Artes

'Macau Contemporary Artists” Pintura de Macau em Singapura

Luís Sá Cunha

Foi a "melhor mostra estrangeira de pintura nos últimos dez anos em Singapura". Assim a considerou o Prof. Lou Kang, ex-professor do Colégio das Belas Artes de Xangai e actualmente o decano dos artistas de Singapura, onde reside. Referia-se à "Macau Contemporary Artists", nome de catálogo da exposição colectiva dos seis pintores de Macau, reunidos na tertúlia artística "Núcleo de Pintura Contemporânea" do Círculo dos Amigos da Cultura, de Macau.

"Santos da casa não fazem milagres", diz o brocardo popular; "ninguém é génio aos olhos do seu criado de quarto", denuncia o humor de Johnatan Swift. Dizemos nós: a deformação que perverte a cultura em acção cultural, o reduccionismo que as confunde, o sentido burguês, superficial, burocrático da cultura, o que pede vinte lanternas a Diógenes para descerrar o que há de genuíno e identificador de Macau - parece incapaz de distinguir, situar e classificar este "grupo", ou nem sequer dá pela sua existência, vivo e activo, em Macau.

Mas se há caldo de cultura onde a individualidade de Macau se afirme, como fruto singular de transculturações, é aqui, e noutros, poucos mais sectores, onde a miscigenação de valores, cânones e conceitos se realiza num diálogo que passa a deslado do obstáculo linguístico.

Grupo que reúne alguns dos principais artistas do Território que mais entendem a liguagem visual contemporânea, a prumo da hora internacional, assim os pintores do Grupo dos Amigos da Cultura se constituem vanguarda em Macau. Vanguardismo que não é ponto confessional de manifesto, mas postura que os transcende, postura que ressalta objectivamente do contraste com o meio dominante, de fusos-horários atrasados em relação ao Greenwich das artes actuais, ou com os copistas das mesmíssimas peónias seculares, cada vez mais de papel para-florista-de-supermercado, variando apenas nas legendas iguais, sem frescura, sem uma vibração de diferença, uma inquietação de novidade, o estremecimento germinal de um enxerto revivificador.

À esquerda: "Período de transição" - CARLOS MARREIROS Díptico (painel esquerdo); técnica mista; 122 x 200 cm

"A linguagem plástica, no nosso caso pictórica, tem de englobar valores de culturas conviventes neste território, tem que ser tão simbiótica como a cultura que lhe serve de fundo. A fusão dos traços culturais, tanto chineses como portugueses, na pintura, de uma forma não gratuita e não convencional, é monumental desafio de difícil labutação. Exige muita pesquisa conceptual antes de se formalizar na cor e nas formas, sobre a tela".

São, assim, genuinamente macaenses; não na interpretação reduccionista de um "regionalismo" que os diminuiria (e à arte), mas no sentido da integração do mais genuinamente particular no universal, de o descobrir, agarrar e realizar ali. Por esta via se confirma um veio de identidade que, gerador de especificidades sócio-culturais no passado, mostra, agora e ainda, vivas potencialidades de renovadas sínteses. Mais visual talvez, num passado bem recente, menos visionável, talvez, nas mais recentes experiências plásticas destes pintores, esse entrosamento conceptual e técnico não é porém de fácil percepção ao olho mole. Pintura sem "facilismos" imediatos ou sem "imediatismos fáceis", construída prioritariamente dentro de um quadro conceptual ocidental, só deixa surpreender os elementos da outra tradição, ou as recônditas simbioses que a povoam, ao olho prescrutador, atento e investigador.

"Love Story" - ÜN CHI IAM pintura chinesa; 86 x 86 cm Prémio da V Exposição dos Artistas de Macau (Leal Senado).
À direita: "As circunstâncias mudam, a Lua permanece" - KWOK WOON Técnica mista; 129 x 192 cm

Assumidamente (mais) chinesa, mesmo na pintura da senhora Ün Chi Iam, os carácteres da escrita chinesa não se alinham no poema ou na legenda que emolduram e comentam a pintura, como nas constantes reedições da milenar arte chinesa. Com menos recurso (ou sem recurso) ao legado da aventura plástica ocidental do post-impressionismo aos nossos dias, nas suas obras muita coisa mexeu. E se é visível a fidelidade ideal ao imobilismo, delicadeza e serenidade dos cânones chineses de sempre, é isso sobrevivência de um corte radical com uma tradição estética - em que o telos da arte era realizar a eternização do instante.

Em todos (Mio Pang Fei, Kwok Woon, Carlos Marreiros, Victor Marreiros, Guilherme Ung Wai Meng) o quadro conceptual ocidental recebe e integra valores técnicos, ou contributos matéricos do património chinês, num exercício levado ao extremo, e que traz à colacção remotas memórias das duas tradições.

Nas páginas anteriores:

"Estela"

MIO PANG FEI

Técnica mista; 135 x 200 cm

"Mané I"

VICTOR HUGO MARREIROS

Acrílico; 70 x 96 cm

"Rua de Francisco Xavier Pereira, N° 79"

UNG VAl MENG

Técnica mista; 134 x 202 cm

Mais concentradas nesta ou naquela expressão individual de cada um destes pintores, assomam as inspirações do abstraccionismo impressionista (v. g. Kwok Woon) ou expressionista, cineticistas (v. g. Guilherme Ung Wai Meng), gestualistas e minimalistas (Carlos Marreiros e Mio Pang Fei), em resultado surpreendente quando os temas são servidos pelas técnicas e materiais tipicamente chineses.

Num momento em que a epistemologia ocidental se sofreia à beira de um abismo e em que, entre tantas vias de superação sugeridas, alguns apontam o regresso às origens, ou a uma reinvenção pré-original, é curioso notar como, mais uma vez e sempre, as artes de uma época se antecipam às indagações da ciência ou caminham pari-passu com elas. Já a sistematização de Stéphane Lupasco, baseada nas inovações de Eisenberg, Einstein, Von Pauli ou Nills Bohr, surgia nos anos 30 a pôr em causa a lógica de Aristóteles e a propor a formulação de uma "nova lógica". Não é por acaso a recente corrida aos pré-socráticos (ou major, minor, aos pré-platónicos ou pré-aristotélicos), no recuo a um estádio onde a pintura actual pode sentir-se mais à vontade, porque não é sua vocação a formulação de um telos que cabe superiormente à filosofia.

Assim, as experiências e caminhos da pintura actual vão beber (e declinar a sua "episteme") das noções de doxa (liberdade opiniosa), de kinesis (moção, mudança) rhoē (fluxo, fluência, corrente)

"Tudo está em estado de fluxo"; proclamou-o a visão heraclitiana, assume-o um gestualista.

Não será daqui que resultará outra, nova, concepção unitária e universante, uma episteme convocada por um telos, para continuarmos a servir-nos dos conceitos gregos. Mas o que é curioso é verificar como, através desta pintura, a "proto-história" da tradição europeia vem sofrer o cruzamento da milenar tradição chinesa, numa transculturação exigente de investigação e meditação crítica. Talvez por isto os artistas chineses se sintam tão à vontade, herdeiros de uma sabedoria que lhes transmite uma representação do mundo sempre e eternamente à deriva, em mudança, em fluência. Terão os seus autores consciência dos tão fundos antecedentes que reactualizam nas telas?

Interessa-nos, porém, mais agora, focalizar as emergências mais "superficiais" dos "transculturados" e as memórias convocadas.

Quando surgem, os pictogramas são exercício caligráfico abstracto, caracteres chineses reinventados puramente com valor pictórico, pictoricamente significantes, às vezes expressão gestualista da emoção poética.

Nalguns casos, entre o emaranhado gestualista (Carlos Marreiros) ou a fluência espontaneista das manchas e escorrências (Mio Pang Fei), inscrevem-se as figurações toscas ou grottescas (de gruta?) que nos põem perante primitivas memórias das duas tradições artísticas, ocidental e chinesa. São esboços de insectos, peixes, traços-fósseis do estádio primário da evolução biológica (C. Marreiros), ou caracteres, figuras, cunhos de inscrições tumulares, primeira arte e primeira arquitectura do homem em interrogação do sobrenatural (Mio Pang Fei). Inscrições de sabor rupreste que convocam ao plano do conceptualismo contemporâneo as reminiscências das mais remotas memórias da tradição ocidental e chinesa.

Na pintura, agora. Em Macau.

desde a p. 143
até a p.