Crónica Macaense

ÍDOLOS CHINESES
(Deuses e deusinhos)

Leonel Barros*

"Tradicional e irremediavelmente pagão, o povo chinês é o que mais divindades e semi-deuses venera. Cada casa é um templo onde o chinês, entre céptico e supersticioso, presta homenagem a uma longa lista de antepassados inscrita numa tabuleta denominada lin-pai, que em português significa "morada de espírito". Curiosa é a história do panteão chinês. E mais curiosa ainda é a sua arte sacra: os ídolos têm vísceras!"

O culto da memória dos antepassados, com carácter religioso entre os chineses, não difere na essência da devoção com que os portugueses, por exemplo, acendem velas diante de retratos de familiares falecidos.

Desde tempos remotos, os chineses veneram a memória dos parentes falecidos e o culto mantém-se nos nossos dias. Na tabuleta em que estão inscritos os nomes dos antepassados, reside a sua alma.

Na longa lista de divindades encontram-se as personagens mais ilustres da História chinesa, visto que, na maioria, os deuses chineses foram todos heróis, militares ou civis que prestaram relevantes serviços ao Império e foram, por isso, canonizados pelos antigos imperadores.

Os três mais antigos imperadores da China foram Fung-si, Seng-ling e Yuang-tei, respectivamente os deuses da música, da caça e da pesca. A seguir a eles, chega a vez de vários ministros reconhecidos pela sua fidelidade e sabedoria, dos quais se destacam Yan-in, modelo de abnegação e prudência; Kun-nen, cuja astúcia se tornou proverbial; Pai-kan, o homem mais talentoso havido em toda a China, depois de Confúcio, e a quem depois de morto foi mandado rasgar o peito por ordem do Imperador, a fim de verificar se existiam de facto no seu coração sete cavidades, como afirmava o povo.

Entre os generais canonizados, ocupa lugar de destaque Kuan-tai, o deus da guerra, homem tão corajoso e valente como indica o nome da sua espada - Yen-Yua-Tou - "espada que cobre a lua", porque uma vez erguida cobria este planeta.

T'chan-tei é outro general, irmão de Kuan-tai que, não lhe sendo inferior em valentia, tinha contudo pulso mais fraco. Por último chega a vez de Tchá-Ché-Long, companheiro de armas dos dois mencionados heróis, e não menos intrépido que eles; dizem os chineses que o seu corpo está cheio de fel. O fel representava, na antiguidade, o símbolo da valentia.

Entre os bonzos, cuja santidade de vida e costumes os elevou à categoria de deuses, há a citar, de preferência, os "oito imortais", conhecidos pelos chineses pelo nome de Pat-Tai-Sin, que adquiriram o dom da imortalidade pelo exercício, durante muitos anos, das mais austeras virtudes.

Deuses oficiais e deusinhos democráticos

Muito antes da dinastia Sung, os deuses chineses eram relativamente poucos, ainda que muito respeitáveis por terem todos uma história gloriosa. Nesta dinastia houve um imperador conhecido por U-Chi-Cheong que enriqueceu o Olimpo chinês com um grande exército de deuses e deusinhos, alguns com precedentes pouco recomendáveis como os quatro Chi-Lang- deuses da robustez - quatro gigantes muito brutos que cometeram na Terra toda a espécie de insolências, ladroeiras, assassinatos, desordens, corrupção, etc., até que, antes de morrer, se arrependeram de tantos desaforos. Todos eles se tornaram assim deuses exemplares.

Foi esse mesmo imperador quem divinizou Yu-Yang-Sang-Fei- imperador-pérola, rei-celeste - e lhe deu a soberania sobre todos os deuses, encarregando-o do Céu e da Terra. É ele quem recebe as notícias da Terra através dos deuses da cozinha (T'chan-Kuan) que têm o busto colocado por detrás do fogão, em cada habitação. Este Yu-Yang foi filho de um rei de Mai-lou e nasceu no dia 9 da 1a lua. Porém, antes de nascer havia já vivido, não se sabe onde, oitenta e um Chie (cada Chie é um número incalculável de anos). Desde o imperador U-Chi-Cheong, há mais de mil anos, até aos tempos actuais, os seus sucessores procederam com muita parcimónia na nomeação de novas divindades, ainda que não tenham descurado o assunto de todo.

Além destes deuses oficiais, cuja maioria são de nomeação do imperador, e que têm direito de serem adorados em todos os templos, há ainda um grupo de deusinhos democráticos que alcançaram sê-lo por aclamação popular.

Conta-se que a origem dos deuses chineses data de uma época relativamente moderna. E assim é.

No princípio, os chineses só adoravam o Céu e a Terra e alguns espíritos indeterminados. Os deuses actuais não eram ainda conhecidos na dinastia Yan (1280-1368).

Hauve um imperador desta dinastia, chamado Yu Ti que se envolveu em guerra com um rei da índia; apoderou-se de vários territórios e numa incursão que os seus soldados fizeram pelo país conquistado, descobriram uma estátua toda em ouro com cerca de 16 pés de altura, que enviaram ao imperador. Este, julgando tratar-se duma individualidade muito importante e poderosa, ordenou que fosse levada para um local e colocada sob a vigia de guardas. Não se enganou, pois que dias depois apareceu-lhe em sonhos um homem muito parecido com a tal estátua dizendo-lhe que era Mou-Lai-Fu, a vigésima encarnação de Buda. Após este sonho, o imperador ordenou a edificação de um templo em sua honra, no seu vasto jardim.

Budismo versus Confucionismo

Este tipo de templos foi-se multiplicando e enchendo de deuses de segunda e terceira categorias, e a maioria dos chineses, a exemplo do seu imperador, fizeram-se budistas, apesar das exortações dos literatos que continuaram fiéis à religião antiga.

Antes da sua introdução na China já existia o budismo indiano, sendo até considerado uma religião misteriosa. Através de traduções, em número crescente, o povo chinês passou a conhecê-lo cada vez melhor. Entre os tradutores sutras budistas destaca-se Chan Zang, monge da dinastia Tang (618-907) que estudou 17 anos na índia e que, regressado à China, criou uma seita budista chamada "Wei Si T'chong". Além desta seita surgiram ainda muitas outras seitas budistas, chamadas "Wei Chi Chong".

Além destas, surgiram também ainda na China muitas outras seitas budistas, e entre elas a seita Chan, que é a mais influente e representativa do budismo chinês. De início, a seita Chan propagou-se amplamente entre as gentes da camada social inferior e, mais tarde, foi acolhida pelos intelectuais. De qualquer forma, a sua influência sobre a cultura chinesa é muito menor do que a do confucionismo.

Mesmo assim, os literatos manifestaram-se contra a mudança religiosa atacando a nova religião, a que chamavam San-Chiao - religião de imagens - dizendo que era uma manobra do imperador a fim de incutir medo aos súbditos com a terrível majestade e ira dos deuses.

Para isso teria mandado pintar em todas as paredes dos templos imagens dos deuses, as mais feias e horríveis que o homem podia imaginar, e os artistas compreenderam logo a ideia do imperador, pois pintaram uns bonecos tão horrorosos que o povo assustado deixou de frequentar os templos só para não ver aqueles retratos diabólicos dos seus deuses, que tão grande medo lhes incutiam.

Os chineses, finalmente, como quase todos os povos pagãos, além de politeístas são também panteístas. Adoram o Céu e a Terra e personificam certos fenómenos da natureza, como o trovão, as tempestades, as inundações, os terramotos e os vulcões, vendo-se em toda a parte templos consagrados a esses entes divinos: ao deus do trovão, ao deus da tempestade, etc..

Deuses abstémios, bêbedos e vegetarianos

Os escultores chineses procuravam realizar o ideal que em vão tentam expressar os mais hábeis escultores da Europa, empregando todo o seu talento em comunicar, por meio do cinzel, como que um sopro de vida à matéria. Porém, nesta luta eram sempre vencidos, e se houve um escultor que tivesse conseguido fazer falar a estátua... esta deu-lhe por resposta o silêncio. Mas os escultores chineses sabem muito bem que uma estátua, por mais formosa e perfeita, não será capaz de falar, sem que primeiramente se lhe comunique o dom da fala. Por isso, mal acabado o trabalho nos seus ídolos, a primeira coisa que faziam era abrir-lhes os sentidos. É uma operação tão eficaz como simples. Diante do ídolo acabado de fazer coloca-se uma mesinha com dois pequenos púcaros com vinho, se este fôr um ídolo que goste de beber, claro. Nem todos os ídolos gostam de beber e possuem este vício. Se é um Buda, por exemplo, é necessário dar-lhe de beber chá, à semelhança do que se faz com o ídolo da Fome a quem se dá arroz. Feita esta preparação, diante dele, mata-se uma galinha, a não ser que o ídolo pertença à classe dos herbívoros, porque neste caso não se mata a galinha, que é substituída por uma sopa de vegetais, fruta e legumes.

O sangue da ave (no primeiro caso) espalha-se sobre a mesinha e a face do ídolo e, feito isto, o artista acende um rolo de papel começando seguidamente a traçar com ele alguns círculos mágicos à volta dos olhos do ídolo enquanto que vai dizendo: "Abram-se os teus olhos, nariz, boca e ouvidos! "Finda a abertura dos sentidos, está então o ídolo capaz de ter uma conversa com o seu autor.

Sentidos abertos

Já munido dos cinco sentidos, o artista introduz-lhe no tórax, através duma abertura feita nas costas, cinco fios de seda de cores diferentes, que lá dentro se convertem nas cinco vísceras, ou seja, coração, pulmões, fígado, rins e baço. Por essa mesma abertura enfia-lhe também o caule de uma planta, que são os intestinos; dois grãos secos de certo legume muito semelhante ao feijão, que servirão de telescópios ao ídolo e com os quais pode ver a uma distância de 100 léguas; um pequeno pedaço de madeira que faz de escada, para que ele suba ao céu quando lhe apetecer; duas bagas de certa planta, servindo de tímpanos que comunicam ao ídolo a virtude de ouvir o ruído mais pequeno que seja, e o mais longe que seja; um "cavalo-marinho" seco ao sol, que o ídolo utiliza para cavalgar no fundo do oceano sem que molhe as suas vestes, e alguns grãos de arroz e folhas de chá para que o ídolo não morra de sede e de fome durante a viagem.

No caso de se tratar de deuses cavaleiros serão sempre representados com os seus cavalos.

Depois de feitos, é também necessário dar vida a estes animais.

Para isso o escultor burrifa-os com chá ou água e na boca enfia-lhes alguns fios de palha para que não venham a sentir fome e sede, durante as fatigantes viagens.

Até aqui não temos mais que o corpo do ídolo. Falta-lhe ainda a alma. Essa é um espírito maligno do Kuai, que se une substancialmente a esse corpo formando um diabo... perfeitíssimo! •

T'ou Tei - Ilustração de Ung Vai Meng.

*Estudioso de Macau e publicista.

desde a p. 100
até a p.