Linguística

'OS MAIAS' EM LÍNGUA CHINESA

João C. Reis*

A possível tradução, que se anuncia, de "Os Maias" de Eça de Queirós, para a língua chinesa, na esteira do já anteriormente acontecido com "O Crime do Padre Amaro" - trouxe-me à ideia a singularidade de um capítulo daquele livro, sobre o qual aproveitarei para alongar, neste artigo, algumas considerações porventura impressivas.

Não começarei, porém, sem antes referir a crítica descabelada e de má-índole que Fialho de Almeida escriturou sobre a Obra, de cuja primeira edição se comemorou, recentemente, o centenário - particularmente na parte que diz respeito à sofismada e tendenciosa asserção do autor de "Os Gatos" ao amor e às mulheres da saga queirosiana.

Depois de outras afirmações gratuitas, que não primam pela isenção e discernimento, escreve Fialho:

"Naquelas novecentas páginas - coisa singular! - Não há lugar para uma só mulher que seja honesta, e o amor, mesmo nas que se dão sem pagamento de tarifa, o amor é coisa exclusivamente física e bestial, sem idealidade, sem ternura e sem preparo - como entre animais de espécie imunda".

À partida, isto passa por injusto e inverídico. Não são poucas as passagens do livro em que o amor se consuma com a "idealidade" requerida, com "ternura", e com "preparo". Pelo menos da parte da mulher que, raramente, e mesmo aí, sem uma razão especificamente exógena - será cínica, premeditada ou desonesta.

Utilizar expressões associadas à prostituição, ao adultério e à promiscuidades, em relação a mulheres outras, além das Conchas e das Encarnações da Rua de S. Roque, não significa apenas ver o problema por cima e com descuidada (?) displicência. Revela uma mentalidade, de resto generalizada e hipócrita, de uma sociedade de tabús, de valores acanhados e de tendência repressiva, de que Fialho se faz polícia e delactor, quando, sem razão que o justifique, terá por óbvia intenção molestar e friamente prejudicar, não só o escritor de sucesso que o enciuma, e a sua probidade de artista, como o cidadão, que, e não por acaso, é funcionário da Administração Pública.

Quando o autor de "Os Gatos" com efeito, assim simplifica e generaliza a questão, não lobrigando na obra senão adúlteras e prostitutas, depravadas viciosas, e animais, subjuntivamente produto mórbido de um criador recalcado, tem por objectivo evidente, como outros não deixariam de fazer (antes e depois dele) praticar a denúncia simples perante as instituiçoes e os costumes. Além de utilizar um ponto de vista meramente redundante, e de fácil acesso a um público leitor de instintos inconfessadamente propensos, mas no fundo, sem dúvida conservador e retrógrado, ou ignorante, e por isso intolerante e fanático, para quem a mulher era uma propriedade ou um objecto, e o amor não passava de uma "torpeza ilegítima" (como se o sentimento pudesse, ou devesse ser regulamentado por leis) - Fialho nem sequer é original.

Ramalho, a Ramalhal figura, já, antes dele, havia dito o mesmo, e de maneira muito crua:

"Há em todos os grandes romancistas modernos, desde Balzac até ao Sr. Eça de Queiroz, uma tendência, de que o vulgo tem feito o atributo de uma escola, tendência febril a demorarem sensualmente as análises da torpeza e da podridão"...

Torpeza e podridão, citados a propósito de presumidas ilegitimidades, eis o que era o amor para o grande Ramalho, para quem "mesmo em anatomia (a descrição do) completo conjunto do corpo humano (isto é, o nu) é obsceno, porque é inútil."

Para quem, igualmente, "as meninas nunca deveriam ler romances, quaisquer que fossem, e se os podiam ler as mulheres, era outra questão, à qual respondia que podiam, embora com esta reserva: às escondidas!"

E Machado de Assis não sentia, também, a menor dificuldade em ajuizar e avaliar os romances do "senhor Queiroz", um realista que "não queria ser mitigado". Para ele, o "Crime do Padre Amaro" era um livro escuso e torpe, de um realismo implacável, consequente, lógico, levado à puerilidade e à obscenidade".

Passando de lado sobre a questão de qual seria, para os críticos, o conceito e o significado de "honestidade" em relação à mulher - ficaria ainda por descortinar e decidir se, em última análise, a intenção, de fundo, de Queirós teria sido na realidade, acentuar pela negativa, o perfil e o carácter, a duas dimensões, dos seus personagens (homens e mulheres); ou se o sentido crítico da sua consciência não se sobrepunha, de facto, à mão da sua caligrafia artística. Isto é, se a mulher, tal como nos é apresentada, tão notoriamente e tão gravemente acusada pelo moralismo público, não se constituia, pelo contrário, no símbolo do ser maltratado, impiedosamente vilipendiado e punido por uma sociedade de terror, que a todo o tempo, e em todas as circunstâncias, a ameaçava, domesticava e fustigava, através de inflexíveis esquemas de diversos condicionalismos opressores: dogmas, leis, códigos, superstições, coacções, a polícia, e outras instituições robustecidas de um perverso poder de retaliação, que desenvolviam o medo como uma natureza, refreavam os impulsos de emancipação, ludibriavam a moral, escamoteavam a justiça, escarneciam a dignidade humana discriminavam as pessoas, adulteravam o sentimento (com uma fraseologia que não se distinguia pela contenção...) e exautoravam o amor como uma infâmia.

À volta do amor, pois, instituiram-se regras de um verdadeiro terrorismo cultural, exacerbado por uma dialética paradigmática e odiosa de que constituirão exemplos conspícuos as crónicas dos autores referidos.

O amor, perfidamente alongado, como conceito e como expressão, no "pecado original", tornava-se equivalente à ilicitude, à licenciosidade, à vergonha, ao imoralismo.

O sentimento associava-se, por isso, à evasão. Criava, na realidade, a necessidade de fugir. Fugia-se por se amar, e para se amar. Pelo peso do pecado. Pela indignidade da exprobação pública, e da calúnia. E por medo à polícia...

Luiza, pobre ingénua, e pobre vítima de si mesma, mais do que dos outros, queria fugir com o homem que já nem amava. Para escapar aos horrores da maledicência dos Dâmaso e dos Palma Cavalões, que infestavam o Chiado, Carlos da Maia queria refugiar-se com Maria Eduarda em Itália, e a Gouvarinho propusera-se espiar, fugindo, as consequências de um sentimento intolerado. A Monforte, a negreira, isto é, já de si, anatemizada por ser fruto de amores pecaminosos, escapara-se com o refugiado como de um remorso - o remorso de ter feito um casamento mistificado, com um homem desequilibrado. E por não fugirem, Ana Plácido e Camilo não foram poupados ao cárcere e ao ultraje, e um Samuel (Vieira de Castro) que se arrogaria a uma "Consciência" com que atacaria as Farpas - acabaria por assassinar, com a implícita aprovação e simpatia de muitos, a sua jovem mulher, matrimoniada contra vontade, que se deixaria, depois, enlear por um sentimento que a sociedade reprovava, e severamente, punia.

Não será propriamente por acaso que na obra queiroziana o amor e tragédia aparecem muitas vezes de mãos dadas. E as vítimas são quase sempre as mulheres, que Fialho tão ligeiramente classificaria de prostitutas e depravadas.

Prova de "Os Maias" corrigida por Eça de Queirós.

Carmen, a argentina do "Mistério da Estrada de Sintra", por amores não correspondidos ou traídos, morria dramaticamente no meio do Mediterrâneo, e a sua rival nos afectos de Rhytmel, a condessa, não acabaria com melhor sorte, sepultando-se viva num convento, não antes de envenenar o amante. Amélia, do Padre Amaro, enlouquecia e morria tragicamente. Luiza, morta, sem remissão, esvaída no remorso, e no terror do inferno. A Monforte espiaria o seu "crime" nos bordéis de Paris, mas a sua alma gémea, Genoveva, ensandecida, deitar-se-ia de uma janela abaixo. E Maria Eduarda, no final da derradeira decepção de um destino cheio de terríveis adversidades, renunciando à vida, iria enterrar-se no fundo de uma província de França.

Não se precisa de remontar às Farpas para se perceber como a consciência de Eça de Queirós funcionava muito mais profunda e complexamente do que suposeram (ou fingiram que não entenderam) os seus críticos. Quando da publicação do "Crime do Padre Amaro" toda a gente se entreteve a analisar a história indecorosa daqueles amores profanos, a execrabilidade do carácter daquele padre sem vergonha e sem moral. Ninguém tomou em consideração, ao menos como hipótese, a possibilidade de o escritor ter, porventura, querido assumir-se contra a prática obrigatória do celibato eclesiástico, à sombra do que tantas situações, trágicas ou não, em todo o caso imorais, semelhantes às de Amaro e Amélia, ocorriam no País - pesem, embora, a fragilidade humana, denunciada, no romance, de uma rapariga culturalmente desprevenida, e emocionalmente desequilibrada, e as idiossincrasias velhacas e calculistas de um padre pecador.

Fialho, como outros, equivocou-se. Profundamente. Não só em relação às mulheres, como também, sem dúvida, ao próprio escritor, à nobreza do seu carácter, e à coerência das suas convicções, que vinham desde 1868, à sua probidade de artista, e de crítico desassombrado de uma sociedade armadilhada e perversa, sempre pronta a cair, com a fúria de um farisaismo estúpido, sobre os desacautelados e desprotegidos da vida, aqueles que, de uma forma ou de outra, comiam o pão que o diabo amassava...

O capítulo a que se faz referência no começo destas despretensiosas considerações, é aquele em que, pela primeira vez, Maria Eduarda e Carlos, na casa alugada da mãe Cruges, se encontram, frente-a-frente, dia após as celebradas corridas de cavalos de Belém.

Para mostrar e provar como Fialho se equivocou, ou não foi, simplesmente, capaz de controlar o azedume e a tendência para o vitupério que lhe caracterizavam o feitio, nada mais seria necessário do que referir globalmente este capítulo.

Fialho de Almeida, nem Ramalho, nem Pinheiro Chagas, nem ninguém o notou - mas Eça de Queirós, neste capítulo verdadeiramente singular em toda a sua obra, utiliza, espontaneamente, como creio, ou premeditadamente, concedo, cerca de duzentas e cinquenta palavras e expressões de enternecimento e de simpatia, ou solidariedade, mais de trinta das quais terminadas no sufixo inho.

Fialho equivocou-se, de igual modo, quando tão mal profetizaria vida efémera a "Os Maias" como romance falhado que na sua opinião era.

(Para si, "Os Maias" revelavam)... "A mais completa ausência de vida interior nas personagens que quase todas falam, procedem, pensam, segundo alguma falha moral de irresponsáveis, com a veia da ironia literária do seu Autor, e a força da negação que nos faz agradecer a Deus a providência de nunca a sua obra poder vir a tornar-se popular".

Primeira edição de "Os Maias"

Fialho, na verdade, nunca compreendeu, ou não quis compreender (faço-lhe a justiça de preferir a segunda proposição, a despeito do que esta possa significar) nem o Homem, nem o Escritor, nem a Obra, designadamente“Os Maias.

E Deus, que sabe ler a verdade no coração, na alma e até nas obras dos homens, não lhe concederia a providência sofismadamente suplicada...

Cem anos depois, desde a primeira edição, as rotativas ainda não deixaram de imprimir um livro que muito se popularizou, e universaliza, traduzido nos principais idiomas do mundo, enaltecido por crítica mais idónea e bem mais isenta do que a praticada pelo autor de "Os Gatos".

A este momento, está em curso a tradução de "Os Maias" em língua chinesa, para uma edição cuja tiragem prevista será da ordem dos cento e vinte mil exemplares.

Esta iniciativa, que, como a primeira, fica a dever-se ao Instituto Cultural de Macau, e ao empenhamento do seu Presidente, Dr. Jorge Morbey, por acaso, ainda familiar do Escritor - segue-se à edição experimental, de 70.000 exemplares, de "O Crime do Padre Amaro" esgotada em poucas semanas na República Popular da China.

Contrariamente ao que da primeira vez foi feito, utilizando-se para a respectiva translacção uma versão em língua inglesa, "Os Maias”serão vertidos directamente do texto original de Queirós. É possível que desta circunstância não resultem acentuadas diferenças de qualidade literária, já que a arquitectura semasiológica da língua chinesa obrigando ao recurso frequente de aproximações perifrásticas - passe o pleonasmo - nem sempre, e nem sempre bem, por dissonâncias inevitáveis, e incompatibilidades possíveis, se identificam com os textos originais.

Não seja, por isso, no entanto, que se deixe de louvar a iniciativa, e de nos regozijarmos com esta divulgação dos livros de Eça de Queirós à escala de um País como a China. Por mais que possamos ficar susceptibilizados com a crueza de algumas imprecisões semânticas, ou desvios na estética literária, não há que menosprezar a importância de um projecto que coloca Eça de Queiroz e a Literatura Portuguesa dentro e ao alcance da mais vasta comunidade humana deste Planeta.

Eça de Queirós na sua sala de trabalho em Neuilly.

Considerando, mesmo sem atenuantes, o defeito, e admitindo que um pecado não seja justificável por outro pecado - não deixam entretanto de me acudir à lembrança outros e grandes atropelos, mesmo na nossa Língua, aos livros de Eça, por adulterações e amputações bem mais grosseiras e graves, por serem premeditadas - de que não se isentam, por exemplo, certas adaptações para o teatro e cinema, para a rádio e televisão.

Talvez, afinal, seja para nós bem mais doloroso ver e ter de assimilar o produto, desvirtuado e empobrecido, por inquinação voluntária...

Adiante se transcreve uma página traduzida de "Os Maias", precisamente do capítulo a que venho de me referir.

De acordo com os nossos padrões, e sensibilidades culturais, é possível verificarem-se certos desfasamentos teciduais, enfraquecimento estrutural de um texto que todos temos por perfeito.

Algumas discrepâncias, com efeito, por mal ajustada sinonimação, ou por inadequação de uma morfologia ideográfica de significado não invariável, e, sobretudo, por uma diferenciada estrutura sintática, típica da escrita simbólica e metafórica chinesa, terão contribuído para a notória descaracterização de certas passagens menos fáceis, talvez mais pronunciada e expressiva na retroversão, isto é, na tradução da tradução, do que na tradução propriamente dita.

Dois subjacentes e não irrelevantes factores desempenharão, na circunstância, e à medida da nossa óptica, um papel inegavelmente redutor, ambos relacionados com o intermediário (tradutor) - primeiramente, quando este tende, naturalmente, a interpretar o pensamento e a obra estrangeiros por concepções e termos associados às suas raízes culturais; e segundo, por instintiva propensão e afinidades óbvias, mas também, decerto, por uma não menor, deliberada e prévia intencionalidade, a de desejar fazer-se compreender pelo destinatário leitor, sem o que o seu trabalho perderia todo o sentido.

O que equivale dizer-se que o leitor de Pequim, como o leitor do Porto, ainda que por diferenciada via, não deixará de poder fruir, em porventura quase toda a acepção da palavra, a mesma satisfação e proveito da obra original, posta ao seu alcance através dos meios pelos quais adquiriu e sedimentou o conhecimento das coisas que o rodeiam. Uma rosa não deixa de ser rosa, e de exalar de si a fragrância que a distingue entre as flores, se for traduzida como uma bela, frágil e perfumada flor de cor viva e grandes pétalas aveludadas. Rosa, com efeito, não é senão nome de um código, convencionado por comodidade, a partir de certo tempo, numa certa parte do globo.

(Isto, como é óbvio, não passa de uma generalidade subjectiva, e sem consistência, a pretender funcionar, de facto, como mero exemplo de circunstâcia).

Não conheço, infelizmente, o idioma chinês para poder pronunciar-me, em concreto, sobre o rigor de certas particularidades que emprestam, aqui e ali, à translação, ainda que sem gravemente a transfigurar, um exótico sabor átono.

Por exemplo o piano da casa da mãe Cruges. Reporto-me ainda ao mesmo capítulo referenciado ao longo deste trabalho. Trata-se de um piano de cauda, transliterado em piano de três pés. Não vem daqui nenhum mal ao mundo, nem ao livro. Mas já a perfeita forma transitiva dos "três belos lírios brancos que iam murchando num vaso do Japão" se transformam numa frase sem encanto: “numa jarra japonesa estavam já murchos os três lindos lírios brancos”- o que, além de dessensibilizar a leitura, dá uma nota de desleixo que não se compatibiliza com o requinte e o bom gosto da locatária anfitriã.

Não é difícil perceber que o tradutor terá encontrado sérias dificuldades para superar problemas de uma escrita emaranhada de subtilezas semânticas. Mas reconheça-se, ao menos, a honestidade do tradutor, que se esforçou em seguir, linha a linha, o que lhe pareceu ser o essencial do texto original. É possível, é até mesmo desejável, que numa revisão cuidada algumas atonias possam ser esclarecidas e uma melhor solução encontrada.

Sem qualquer espírito de crítica, à partida extemporâneo, até por o trabalho, como se diz, se encontrar ainda por concluir e rever, a seguir se mostram algumas passagens impressivas da versão chinesa, em comparação com o que Eça de Queirós efectivamente escreveu. Por exemplo, vejamos no original:

"E parecia errar ali, acariciando a ordem das coisas, e marcando-lhe um encanto particular, aquele indefinido perfume que Carlos já sentira nos quartos do Hotel Central, e em que dominava o jasmim ".

Eis como o tradutor trabalhou este trecho:

"Carlos, sem poder conter-se, começou a acariciar suavemente estes pequenos adornos, dando-lhes mais alguma força de atracção. Aquele cheiro de água de Colónia, com uma aroma de jasmim, também era conhecido do Hotel Central".

Escreveu Queirós:

"Os cabelos (de Maria Eduarda) não eram louros, como julgara, de longe, à claridade do sol, mas de meios-tons, castanho claro e castanho escuro, espessos, e ondeando ligeiramente sobre a testa".

Tradução:

"Antes, sob a luz do sol, Carlos achava que ela tinha cabelos louros. Na realidade, porém, era uma suave mistura de um castanho escuro com castanho claro. O penteado levemente ondeado, caía-lhe na testa, e o seu olhar penetrante era solene e brando".

Entretanto, Maria Eduarda entrava na saleta, onde Carlos a aguardava. Eça de Queirós e o seu tradutor descrevem assim a cena que vai seguir-se:

Quinta de Vila Pouca (Resende) tradicionalmente identificada com a Quinta de Sta. Olávia, de "Os Maias".

Texto original:

Voltou-se e viu Maria Eduarda diante de si. Foi como uma inesperada aparição - e vergou profundamente os ombros, menos a saudá-la que a esconder a tumultuosa onda de sangue que sentia abr-sar-lhe o rosto".

Tradução:

"Carlos voltou-se e tinha Maria Eduarda já à sua frente. A aparição dela foi tão surpreendente que ele deu um forte encolhimento de ombros, não para cumprimentá-la, mas sim para encobrir o sangue ardente que lhe afluía ao rosto".

Segue-se a publicação, por inteiro, da página da qual tenho vindo a respigar estes extractos. Ficar-se-á com alguma ideia de conjunto de como se vem fazendo a tradução, sendo no entanto de recordar que o trabalho passará por uma fase de acerto e correção antes de entrar no prelo. Existe a preocupação em apresentar uma tradução tão próxima quanto possível do texto original, sobretudo, que não fira a qualidade da obra.

"Domingos foi-se embora finalmente. Carlos tirou as luvas e, cheio de curiosidade, deu uma volta, a passos lentos, na sala. No chão, uma esteira nova; ao lado da porta, uma piano antigo de três pernas coberto de um pano branco; na estante cheia de papéis de música e de revistas, uma jarra japonesa em que estavam já murchos os lindos lírios brancos. Almofadas vermelhas em todas as cadeiras e uma velha pele de tigre no chão, à frente do sofá. A casa é alugada, e tal como no Hotel Central, com mobílias simples, causando uma sensação de conforto e de nobreza. Uma cortina de fazenda grossa tinha substituído a antiga bambinela e combinava-se com a parede revestida de papéis azuis. O pequeno armário árabe, que Carlos tinha visto na casa do tio Abraão, preenchia exactamente um lugar vazio na parede. No meio da sala, uma mesa oval, coberta de uma toalha de veludo, em que estavam empilhados livros e albuns de pintura de óptima encadernação, duas taças japonesas de bronze e uma jarra de porcelana alemã de Dresde. Estes finos objectos de arte não pertenciam, com certeza, à mãe Cruges. Carlos, sem poder conter-se, começou a acariciar suavemente estes pequenos adornos, dando-lhes mais alguma força de atracção. Aquele cheiro da água de colónia, com um aroma de jasmim, também lhe era conhecido do Hotel Central.

O que mais atraía a atenção e Carlos era o biombo de linho bordado, que se estendia até à janela, ocultando, assim, uma parte do mundo que pertencia à dona da casa. Ali estava uma pequena cadeira forrada de cetim escarlate. À frente da cadeira, uma grossa e macia almofada para os pés. Havia também uma mesa de costureira, florescente de lavores femininos, com várias revistas de moda, um rolo de bordados, bolinhos de fios de lã a sairem do cesto. Uma cadelinha escocesa de espécie pura estava encolhida regaladamente na cadeira mole. Nos seus sonhos, Carlos já a tinha visto várias vezes, a andar, ligeira e rápida, atrás daquela figura brilhante de beleza, ou a dormir enrolada no seu colo cheio de meiguices.

-Bom dia, menina, - cumprimentou-a Carlos, tentando ganhar-lhe a simpatia.

A cadelinha, num sobressalto, ergueu as orelhas e, fitando o desconhecido à sua frente, mostrava os lindos olhos negros a brilharem, através dos pêlos finos e fofos, de uma luz de desconfiança, com uma penetração quase humana. Num instante, Carlos ficou com medo que ela começasse a ladrar, mas ela, entretanto, numa repentina expressão de carinho para com ele, virou-se na cadeira e esticou as quatro pernas para cima, deixando a descoberta a barriga, para ele lhe fazer as festas.

Ele já ia brincar com ela para a acariciar, quando ouviu passos brandos a pisarem a esteira. Carlos voltou-se e tinha a Maria Eduarda já à sua frente.

A aparição (chegada) dela foi tão surpreendente (repentina) que ele deu um forte encolhimento de ombros, não para cumprimentá-la, mas sim, para encobrir o sangue ardente que lhe afluía ao rosto. Ela estava com um vestido preto, simples e justo, com colarinho masculino e, no busto, um rosa em botão, sobre duas folhas verdes. Parecia alta e branca. Foi sentar-se ao lado da mesa oval, em que estendeu um lenço bordado.

À indicação sorridente dela, Carlos sentou-se na borda do sofá, com pouco à vontade. Após um silêncio atrapalhador, ouviu-se a voz de Maria Eduarda, cheia e pausada, de um timbre dourado, muito agradável.

Na sua excitação de espírito, Carlos pareceu ouvir vagamente um agradecimento pela sua atenção à Rosa. Cada vez que tinha o olhar parado nela por mais alguns minutos, descobria logo alguma novidade de bom gosto e de perfeição. Antes, sob a luz do Sol, Carlos achava que ela tinha cabelos loiros. Na realidade, porém, era uma suave mistura de um castanho escuro com um castanho claro. O penteado levamente ondeado caía-lhe na testa e o seu olhar penetrante era solene e brando. Quando falava, costumava ter as mãos cruzadas sobre os joelhos. Nos punhos brancos do vestido, Carlos parecia sentir o perfume e o calor dos alvos e deliciosos braços dela".

Ao trazer aqui esta tradução, não com outro intuito senão o de dar a conhecer, em primeira mão, uma curiosidade associada a "Os Maias", sei que estou a correr o risco de, com ela, poder ofender a sensibilidade do queiroziano, mesmo do menos exigente. Devo, no entanto, recordar que nem este trecho, como frizei, nem o que vai sendo traduzido, foram ainda objecto de qualquer revisão. Nem sequer de esclarecimento de algumas passagens mais difíceis da escrita original, que, inclusivamente, possam ter conduzido a uma ou outra interpretação menos feliz, susceptivel, por isso, de eventual correcção, ou aperfeiçoamento.

Existe, como já foi dito, da parte de quem tomou sob os seus auspícios a iniciativa deste projecto meritório, e, tanto quanto julgo sabê-lo, da pessoa encarregada da respectiva tradução, o propósito e o maior empenhamento no sentido de dignificar, até ao mais elevado grau de apuro e de responsabilidade, a obra-mestra de Eça de Queirós - de modo a fazer entrar, na China, num circuito cultural, a partida, de mais de cem mil pessoas, um trabalho limpo, que condignamente ali preserve a dignidade da obra e a memória de um dos maiores escritores europeus do seculo XIX, e da Literatura Portuguesa.

O Eça das "Farpas" (caricatura de R. Bordalo Pinheiro).

* Autor da obra "Polémicas de Eça de Queirós" (em 5 volumes) e de outros trabalhos de investigação histórica e de literatura. Participante convidado das Comemorações do l Centenário da publicação de "Os Maias" realizado no Porto em Dezembro de 1988. Ex-docente da Faculdade de Letras de Lisboa. Actualmente, professor na Universidade da Ásia Oriental de História da China e História de Portugal.

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