arábia e Etiópia e criava-se nos contornos do Mar Vermelho e a segunda nascia na Bohemia. As orientais são mais duras, mais pesadas, mais transparentes e mais brilhantes. Atribuem-se-lhes as virtudes de serem cordiais, boas contra o veneno e contra a melancolia. No entanto a farmacopeia setecentista considerava-as também dulçorantes e absorventes dos humores accidos e acres, que servem de empedir as câmaras e hemorragias, tomando-as anteriormente em pós subtilíssimos e livigada sobre o porfido (al-mofariz de pórfiro). A dose era de 1/2 escrópulo a 1/2 oitava.

9 - Terra branca de São Paulo - as terras utilizadas em farmacopeia vêm dos mais remotos tempos da medicina, talvez da pré-história, sendo dado o nome de terra bolar a terras argilosas que se empregavam como absorventes, antipútridos e alexifármacos. Um exemplo típico era o Bolo Arménico, Bolo da Arménia ou Bolo Oriental, que era uma argila ocre, vermelha (devido ao óxido de ferro), gordurosa ao tacto, considerada tónica e adstringente e vendida em forma de pequenos pães ou bolos.

A terra lemnia, terra Melitea ou Melia, ou argila lemnia era uma das terras medicinais muito populares na farmacopeia seiscentista. É branca, dura e áspera ao tacto, originária da Ilha de Malta e conhecida, por isso, em latim, por Melita. Era também conhecida por Terra Sancti Pauli, porque dizia-se ter sido abençoada por São Paulo quando uma tempestade o obrigou a arribar àquela ilha.

No antigo Egipto a terra lemnia era, ao que parece, muito estimada como adstringente. Na Europa, porém, só bastante tarde passou a ser usada e, ao que se crê, com reduzida popularidade.

A Ph. Thubalense refere-se à terra lemnia originária da Ilha de Lemnos e à melitenses da Ilha de Malta, incluindo-as no grupo das ditas terras sigiladas ou selladas, terras medicinais que eram vendidas sob a forma de bolos, com um selo ou marca gravados atestando a sua origem e, por isso, a sua autenticidade. Estas terras eram consideradas úteis contra-venenos e utilizadas contra febres pestilentas e demais enfermidades infecciosas (ainda no século XVII consideradas venenosas). No século XVIII, porém, considerava-se já que estes simples apenas serviam como correctores dos humores acres. Curvo Semmedo, por exemplo, considerava o barro vermelho de Estremoz cardiotónico e bezoártico.

10 - Rubins ou rubis - (do lat. mediev. rubinus; e do lat. rubeus) É uma pedra preciosa diáfana, resplandecente, de côr vermelha como sangue, muito brilhante e tão dura que resiste à lima (29). É uma variedade de corindo. Eram considerados como os melhores os rubis da Ilha de Ceilão e também de outras partes das Índias Orientais. Na medicina eram adicionados às confeições cordiais e usados contra o veneno por serem absorventes dos humores acres. Atribuía-se-lhes a virtude de alegrar, de confortar o coração, de restaurar as forças débeis e indicar aos que os trazem as futuras enfermidades. Em pós subtilíssimos usavam-se em doses de 1/2 escrópulo a 1/2 oitava.

Como pode verificar-se, o rubi era também uma pedra que, pelo menos no século XVIII, era usada com finalidades mágicas.

11 - Pedra de Cananor - também chamada pedra nefrítica era um mineral frequentemente importado do Brasil. Segundo Lemery também existia em Espanha, mas a variedade que se considerava melhor era a da Índia Oriental que, daí, era exportada em grandes pedaços; não era muito dura, mas opaca, verde e branca e às vezes de outras cores, semelhante ao talco e untuosa.

A mais verde e mais pesada, untuosa ao tacto e fácil de moer, era a electa na farmacopeia seiscentista. O pó era branco e obtinha-se por trituração seguida de levigação, isto é redução a pó impalpável.

A nefrite de há muito que é considerada, na China, uma pedra de natureza transcendente, mais ou menos confundida com a jadeíte.

Em medicina utilizava-se contra cólicas dos rins e como diurético para expulsar as areias e quebras renais. As doses eram de 1/2 a 2 escrópulos.

12 - Jacinto - do gr. huakinthos, é o nome duma planta (Hyacinthus orientalis L.), nome que deriva do de uma personagem mitológica, de cujo sangue, segundo consta duma antiga lenda, teria brotado esta flor.

Jacinto é, também, o nome de uma pedra preciosa, cuja cor azul-arroxeada lembra a daquelas flores.

Há três tipos de jacintos: o oriental, de cor alaranjada, que vinha de Calecute e de Cambaia, o de Portugal, que arremeda a cor da flor do jacinto (30), não sendo tão duro como o primeiro e o da Boémia, vermelho como escarlata.

O termo é por vezes empregado para designar uma variedade transparente, avermelhada ou castanha de zircão (silicato de zircónio) que é utilizada como gema. O espinel, a granada e o corindo (jacinto oriental) têm também este nome por general-zação. Esteve muito em voga na segunda metade do século XIX.

As variedades mais utilizadas em farmácia eram duas: uma dourada, parecida com o alambre (âmbar), dura e pesada e outra vermelha-amarelada, mais dura e mais pesada do que aquela. As ocidentais têm cores menos fortes do que as orientais que são, pelo contrário, mais densas, de colorido mais forte e mais brilhantes. Eram estas segundas, e destas as mais resplandecentes, as que eram tidas por mais valiosas em terapêutica. Em pós subtilíssimos serviam para dulçorarem e absorverem os humores acres e mordazes, e por isso eram usadas em todas as enfermidades que destes resultavam.

Pharmacopea Bateana (fac-simile, pág.133)

Os antigos tinham-nas por contra-veneno podendo ser úteis nas febres pestilentas, fortificando o coração e curando os acidentes de gota coral e as contusões. As doses usadas eram de 1/2 escrópulo até 2.

13 - Ponta de veado - o chifre de Cervus nipon nipon. Temm. é dos mais estimados na farmacopeia chinesa. No entanto, o Cervus elaphus xanthopygus é também uma espécie cujos chifres são largamente usados desde há muito pelos médicos tradicionais do Império do Meio. É possível que a ponta de veado mencionada nesta receita corresponda a alguma destas pontas de veado chinês ou de veado indiano. Não é de crer que se trate da verdadeira ponta de veado europeu (aliás tão carregada de significado simbólico), uma vez que os padres jesuítas souberam sempre aproveitar todos os recursos medicamentosos locais.

No século XVIII, médicos dos mais eminentes, como o célebre João Curvo Semmedo, admitiam que o chifre de veado tinha a propriedade de adelgaçar o sangue e promover a criculação (31).

14 - Safira ou saphirus -, é uma pedra preciosa, brilhante, diáfana e resplandecente, de cor cerúlea, cuja dureza é aproximadamente a do diamante. As safiras orientais (32) de Ceilão, Calecute, Pegú e Bisnaga eram as mais apreciadas. Destas há dois tipos: safiras de água, brancas, ou de gelo, que lembram o diamante (e algumas se vendem por tal) e outras cerúleas que eram as mais estimadas.

As orientais, mais pesadas, mais azuladas e mais resplandecentes eram, por isso, as preferidas tanto como gema, como em farmacopeia.

Em medicina antiga atribuíam-se às safiras muitas virtudes, tais como a de fortificarem o coração e as demais partes nobres do corpo; purificavam o sangue o resistiam ao veneno dos carbúnculos pestilenciais; eram consideradas dulçorantes dos humores acres e mordazes, etc.. A sua dose, em pós subtilíssimos, era de 1/2 escrópulo a 1/2 oitava.

15 - A pedra bazar ou bezoar, oriental - (Ph. Thub. p. 179) é um produto natural que se acha no ventriculo de hum animal ou cabra sylvestre chamada entre os persas bazar e em latim capri cerva e isto por ter partes parecidas com o cervo e com a cabra. Cria-se nos montes e bosques da Pérsia e Índia Oriental e Malaca, sendo muito ágil. Pomet no seu tratado de drogas (liv. 5, p. 10) publicou o desenho deste animal e a sua descrição. Já atrás fizemos referência a estas pedras, com mais pormenor.

16 - Camphora cânfora ou alcanfora - é um produto que se extrai de diversas árvores do género Cinammonum. Contudo a mais procurada é a originária da China, Formosa, Japão e Cochinchina.

Obtem-se por destilação de todas as partes da planta, seguida de sublimação. É usada em medicina como estimulante no princípio do tratamento, actuando depois como sedativo em casos de bronquite catarral e outras afecções.

É também usada como anti-espasmódico, anti-helmíntico e diaforético. O espírito alcanforado era empregado no tratamento de picadas de insectos e misturado com água usava-se para lavar as narinas e aliviar, assim, os catarros nasais. A espécie das Lauraceae (canforeiras) considerada a mais genuína, é a Cinnamomum camphora Nees.

Esta espécie nativa da Insulíndia (Bornéu e Samatra) é tida por aquela que produz cânfora da melhor qualidade. O produto encontra-se no comércio sob a forma de líquido (água de cânfora ou óleo de cânfora) ou sólido. A cânfora começou a ser utilizada no Extremo Oriente pelos chineses e indianos como remédio e para perfumar as divindades, e também para o fogo de artifício. Foi trazida para a Europa pelos árabes que a adoptaram na sua farmacopeia e para embalsamamento. Foi também usada no Ocidente por ocasião das "grandes pestes", como desinfectante.

A primeira cânfora a ser exportada era a da China: mais abundante e, possivelmente, a mais barata. Admite-se que a cânfora de Bornéu só foi conhecida depois da chegada dos portugueses ao Oriente. Duarte Barbosa referiu-se-lhe como a cânfora para comer que entre os índios é muito estimada.

Garcia d'Orta teve o mérito de descrever as duas maneiras de cânfora (Col. XII). Cita, ainda, Décio de Amidamo como o primeiro autor a no-mear a camfora entre os ingredientes de certos preparados medicinais e referindo-se ao médico árabe Maçudi que também descreveu a cânfora como simples medicinal e afirmando que era mais abundante nos anos de trovoada.

Até ao século XVIII, a cânfora que se usava na Europa, era predominantemente a que era exportada da China e do Japão. No século XVIII, porém, passou a utilizar-se também cânfora de Lauráceas do Brasil e de São Tomé, talvez ali introduzidas pelos portugueses.

17 - Espódio - quanto ao ispódio (espódio ou espodeo) que consta da receita da Botica do Colégio de Macau, não podemos garantir de qual simples se trata, porquanto se conhecem três tipos: o dos antigos gregos, que não era mais do que a tutis (calamina ou óxido de zinco); o dos árabes, que se julga ser a medula duma cana a que chamavam sacar-manbú ou segundo outros, cinzas das raízes de cana da Arábia, substituindo-se, na sua falta, por rosas secas; é o espódio dos modernos, que é o marfim partido em pequenos pedaços calcinados a fogo descoberto até se converterem numa matéria branca, ligeira, porosa e alcalina fácil de reduzir-se a pó. No século XVII usava-se nos unguentos ou emplastros a tutia, nos purgantes as rosas secas e nos cordiais e mais remédios internos o marfim preparado sem fogo, porque pela calcinação, que se lhe faz em fogo aberto se lhe perde o volátil do seu sal e o óleo que tem, ficando somente com um caput mortuum.

O espódio moderno era considerado adstringente e dulcificante dos ácidos, pelo que servia no tratamento das hemorragias, cursos e gonorreias, impedindo que o leite coalhasse no estômago. Era usado em doses de 1/2 a 2 escrópulos, em pó subtilíssimo.

Na composição que vimos a estudar, supomos tratar-se do espódio dos antigos gregos, porque não é de crer que houvesse repetição de simples na mesma receita, que integra também raspas de marfim,

18 - Granadas - (do lat. granatus). São pedras semi-preciosas, vermelhas, lembrando os rubis, embora mais escuras. Também se consideram dois tipos destas pedras: as ocidentais e as orientais. As primeiras são inferiores na cor e quebram-se com facilidade, tendo ainda menor densidade e menor brilho.

As granadas, do ponto de vista mineralógico, constituem um grupo importante de ortossilicatos naturais, que cristalizam no sistema cúbico. Incluem as variedades grossularia (silicato alumino-cálcico); piropo (silicato alumino-magnesiano); almandite (silicato alumino-férrico); espersalite (silicato alumino-mangânico); andradite (silicato essencialmente ferro-cálcico) e urvarovite (silicato cromo-cálcico). As schorlonites são granadas titaníferas.

Em farmacopeia deviam escolher-se as mais rubicundas, as mais transparentes e as mais pesadas, iguais na cor a bagos de romãs bem maduras. Eram consideradas absorventes e dulcificantes do ácido acre dos humores e os antigos atribuíam-lhe poderosa e especial virtude para fortificarem o coração, sendo usadas contra palpitações e para alegrarem e resistirem ao veneno. Em pós subtilíssimos utilizavam-se em doses de 1/2 a 2 escrópulos.

19 - Bolo Arménio Oriental - Bolus orientalis ou arménio. É uma terra parecida com a terra sigillada, argilosa, suave ao tacto, frágil e avermelhada ou amarela, às vezes branca. Dantes exportava-se da Arménia e daí o seu nome. No entanto, encontra-se espalhada pelo mundo. A melhor é a vermelha e que adere à língua. Daqui supormos tratar-se de ocre amarelo ou vermelho. Tanto em uso externo como interno as suas propriedades são iguais às da terra sigillada. Usava-se 1/2 escrópulo a 2 escrópulos de bolo Arménio aplicado, externamente, como anti-hemorrágico e supunha-se que impedia o curso dos humores às partes que padecem.

Analisando-se a receita pode verificar-se uma nova sobreposição de simples. Pensamos, porém, que a terra sigillada integrada na presente receita não fosse o ocre vermelho mas sim uma outra argila qualquer.

20 - Terra sigillada - corresponde à terra de São Paulo e a outras argilas, como atrás ficou exposto. Era exportada com o selo ou marca da origem.

21 - Raspas de unicórnio - o unicórnio é um dos nomes dados à ponta de rinoceronte ou de abada. Os chifres que se vendem sob esta designação são originários da Ásia, da África, do Sião e da China.

Na Europa estes chifres vendiam-se, áinda no século XVIII, sob o nome de unicórnios, nome que perdurou em Macau. Com eles faziam-se vasos muito estimados porque se cria que lançando neles água ou vinho e depois bebendo-se por eles se curavam os efeitos de qualquer veneno. As hastes maiores e mais pesadas, resplandecentes, eram as escolhidas: Ao partirem-se, estilhaçam-se em tiras compridas que, reduzidas a pó, se usam como contra-venenos, para fortalecer o coração e provocar o suor; davam-se nas febres malignas e pestilências, e como sudorífero, em doses de 1/2 escrópulo a 1/2 oitava.

O unicórnio que se vende nas farmácias chinesas de Macau é o chifre de Rhinoceros unicornis L., R. sondaicus Cuv., R. simus Burch. e R. sumatrensis Cuv.. É, aliás, dos simples mais caros que ali se vendem.

22 - Raspas de marfim - raspas de dentes de elefante (Elephas maximus L., Loxodonte africanus Blum).

Do marfim, chamado ebur, devia eleger-se para as poções medicamentosas o mais pesado e branco. Em pó ou em cozimento servia para tratar fluxos de ventre e para corroborar o estômago. Curava, segundo se pensava, helmintíases, dores abdominais, epilepsia, febres, melancolia e outras enfermidades. Empregava-se em composições cordiais.

23 - Olhos de caranguejo - (Ph. Tub. p. 178) os oculi cancri ou lapides cancri são pedúnculos brancos duros e esféricos de diferentes grandezas, dum lado côncavos e do outro orbiculares e lisos semelhantes a um globo ocular, de onde lhes veio o nome. Provém da carapaça do caranguejo, da parte ventral, onde existem aos pares. Os caranguejos que se utilizavam eram caranguejos de rio (33) e, segundo Valentin, a maior quantidade destas pedras era exportada de Brandeburgo (Marqnesado). Segundo Lèmery, eram provenientes das Índias Orientais e Ocidentais tendo sido muito utilizadas na Europa, onde entravam através da Holanda.

Estas pedras caem com as carapaças dos caranguejos e, por isso, na Primavera e no Outono encontram-se soltas nas margens dos rios. Verificavam-se as falsificações pelo pó que deixavam nas caixas e pela maior facilidade em se quebrarem. Eram usadas como dulcificantes dos ácidos praeter-naturais, porque os absorviam e precipitavam, pelo que se administravam contra os ardores de estômago, cólicas de rins e bexiga, febres contínuas, feridas e contusões, câmaras e hemorragias em pós subtilíssimos e em bebidas cordiais, febrífugas, nefríticas, etc. em doses de 1/2 escrópulo até 2.

Principais indicações e posologia das pedras cordiais

Do mesmo livro manuscrito, onde um dos padres ou irmãos da Companhia de Jesus registou as receitas das pedras cordiais de Goa, que ora estudamos, consta também o seu regimento e as suas virtudes, que consideramos igualmente de grande interesse referir.

Regimento e virtudes das pedras cordiais compostas e primeiramente inventadas na Índia pelo Ir. Gaspar António da Companhia de Jesus.

As pedras cordiais que vulgarmente se chamam de Gaspar António, são um misto de várias pedras preciosas, âmbar, almíscar e outros ingredientes, que a larga experiência de seu autor juntou naquele composto. E he hum dos melhores cordiais, que athe agora tem descoberto a medicina.

A quantidade de pedra, que de ordinário se deve tomar, he o peso de 8 athe 10 graoes de trigo, ainda que se tome mais ou menos não prejudica. Desta pedra se pode uzar em qualquer tempo com todo o género de pessoas.

Nas febres malignas ou ardentes, quando o enfermo está com grandes ancias e sede, se lhe pode dar esta pedra em duas onças de agoa ordinária, ou em agoa destillada de língoa de vaca (34), ou em qualquer outra, porque além de mitigar a sede, alegra o coração, e desterra os vapores malígnos.

Na mesma forma se dá, quando a febre começa a declinar, e se o doente fôr fraco, se pode dar vinho brando ou agoado, porque abre os poros e provoca suor. Também serve muito na declinação de todas as mais febres. E se for terçam simples, se dará em agoa de almeirão (35), de azedas (36) ou de borragens (37). Se a terçam fôr doble, se dará em agoa de cardo santo (38), ou de erva cidreira (39). Nas quartans se dá em vinho branco no princípio do frio. Nos melancólicos faz esta pedra maravilhososefeitos e quando tiverem febre se lhes dará em agoa cordial, e em falta della em agoa ordinária, e se não houver febre se dará em vinho.

Para mordeduras de víbora ou de qualquer outro bicho venenoso se tomarão 12 athe 14 graoes de vinho agoado e se aplicarão à mordedura alguns pós da mesma pedra; e se a mordedura fôr tão fina, que não se deixe penetrar se rasgará a ferida para que possam entrar os pós. Quem se recea de peçonha, não busque outro preservativo, porque se beber em jejum os pós desta pedra ficará seguro de que lhe faça mal o veneno, que beber naquelle dia. Serve para as feridas de frechas, ou outras armas ervadas, fazendo o mesmo que acima deixamos dito nas mordeduras de bichos peçonhentos. Também serve para os que lanção sangue de peito, aos quais se dará em cozimentos de rosas vermelhas. He remédio eficaz para as lombrigas dos meninos, aos quais se deve dar em cozimento de raiz de grama ou pevides de cidra. Dada em meya onça deçumo de limão, e outro tanto de vinho branco, ou em agoa he muito proveitosa para os que padecem dores de pedra. Serve para as vertigens da cabeça, tomada em vinho agoado. Também serve para a gota coral, e se deve aplicar, quando o enfermo sente sinal, de querer dar-se o accidente.

Conclusões

Comparando as quatro receitas atrás estudadas e as indicações que as acompanham, pode verificar-se que a segunda fórmula que consta dos manuscritos, difere apenas da primeira por ter sido eliminado um simples: as chamadas línguas de São Paulo, uma vez que terra de Malta em substituição de terra branca de São Paulo é, ao que supomos, uma mera quetão de diferença de nome, porquanto devem corresponder ao mesmo fármaco.

Comparando estas duas receitas com a da composição da pedra bazar artificial da Botica do Colégio de Macau, pode comprovar-se que, esta, é muito semelhante à pedra cordial de Goa, embora mais complexa por integrar maior número de simples. Desta comparação e da relação dos usos comuns, que estão descritos a seguir, somos levados a crer que as pedras de Gaspar António foram inspiradas na própria pedra bazar, muito corrente e famosa na Goa quinhentista.

"Memorial de Varios Simplices / Que da India Oriental, da America (...)", J. Curvo Semmedo - Anexo à obra do mesmo autor "Observaçoens / Medicas / Doutrinais / de cem casos gravíssimos (...)", impressa segunda vez por seu filho o Reverendo / Ignacio Curvo Semmedo / Lisboa, Edição de António Pedrozo Galram / Anno M. DCCC VII.

O objectivo do inventor da pedra cordial de Goa, que teria influenciado a composição da pedra bazar artificial de Macau, segundo cremos, foi juntar diferentes alexifármacos e cordiais famosos no seu tempo e facilmente adquiríveis, ou pelo menos a melhores preços nos mercados de Goa do que nos ocidentais. De inspiração nítida na tradicional medicina do Ocidente bebida nas fontes orientais, a famosa pedra de Gaspar António devia operar não só pelos possíveis méritos dos seus componentes, mas sobretudo pela sua fama e local de origem: a Botica dos Padres Jesuítas, uma vez que a medicina nos séculos XVII e XVIII se encontrava ainda bastante vinculada ao pensamento religioso.

É de notar, porém, que a alcatira, usada como goma para aglutinar o conjunto de simples registado na fórmula citada nas Farmacopeias Bateana e Tubalense, não consta da receita original, o que parece resultar de flagrante diferença na técnica de manipulação que, de facto, se manteve secreta ao longo dos séculos.

Dos quinze simples que intervêm na poção, os corais como calcificantes e a argila como adstringente e absorvente, continuaram a usar-se pelo século XIX adiante e mesmo no século XX, resistindo ao rigor crítico dos estudos científicos da farmacopeia ocidental contemporânea. Quanto ao uso das pedras preciosas, nota-se uma repetição de corindos de várias cores que, na altura, se consideravam de composições distintas, mas que diferem, apenas, pela natureza da manipulação ou pelo seu valor simbólico e não pelos seus componentes essenciais.

Segundo é nossa opinião, devemos procurar a origem do uso medicinal destas pedras no antigo simbolismo atribuído às pedras preciosas e ao seu carácter mágico, tal como sucedia com as pérolas e com os chifres de cervo.

Se é certo que no Ocidente medieval o grande reservatório de símbolos era a Natureza, a verdade é que alguns eram privilegiados. Dentre os minerais, as pedras preciosas eram as mais estimadas pelo seu valor simbólico, recordando os mitos da riqueza. Cria-se que as pedras amarelas e verdes, dentro dos conceitos homeopáticos da época, curavam a icterícia e as doenças do fígado, e as vermelhas hemorragias e fluxos sanguíneos e, muito provavelmente, as febres ardentes.

É possível que o simbolismo das pedras preciosas dos antigos mitos, que as relacionam com as serpentes e apresentam os dragões como guardiões de tesouros, não seja estranho à sua utilização na medicina. O pensamento analógico mais uma vez deve ter dominado, aqui, na eleição das pedras preciosas como alexifármaco de que resultaram as famosíssimas teriagas.

Relativamente aos usos da pedra cordial nos séculos XVII - XVIII, esta aparece-nos como um remédio polivalente, lembrando uma teriaga, composição a que tanto valor se dava no Ocidente e cuja invenção se atribui mais ou menos lendariamente ao médico de Nero.

Como alexifármaco era usado à semelhança dos bezoárticos; como tónico e fortificante, homeopaticamente misturado a uma decoção de rosas vermelhas, actuava pelos seus simples calcificantes; como anti-helmíntico, actuava talvez por acção das pevides de cidra ou do cozimento de grama; contra dores de pedra supunha-se actuar, segundo cremos, por simpatia.

Como qualquer bezoártico era tido, pelas classes privilegiadas, como um revigorante e, de certo modo, usado como profiláctico contra o envelhecimento e contra a impotência.

Além disso, considerava-se que tinha a virtude de desterrar os vapores malígnos e de alegrar o coração.

De todos estes seus antigos usos, só o último, aliás o primeiro a ser citado no velho manuscrito que chegou aos nossos dias, logrou perdurar em Macau.

Vencendo o tempo, a pedra cordial aliou ao seu possível efeito medicamentoso, o efeito psico-terapêutico, actuando como cardiotónico e mais ainda como tranquilizante, fortalecendo ou criando nos doentes a esperança na cura, se para mais o seu efeito não provera.

Resumo

Pode sem dúvida afirmar-se que uma das mais famosas mezinhas de segredo das Boticas dos Colégios dos Jesuítas, no Oriente, é a pedra cordial inventada pelo irmão Gaspar António, ao que se supõe, no Colégio de S. Paulo de Goa, no século XVI.

A receita, cuja divulgação era proibida pela própria Ordem, andou de mão em mão depois de expulsos os jesuítas de todo o território português, no século X VIII.

Citada por diferentes viajantes e parcialmente divulgada sob a designação de receita hipotética na Pharmacopea Thubalense (séc. XVIII), a pedra cordial venceu o tempo na sua terra de origem (em Goa) e na cidade de Macau, onde ainda hoje há macaenses que a possuem e a utilizam como cordial, em casos de susto e sobressalto, ou para prolongar a vida aos moribundos.

A receita original perdeu-se. Mas, há poucos anos, lográmos encontrá-la num livrinho, datado do século XVII, que se encontra em Roma e cuja reprodução em microfilme devemos à amabilidade do Rev. Padre António Leite S. J..

No presente trabalho consta o estudo pormenorizado dessa receita de segredo, da respectiva manipulação e do seu uso em Macau.

De forma prismática, branca como caulino do mais puro e envolvida em palhetas de ouro verdadeiro, é guardada pelas senhoras macaenses, conservadoras do que resta da sua antiga cultura, mais do que como uma preciosidade, como uma relíquia sem preço.

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NOTAS

(1) R. Bluteau - Vocabulário Portuguez e Latino (...); Coimbra, MDCCXII, vol. II, p. 547.

(2) Segundo R. Bluteau (ob. cit.) besoártico era um termo médico. Correspondia ao remédio em que entra pedra bazar, ou qualquer outro género de antídoto contra peçonhas.

(3) Grão - medida farmacêutica antiga correspondente, aproximadamente, a 0,05 g.

(4) O valor atribuído a essas pedras era tal que não era raro serem encastoadas em prata ou em ouro pelos seus possuidores.

(5) Cartas Annuas (...) Jesuítas na Ásia - Biblioteca da Ajuda.

(6)João Curvo Semmedo - Memorial de vários simplices que da Índia Oriental (...) vem ao nosso Reyno para remedio de muytas doenças (...) Lisboa, MDCCCXVII.

(7)John Freyer - A New Account of East - India and Persia - London, 1698. Cit. por C. Rivara in Arch. de Ph. e Sc. Accessorias da India Portugueza, 1864.

(8) É esta, infelizmente, a única notícia que encontramos acerca do Irmão Gaspar António, cujo nome ficou ligado à pedra cordial de Goa.

(9) Azia Sinica e Japonica, Vol. II, p. 170. Ed. porC. R. Boxer, Macau, 1950 e Arquivos de Macau, Vol. I, n° 2. Julho de 1929, pp. 77-78.

(10) José Caetano Soares - Macau e a Assistência, A. G. U.. Lisboa, 1950, p. 179.

(11) Arch. de Ph. e Sc. Accessorias da India Portugueza, 1864. Cit. por Pedro José da Silva - História da Pharmacia Portugueza, desde os primeiros séculos da Monarchia até ao presente - Terceira Memória - Lisboa, 1868, p. 127.

(12) Informação dada por J. M. Braga ao Prof. Charles R. Boxer, em 1950 (in Azia Sinica e Japonica. Ed. por C. R. Boxer, Macau, 1950, Vol. II, p. 170).

(13) Collecção de várias receitas e segredos particulares das principais boticas da nossa Companhia de Portugal, da India, de Macau e do Brazil compostas e experimentadas peIos melhores médicos e boticários mais célebres que tem havido nessas partes (...), em Roma, MDCCLXVI (Manuscrito dos Arq. da Companhia de Jesus em Roma).

(14) Pharmacopea Tubalense Chimico-galenica - Parte primeira (...) de Manoel Rodrigues Coelho (...) publicada por Carlos da Silva Correia, Lisboa Occidental, na Officina de An-tónio de Sousa da Silva, MDCCXXXV, pp. 310-311.

(15) Pharmacopea Bateana (...) traduzido do Latim em Portuguez (...) por D. Caetano de S. António (...) Lisboa, na Officina Real Deslandesiana, 1713, p. 133.

(16) Buglossa ou lingua de vaca, planta medicinal muito em voga na altura (Anchusa Officinalis Brot non Linn).

(17) Em Macau há quem use ainda o termo mãe-de-pérola.

(18) Um escrópulo medicinal equivalia a 1,2g.

(19) Mircea Eliade - Images et Symboles. Essais sur le symbolisme magico-religieux, Ed. Gallimard, Paris, 1952, p. 190.

(20) Mircea Eliade - ob. cit., citando Kunz et Stevenson - The Book of the Pearl, p. 20 e Jackson - Shells as evidence of the migrations of early culture, p. 92.

(21) R. Garbe, Die Indische Mineralien, Leipzig, 1882, p. 74, cit. por Mircea Eliade, ob. cit., p. 191.

(22) Harschacarîta, trad. de Cowell & Thomas, p. 251 e seg., cit. por Mircea Eliade, ob. cit., p. 191.

(23) Esta pérola, por influência tauísta, é considerada como um verdadeiro talismã, capaz de satisfazer todos os desejos a quem lograr encontrá-la.

(24) M. O. W. Jeffreys - Snake Stones, in "Journal of the Royal African Society", LXI, n° 165, 1942.

(25) R. Bluteau - Vocabulario Portuguez e Latino (...) Coimbra, MDCCXI I, Vol. I.

(26) No livro de Garcia d'orta - Colóquios dos Simples e Drogas da Índia (1563), comentado pelo Conde de Ficalho (1891), diz-se que o âmbar tem origem nas partes córneas das sépias e outros cefalópodes ingeridos pelos cachalotes e que são envolvidos pela massa do âmbar. Garcia d'Orta falou em bicos de aves encontrados na substância, confundindo estas peças com os bicos das aves cujos excrementos comidos pelas baleias se supõe que dariam o âmbar.

(27) Ph. Tubalense ob. cit. pp. 230-231.

(28) O topázio oriental é uma variedade de corindo (dureza 9) - sexquióxido de alumínio. O falso topázio é o quartzo citrino que se distingue pela dureza (dureza 7).

(29) O rubi oriental é mais duro sendo riscado, apenas, pelo diamante.

(30) A planta conhecida por jacinto bravo, ou dos campos, tem flores azuis lilacíneas claras, flores que se tornam mais escuras, com o tempo.

(31) João Curvo Semmedo - Polyanthea Medicinal, Notícias Galenicas e Chymicas (...) Lisboa, na Officina de António Pedrozo Galram, MDCCXVI, Trat. 2, Cap. 106. n.o 8. pág. 582.

(32) É uma variedade azul de corindo (sexquióxido de alumínio). Em sentido lato, todas as variedades de corindo podem ser usadas como gemas. Os jazigos mais famosos são os da Índia (Madrasta, Malabar, etc.) e os do Sião.

(33) Os caranguejos mais frequentemente utilizados para recolha dos oculi cancri, eram da família dos Portunídeos.

(34) Buglossa ou cinoglossa, língua de vaca (Alcana bastarda - Anchusa officinalis Brot. non Linn.)

(35) Cichorium intybus L.

(36) Rumex acetosa L. - Na medicina as azedas são usadas como planta refrescante e diurética (Curvo Semmedo - Polyanthea (...) p. 666).

(37) Borrago officinalis L. - Da borragem, Curvo Semmedo disse que facilitava a câmara e dava alívio aos melancólicos. (Curvo Semmedo - Polyanthea (...) p. 666.

(38) Cardo santo - Centaurea benedicta L., Sin. Cnicus benedictus Gäertn.

(39) Erva cidreira - Melissa officinalis L., Sin. M. graveolens Host.

*Professora da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa; antropóloga e investigadora; autora de vários livros sobre temas da Etnografia Macaense.

desde a p. 87
até a p.