Crónica Macaense

MACAU O EXÉRCITO E A CULTURA

Beatriz Basto da Silva*

Banda do Instituto Salesiano

O presente texto, agora publicado com breve revisão, foi lido pela autora em palestra da "Semana do Exército", no Leal Senado, em 21 de Julho de 1982.

Preceituam as tradições da Celebração do Dia do Exército em Macau, a existência de uma palestra de índole cultural.

É a primeira vez que a tarefa de elaborar essa palestra cabe a uma senhora e muito me honram V. Exas. por se terem lembrado da minha realmente humilde pessoa para esse efeito.

É também a primeira vez que me dirijo ao público de Macau na sua Casa do Povo. E não deixo de sentir o peso dessa responsabilidade, ao mesmo tempo que sinto poisados em mim os olhos atentos do passado. Na galeria de quadros que emolduram os salões deste Leal Senado, alguns dos quais neste momento nos envolvem, há mais do que o retrato melhor ou pior conseguido, a nível artístico. Há a História que nos contempla, numa dialéctica exigente de quem produziu as causas e espera os efeitos.

Conhecer a História de Macau é pois um ponto de honra, uma necessidade e um dever moral que se nos impõe, sob pena de, por ignorância, trairmos a expectativa e a esperança de que somos depositários.

De facto, só a ignorância do passado pode justificar, ou melhor, explicar a indiferença, a demissão perante as responsabilidades, a leviandade tantas vezes posta no tratamento da coisa pública. Muito da nossa maneira de estar actual neste Território daria uma volta de 180°, se me permitem a imagem, no caso de serem conhecidos, respeitados e assumidos pela consciência de cada um os passos gigantescos que os portugueses aqui empreenderam, desde o primitivo e frágil estabelecimento, até aos dias luminosos, seguros e prósperos que herdámos.

Aqui acrescentámos uma língua, daqui partimos para irradiar a Fé de Cristo e, através de ambas, alargar os parâmetros entre os quais oscila a dimensão do Homem, no Globo.

O universalismo Português encontra-se especialmente bem documentado em Macau. Apesar de próxima da vetusta cultura oriental, a praia onde lançámos o "padrão" dos nossos costumes, na China, pouco mais significava então, no recorte costeiro, do que um porto abrigado.

Determinadamente, os nossos maiores, endurecidos na escola disciplinadora que foi para nós o período dos Descobrimentos, desbravaram e adubaram o terreno difícil que se lhes oferecia, afeiçoando-se à estranheza do clima e das gentes, dando e recebendo, sem medida, estreitando laços, respeitando e fazendo-se respeitar.

Verões escaldantes e inclementes foram passando e, em cada ano, a brisa da Primavera vinha encontrar a povoação acrescida de casas, aumentada de embarcações aqui atraídas, enquanto uma sociedade de origem étnica variada preparava, sem o saber, este milagre de convivência que Macau é hoje.

Banda do Corpo da Polícia de Segurança Pública (1956)
Banda do Corpo da Polícia de Segurança Pública

Nem sempre foi fácil encontrar o equilíbrio, a justa proporção nesse desenvolvimento. Aliás crescer pressupõe crises que, uma vez ultrapassadas, são como o tufão tão nosso conhecido - limpam o ar!

A sobrevivência impôs atenção às potencialidades de cada grupo em presença, donde resultou o mútuo conhecimento e a entre-ajuda.

Macau conheceu a prosperidade desde cedo, mas também experimentou a guerra, a fome, a peste, o luto, provas necessárias para unir e criar a alma de um povo.

Não me sendo possível fazer uma busca aturada de documentação, no pouco tempo que tive para preparar esta palestra, optei por uma amostragem que faça transparecer as ocorrências desde o último quartel do séc. XIX ou um pouco antes, até ao presente, e mesmo assim com lacunas que me foi materialmente impossível suprir. Limitações de ordem pessoal me impediram ainda de considerar a cultura nos seus vastos campos. Escolhi a música e a sua ligação com o grande público. Essa ligação foi feita pelo elemento militar, organizador e impulsionador da primeira banda regimental de que há notícia em Macau.

À partida é preciso considerar as vicissitudes que sofreu entre nós a força da ordem, antes de se distinguirem os campos de acção que hoje existem. Compulsando a documentação afim, sabemos que, desde os princípios do séc. XIX, mais propriamente em 1810, havia o Batalhão do Príncipe Regente, que constituía a guarnição oficial da cidade mas que não bastava, pois se conhece a existência paralela de guardas particulares contratados entre os sipaios, primeiro de Goa, depois de Bengala. Não se fala, portanto, de Força Militar. Em 1841, é aprovado por Portaria Régia um regulamento policial. Mas 16 anos mais tarde foi criado, fora do e-quema anterior, o Corpo de Polícia do Major Honorário Bernardino de Senna Fernandes, mantido e alojado pelo ilustre macaense.

E pouco depois colhem-se referências à Polícia do Bazar, grupo civil sustentado por subscrição voluntária dos chineses interessados. Em 1869, é dada organização militar ao Corpo da Polícia, oficialmente instituído.

Se bem que procurada atentamente, não se encontrou até esse momento nenhuma banda regimental documentada, embora se comece a prever a existência de músicos. Apenas se sabe que no novo Regulamento do Corpo da Polícia, cuja escrituração era semelhante à do Batalhão de Linha de Macau, já se emitiam "notas musicais", cabendo essa tarefa a 3 corneteiros e um clarim!

Para o nosso ponto de vista, é pouco. Mas também como pedir mais, se os Batalhões passavam da criação à extinção ou à integração, numa contradança vertiginosa e instabilizadora!

Entretanto, o que não se impedia era que um Batalhão, por sua livre iniciativa, organizasse a sua bandazinha mais ou menos particular. E, sendo assim, aproveitou-se, como podemos ler num recorte do jornal "A Aurora Macaense", de 16 de Maio de 1843: "Foi o cazo Sr. Redactor. Pelas 9 horas da noite do dia de hontem. (...), gozarão de frescura e lindo luar, quazi todas as famílias d'esta cidade, e entre ellas a do Sr. Caetano António de Lemos, acompanhada de grande parte de sua Officialidade com suas famílias do lllmo Governador das Ilhas de Solor e Timor, a quem neste dia havia dado hum jantar, e de grande número dos seos amigos, e para mais regosijo o mesmo Sr. Lemos tinha chamado a muzica do seo Batalhão para tocarem algumas peças. Erão tocadas duas ou três, (...) eisque aparece hum militar de baioneta, e Espada; era o Sargento da Guarda Principal, que por ordem do Sr. Governador exigia dos muzicos a razão por que tocavão depois do toque de recolher: (...) Os assistentes hião-se apinhando a roda; porem eu, (...) retirei-me da multidão, a pensar, no que poderia ser. Ora pensava que o Sr. Governador não queria ouvir muzica, ora que havia alguma ordem recente para se não tocar de noite; (...) Eu não quiz izentar-me de vero rezultado. Vi...! Mas vi o que!... O que nunca vi em tempo algum. Vi metidos n'huma escolta de Soldados, prezos os pobres muzicos, que outra culpa não tinhão talvez, que divertirem o publico por conta do seu Comandante.

Vi, e vio Macao inteiro os muzicos arrebatados ao publico por huma Patrulha, e a poz elles, o Sr. Comandante com sua família, e comitiva voltarem de cabis-baixo (sic).

Como eu não sabia se a prizão foi justa ou injusta, espero que o Sr. Redactor tenha a bondade de me dar alguns esclarecimentos, por que de vez em quando também gosto de tocar ao luar, e agora receio hir.

Da sua folha sou Sr. Redactor constante Leitor.

Hum Habitante de Macao"

Ó música, a quanto obrigas!

Interessante será também adivinhar, ou prever, o tipo de composições escolhidas para esses concertos de jardim; para isso, temos que lançar as vistas pela cidade e colher, em 1858, a notícia da fundação do Clube e Teatro D. Pedro V, logo seguida do seu aproveitamento para sessões musicais, entre outras, e a vinda da Companhia de Ópera Francesa e de Ópera Italiana. Como meros exemplos que são da agenda social mais restrita, não os vamos desenvolver; mas que influenciam os gostos, sem dúvida, de modo a imaginarmos as noites de Verão no Jardim de S. Francisco como uma mistura de folhagens e tafetás frescos, sorrisos, leques e murmúrios, troca de olhares românticos e fumos leves de charutos de Havana, entrelaçados com árias de Verdi, Bellini ou Donizetti!

Já então existia também a Banda Marcial dos Alunos do Seminário. A Música estava, portanto, a querer crescer. Como não havia televisão, estas sessões ao ar livre atraíam e começaram a ser exigentes.

Entretanto, inicia-se a viragem para a Banda Regimental.

A nova Música do Batalhão de Infantaria, mal surge, em 1871, está ocu-padíssima. É chamada para fazer os toques de alvorada e recolher, para tocar os hinos convenientes por ocasião de aniversários, procissões ou outras solenidades públicas e privadas.

Não admira pois que o gosto nas-cente pela música "agarrasse" a oportunidade de haver um agrupamento, forçando-o a preparar-se melhor e a apresentar-se regularmente em público.

É assim que se explica a divulgação, através do próprio Boletim da Província, no seu número de 6 de Julho de 1872, do 1° Programa da Banda do Batalhão de Infantaria. Tímido ainda, pois não anuncia o local, nem a hora, nem os autores das peças, nem o nome do regente, mas de qualquer forma expressivo; duas sessões, com 5 peças cada, portanto 10 peças e todas diferentes, já é um bom começo.

Que a Música é um ponto de encontro, é universalmente aceite, pois não exige o conceito tradicional de língua, para se transmitir, embora pressuponha um tipo de linguagem. Por isso mesmo os músicos militares chegados de Portugal expressamente para completar e dirigir a Banda Regimental, vieram encontrar-se e entender-se com elementos locais, perfeitamente motivados nesse domínio. A pouco e pouco, este valioso agrupamento aumentava o número dos seus componentes, acrescentando-lhe mais macaenses, chineses e indianos, não só recrutados em Macau, como em Hong Kong.

E se a técnica podia, de início, não ser primorosa, não faltavam o esforço, a dedicação e os diversos padrões que a cidade ia oferecendo para aferir e aperfeiçoar a qualidade. A Missa Dominical, na Sé, por exemplo, proporcionava a au-dição de boa música, executada pelo professor do Seminário Diocesano, Sr. José Ponatti, no então considerado melhor órgão da Ásia (da famosa oficina Bernasconi de Verese, perto de Milão).

Ao longo de todo o ano de 1875 iam sendo publicados semanalmente os programas da Banda do Batalhão. Por vezes é incluída, entre polkas e valsas, alguma quadrilha de Goa ou fantasia Africana, não se excluindo solos de requinta e números corais. Mas o forte da Banda era, e continuaria a ser por muitos anos, a adaptação de árias de ópera e opereta, com destaque especial para "Lúcia de Lammermoor" e a "Filha do Regimento".

Surge, entretanto, um dos muitos solavancos que atingem a História da Banda de Música em Macau. Justamente após este ano de laborioso e profícuo esforço, o Batalhão de Infantaria é extinto.

A insegurança da instituição varreu o entusiasmo. Havia a possibilidade de transferir os músicos para o Corpo Policial, como de facto se fez; o Regulamento (de Fevereiro de 1886) preceituava que os praças fossem: europeus; filhos de Macau; filhos da Índia, e só nas faltas, chinas "engajados" temporariamente. Não era simples, portanto, manter os músicos chineses; licenciá-los, por outro lado, fazia falta à Banda. A temporada musical sofreu um duro golpe. Seguimos até aqui quase exclusivamente informações fornecidas pelos Boletins da Província.

O período imediato, de 1887 a 1891, foi-nos também documentado pelo Fundo Arquivístico da Administração do Concelho. E não se diga que a Banda, aindaque reduzida em número, não tinha que fazer.

Possuímos uma interessante notinha anónima com o preçário dos serviços dispensados a propósito de funerais: se eram para perto, $ 25,00 patacas; se longe, $30,00.

Quanto a procissões, não havia uma só confraria que, chegada a altura, não apresentasse à Secretaria Geral do Governo o pedido de Guarda de Honra, com a Música da Guarda Policial.

Mas há já muito que não se ouviam as notas garridas que atraíam a garotada para "ver a banda passar"...

E assim crescendo, esse desejo fez renascer as sessões ao ar livre, que tanta graça e frescura davam à cidade. Que bom retomar de novo o hábito do passeio, para revisão e "digestão" do dia, depois da última chícara de chá, tomada à mesa do jantar!

Em 1895, a Guarnição Militar reividica, à luz de nova reforma, os anteriores domínios musicais, que a Guarda Policial detivera nos últimos 9 anos.

Creio que gostarão de saber como era composta uma Banda Regimental naquele tempo, e é-me fácil satisfazer essa curiosidade; nada mais do que:

1 Mestre de Música

1 Contramestre de Música

3 Músicos de 1a classe

4 Músicos de 2a classe

8 Músicos de 3aclasse

8 Aprendizes de música

3 Corneteiros

4 Músicos de Pancada, e

8 Contramestres de Corneteiros

40 elementos... em teoria!

Como tudo o que é acarinhado, a Banda encontrou compreensão e transformou-a em entusiasmo; compenetrou-se da sua missão.

Nota-se mais disciplina, outra organização, muito empenhamento.

O Boletim Oficial recomeça a anunciar os programas, e é vê-los variar, chegando a preparar-se 3 concertos por semana, num total de 24 peças fora os hinos, todas diferentes. O local agora já é anunciado.

A Banda da Guarnição, instituída como Banda Militar a partir de 1901 (B. O. de 14 de Novembro), apresenta uma qualidade que não se pode comprovar, mas é legítimo pensar que agradava, caso contrário não se esforçaria tanto. Os autores das peças começam a figurar no programa, o Século XX é saudado com uma marcha original no 1° concerto de Janeiro, um tal Melchor Vela compõe o "Hino do Leal Senado e ao Povo de Macau", um macaense apresenta a sua peça "Expedição a Macau em 1900", enfim, a mensagem cultural da música atinge a população, torna-a criativa e espiritualiza-a.

Conjunto do Corpo da Polícia de Segurança Pública (c. 1957)
Banda da PSP ( c. 1958)

Apesar da emulação em termos educativos estar a sofrer modernamente duros ataques, a verdade é que ela tem sido de muita eficácia para o rendimento da natureza humana, ao longo da História. Vejamos se o não foi quando a Força Policial se viu despojada da sua Banda a favor da Guarnição Militar! Não se conformando com a perda, conseguiu organizar o seu próprio agrupamento musical, que passou a exibir-se a par da involuntária dissidente, como nos provam os documentos da 1a década do século. E mais, toma o nome de Orquestra do Corpo da Polícia, e dedica-se a um reportório mais ligeiro e suave que lhe dá acesso às recepções e bailes no Palácio do Governo.

O gosto pela música alcança cada vez maior amplitude, e a hora dos concertos é esperada, com impaciência.

A ssim surgiu a Banda Civil, a cargo do Município. Fácil é imaginar donde provinham os músicos.

A nova Banda Municipal arranca com qualidade, tendo como maestro, o Alferes Eusébio Francisco Placé, macaense dedicado à música, que chegou a deslocar-se a Lisboa para aperfeiçoar os estudos; homem metódico, exigente, entusiasta. Para lá de algumas composições de sua autoria, é de crer que fossem também criação sua os arranjos para vários instrumentos, cujos manuscritos pude manusear há alguns dias, graças à amabilidade do Irmão Fantini, do Instituto Salesiano.

A Banda Municipal tem então cinco anos de recuperação e de trabalho sério. Pensa-se que Placé ensina teoria musical, contraponto e harmonia. Faz para sua própria orientação a cópia, integral e à mão, de um Compêndio usado no Conservatório Nacional de Lisboa, da autoria de Eugénio Ricardo Monteiro de Almeda. A Banda reveste, desta forma, a função de escola de música. O regente manda vir peças com gosto, adapta-as, ensaia-as e apresenta-as, mantendo na edilidade e no público franca satisfação pelo serviço prestado.

As obras executadas deixam de ser, portanto, exclusivamente as tradicionais, cedendo-se um pouco de lugar à criatividade local. Como exemplo temos a dança macaense "Pantomima", a quadrilha de inspiração indiana "Recordação do Mandovi" ou o galope "Mandarim".

Isso sem prejuízo da divulgação da música das grandes óperas e bailados. O público familiariza-se com Mascagni, Puccini, Wagner, Offenbach, Delibes, Strauss... entre outros.

Quando cheguei a Macau, vim co-nhecer um ancião venerando, pessoa culta e de óptima memória, que recordava com saudade os concertos da ban-da, no coreto do Jardim Público. À custa dessas Reminiscências, sentávamo-nos, o Avô e eu, na varanda, ao fim da tarde, trauteando animadamente passagens de Verdi, que era o compositor da sua predilecção. Sempre me intrigou como é que ele conseguia cantar afinado, pois quase já não ouvia. Mas isto é apenas uma referência de passagem, para provar como as pessoas guardavam na força dos anos um caudal de riquezas espirituais para enfrentar a solidão da 3a idade, e para mostrar como podiam ficar e ficaram motivadas para a música. Como elas poderão continuar no futuro a ficar, se...

Mas voltemos a 1917. No final do ano, Placé, que já se tinha ausentado nos meses de Verão, sendo então substituído pelo regente Mathias, embarca num navio de marinha mercante, sabe-se lá por que motivos, deixando a Câmara perplexa com a escolha dum novo director para a Banda. Ficou em seu lugar, como interino, o músico de 1a, João Damasceno Fernandes, a quem não era reconhecido nem o esforço, nem a garra do regente anterior. É pelo menos este o desabafo do munícipe Dr. Nolasco da Silva se bem que, pela nossa parte e pelo que nos foi dado observar em notícias várias, o Sr. Damasceno fosse cumpridor; para oferecer 24 peças semanais, o pobre senhor desfazia-se em tarantelas, boleros, valsas e zarzuelas... e nem assim agradava. Admito que lembrasse o funcionamento regular e monótono de um relógio. (Só o luto pelo atentado a Sidónio Pais quebrou a cadência dessas audições!)

O Leal Senado é que não andava contente; queria pessoa mais vibrante, mais artista! Pensou em Constâncio José da Silva, mas este apresentou um programa ambicioso que envolvia muitas despesas e exigências, além de que não poderia pôr toda a sua habilidade ao serviço da música, porque já era um homem dividido, advogado e jornalista, dirigia teatro, era Procurador, Delegado, Secretário do Governo... De modo que, ao que parece, não se chegou a acordo.

A Câmara ainda pensou num maestro filipino. Sabe-se que o Sr. Isidoro Maria da Costa, agente duma firma importadora de músicas e instrumentos musicais em Hong Kong, também se interessou, e vivamente, pelo lugar de regente da Banda Municipal. Na carta em que se oferece, envia parte de um curioso catálogo americano de instrumentos; e curioso duplamente, pela nota de modernidade técnica e pelo tipo de negócio que o Sr. Costa antevia, podendo fazer a si mesmo as encomendas que entendesse serem "úteis", caso assumisse a regência da Banda.

O certo é que quem, em 16 de Julho de 1919, tomou o lugar por dois anos, foi Aléssio Bénis. Era um súbdito italiano chegado de Londres como director musical de um Circo muito afamado que estava actuando em Hong Kong.

A Banda Municipal passou a ter cerca de 26 elementos, mais militares do que civis; fazia anualmente uma despesa na ordem das 16 000 patacas; o Estado subsidiava o organismo. Aléssio remodelou a parte instrumental, mas teve que enfrentar graves problemas internos. De facto, a situação dos elementos militares "dados em diligência à Banda Municipal que estava adida à Câmara" cria descontentamentos, sobretudo notáveis no sector de vencimentos e passagem de licenças. A Câmara pega naqueles que lhe parecem cabecilhas do movimento e pede a Aléssio que os substitua por civis. O maestro entra em pânico, pois se trata precisamente dos elementos mais valiosos e indispensáveis. E como tal não bastasse, começam "a chover" as queixas de fora, por causa da falta de qualidade que as circunstâncias ditavam.

O jornal "O Liberal" ataca sem piedade (8 de Maio de 1920): "(...) Sr. Aléssio Bénis, há 8 meses na Banda Municipal, ainda não a preparou para fazer de orquestra em bailes. Já teve tempo de mandar vir da América, Fox-Trotes, One-Steps, etc. e nada. Nem prepara a banda nem muito menos a pequena orquestra municipal de que se falou. Quando se requisita a meia-banda para jantares, ainda se nota mais como está decrépita. Com tanto relaxamento e incompetência começam a afugentar-se os frequentadores dos jardins!..."

É demais! O Leal Senado reúne e delibera acabar com este encargo, tanto mais que ele se inscreve nas " Despesas Facultativas" do Orçamento. Paciência para a música e para os músicos! Os militares regressam à anterior situação e os civis são despedidos, pois não há com eles qualquer contrato. Aléssio é pago até ao fim dos 2 anos combinados e a Banda Municipal é extinta em sessão do Conselho de Governo, de 28 de Dezembro de 1920. Uma voz bradou contra esta extinção, e foi a do Pe. Jacob Lau, Vogal do Conselho de Governo; mas, sozinho, foi vencido.

O povo de Macau não abdicava facilmente da sua música a nível oficial como se pode ver pela tentativa de criar uma Banda, Sexteto e Orfeão musicais, que o Ministério das Colónias não aprovou (in "O Combate", de 22 de Maio de 1924).

Várias bandas e agrupamentos congéneres foram cobrindo esta época de instabilidade. Os jornais falam-nos da Banda dos Salesianos, da Orquestra do Seminário de São José, etc...

Quanto aos músicos militares, a sua dispersão é mais teórica do que real. Encontramo-los integrados na orquestra do Novo Teatro de Macau (na Rua do Hospital) e, possivelmente a título particular, constituíam aquela Banda que as confrarias continuavam a requisitar para Missas, Procissões e Enterros, entre 1924 e 1927.

Mal se dera a extinção da Banda Municipal, o Chefe dos Serviços Militares, Ten. Coronel Eduardo Ferreira Viana, procurou reorganizar uma outra em sua substituição. Também o jornal "A Verdade", de 14 de Agosto de 1927, copiava do "A Pátria", de 12 do mesmo mês, o que já faz 2 correntes de opinião, o seguinte: "Macau podia e devia ser um pequeno meio artístico, que agora, por exemplo, suavizaria as agruras de um meio cativeiro! Pois nem sequer existe uma Banda Municipal ou do governo que aos Domingos e 5a s feiras, quebre a monotonia cinzenta de todos os dias, sempre iguais, sempre os mesmos". Os esforços unidos vão resultar, conforme se pode deduzir de outro artigo de "A Verdade", no seu número de 14 de Janeiro do ano seguinte, sobre uma audição na Avenida Vasco da Gama: "A Banda Policial tem feito progressos". Toca, logo existe! Concluímos! E o artigo acrescenta: "Pena é se tal Banda desaparece. Será possível que se negue ao povo de Macau, amante por excelência de boa música, o prazer espiritual que, mercê de bons e dignos esforços, há uns quatro meses esta excelente Banda lhe vem proporcionando, prazer que até as mais sertanejas terras de Portugal hoje disfrutam?! Custa a acreditar... Mas, então o que é o povo de Macau no conceito de certos influentes do Terreiro do Paço?"

As questões com a Banda Policial de Macau continuam. Tinha ela sido criada por iniciativa do Clube de Corridas, sob a regência de João Franco, me diante uma Portaria do Governo; outra Portaria do Ministério das Colónias a rejeitou! (n°5: 113, de Dez. 1927). Tal rejeição não a afectou na prática, pois com o título de Banda de Macau, não só tocava na mesma, como tocava para o Governador, até que dela tomou conta Constâncio José da Silva.

É então que o conceituado maestro é de novo convidado para uma Banda. Mas que Banda, no meio de toda esta guerra? A Banda Municipal, cujo renascimento foi publicado nos B. O. n°s 24 e 25, de 1928. Os veteranos eram reintegrados e Constâncio, apresentando o seu relatório - julgamos que o mesmo que outrora o forçara à desistência - é agora compreendido, e aceita o encargo, tanto mais que já está reformado. Mas, tal como ele, outro competidor dos velhos tempos surge na liça. Trata-se do vendedor de músicas e músico, ele também, Sr. Costa, de Hong Kong. O jornal "A Verdade" guardou para a posteridade a prosa acerca deste desacerto. Isidoro da Costa apenas conseguiu atrasar o processo, mas não impedir a ascensão de Constâncio ao lugar.

E assim se volta ao ritmo de duas audições semanais, ora em S. Francisco (com coreto novo), ora na Avenida Vasco da Gama, para onde são requisitados melhor iluminação e mais bancos. Entretanto chegam instrumentos novos e até ao final de 1928 "tudo corre pelo melhor, no melhor dos mundos".

Todo o ano de 1929 é uma festa portuguesa; a Banda agrada, os jardins são frequentados à hora da música, a qualidade é evidente. E a prová-lo há um espontâneo entusiasta que sobe ao coreto para felicitar o Sr. Constâncio da Silva, e que depois se apresenta como director e organizador das audições musicais numa estação radiofónica de S. Francisco da Califórnia!

A popularidade dos trechos executados é comprovada pelo sistema inaugurado de "discos", perdão, números pedidos pelos ouvintes! Os concertos, como se disse, dilatam-se ao longo de todo o ano, com o agrado da população que acorre a ouvir a música pela música, e não só como melodia de fundo em passeios públicos.

É uma época de certo modo sofisticada, que colhe louros mas não acautela o futuro. Pressente-se-lhe a fraqueza até na linguagem: é a "soirée masquée", no Carnaval, as "Mlles.", os "ha-bitués", o "jazz", o fonógrafo, o pó-de-arroz Belkiss, as tosses rebeldes, o cosmético "kissproof", as discussões sobre a flutuação de valores na Bolsa e os projectos de férias nos luxuosos paquetes da N.Y.K. Line (Nippon Yusson Kaisha).

Os anos trinta e quarenta não serão de pura inactividade, mas, a respeito de Bandas Musicais, pouco ficou registado. As agitações bélicas têm sempre repercussões sociais e no domínio da música perde-se a dimensão popular, embora se continue a cultivá-la em moldes mais restritos, que a salvaguardam e a transmitem.

Em 1950, é formado o Círculo Cu-tural de Macau, após uma série de artigos publicados em "o Clarim" e no "Notícias de Macau", pelos Capitão Manuel Pimentel Bastos, Tenente Hernâni Anjos, Alferes Marques Pinto, e outros entusiastas. Esta instituição divulgava artigos culturais através da revista "Mosaico" e difundia via rádio numerosos programas musicais elaborados pelo saudoso Luís Gonzaga Gomes. Teve 7 anos de vida fecunda e pergunto a mim mesma: em nome de que modernidade lhe foi retirada a existência? Por que se perderam este e outros exemplos de colaboração militar-civil na cultura dos nos-sos dias? Eis um ponto a meditar e... a tentar resolver.

A partir de 1 de Abril de 1951, a Banda reaparece, integrada na P.S.P. É composta por jovens, entre os 17 e os 20 anos, vindos do Colégio D. Bosco e do Instituto Salesiano. O regente, mestre Testa, é italiano. Sucede-lhe um 1° Sargento que não deixa história e, em 1958, qualquer força fantástica vem apoiar a música: Por acção do Capitão Dias da Silva, a Banda e a Fanfarra da Polícia chegam a reunir 75 elementos, que ou se dispersam ou são integrados em outras actividades quando acaba a comissão do oficial animador.

Em 1960, todos os instrumentos e acessórios da Banda da P.S.P. foram emprestados para uma récita de Carnaval, em "patois", no Clube de Macau. O regente, como atestam as fotografias, levou o papel a sério. De batuta erguida, suspendendo o olhar de todos os "músicos", Alfredo Silva evocava os "bons velhos tempos" como que a querer chamar por eles de novo.

Conta quem viu que a Banda actuou com "muita elevação". Simplesmente não era a verdadeira. Essa, estava-se debatendo com sérios problemas de sobrevivência.

Deram-lhe a mão, sucessivamente, o maestro César Brianza, a Obra Social da Polícia, e os vários ofícios expedidos às entidades superiores, pedindo a renovação desde a raiz.

O processo das lamentações sobre o mau estado da Banda chegou enfim a um ponto positivo, quando se verificou que a Banda é formada por músicos e que os músicos são pessoas! Há que as atrair, cativar e compensar.

Em 1979 fez-se um longo e bem elaborado estudo da situação. Propuseram-se várias modalidades de admissão de novos elementos, a enquadrar numa orgânica própria a equilibrada, e apontou-se a necessidade imperiosa de requisitar de Portugal um Oficial especializado, após criação do respectivo lugar no Quadro Orgânico.

Banda da P.S.P (c. 1957)

A Banda da P.S.P e o seu Chefe, J. A. Pinto de

A Banda do Corpo da P.S.P. seria colocada ao nível do Comando das F.S.M., muito embora os seus elementos continuassem a pertencer àquela Força de Segurança.

Como sempre acontece, e isto é uma lição para cada um de nós, uma proposta bem fundamentada facilita a acertada decisão superior. O Governador, ao tempo Melo Egídio, concordou, autorizou e mandou dar andamento à proposta, podendo ler-se, não muito depois, a nomeação do Sargento-Ajudante Músico, José Amável Pereira Pinto de Sá, para regente da Banda da P. S. P.

Trata-se de um prometedor elemento, Director de Orquestra de elevados recursos musicais, com um já longo e ilustre curriculum, em Portugal, comprovado por diplomas, e por diversas notícias de jornais que tivemos a ocasião e o prazer de ler.

O competente e activo maestro "lançou mãos à obra", recrutando os primeiros 7 músicos na Polícia e no Centro de Instrução Conjunta e, sem esmorecer, foi procurando mais, com um dinamismo de que só o Amor pela Arte é capaz. A remodelação dos instrumentos veio ajudá-lo. E já que só com empenhamento sério o resultado seria válido, lutou pela especialização dos músicos tanto a nível técnico como administrativo, propondo, para um aspecto, concursos com provas práticas (e preparação adequada), e para outro a oficialização dos quadros próprios, o que conseguiu em 31 de Dezembro de 1980.

Assim se explica o êxito obtido em tão pouco tempo pelo agrupamento a cargo do maestro Pinto de Sá**. A falta de perspectiva temporal creio que justi-fica o silêncio a que se remete uma apreciação mais vasta. Outros, depois de mim e com mais clarividência, o farão. O certo é que a já longa vida das Bandas Musicais em Macau provou-nos que neste campo, como em muitos outros em que o Homem se empenhe, há épocas de entusiasmo, de força criadora, e de desânimo gerador da decadência.

Mas também sabemos como é actuante o poder da razão e da força de vontade. Se achamos utilíssimo o alicerce musical no edifício da cultura, e se temos de momento o concurso de circunstâncias não só favoráveis como fecundas em realizações, não será de tomar o exemplo da História e de vigiarmos atentamente qualquer sinal de ruptura? Não merece Portugal tudo, e muito mais quando se trata de conservar a cultura portuguesa longe da Pátria?

Não temos exemplos brilhantes de luta pela lusitana presença nesses olhos vindos do passado e que nos fitam com agudeza, exprimindo um apelo mudo mas enérgico, pois atinge a nossa consciência?...

Ouçamos esse apelo que nos diz:

Conhecei a História e sede consequentes.

"Levantai, hoje de novo, o esplendor de Portugal"!

PARTE NÃO OFFICIAL

MACAU,4 DE SETEMBRO DE 1875

BANDA DE MUSICA DO BATALHÃO

DE INFANTERIA DE MACAU

PROGRAMMA

Domingo,5 de setembro de 1875

1. ° Passo dobrado;

2. ° Duetto d'opera Favorita;

3. ° Schottisch;

4. ° Cavatina, aria Letricia;

5. ° Caçunetto;

6. ° Graud Selection Donna del Lago;

7. ° Valsa;

8. ° Hymno do S. M. EI-Rei D. Fer-nando.

Quinta-feira, 9 de setembro de 1875

1. ° Passo dobrado;

2. ° Aria Amelia opera de masnadier;

3. ° Mazurka;

4. ° Fantazia africana;

5. ° Quadrilha de Gôa;

6. ° Baile de mascaras;

7. ° Tango africano;

8. ° Hymno de S. M. a Rainha D. Maria Pia.

Domingo, 12 de setembro de 1875

1. ° Passo dobrado ;

2. ° Grande Selection d'opera Luiza Miler;

3. ° Schottisch;

4. ° Selection Dom Pasquela;

5. ° Valsa;

6. ° Aria d'opera Trovador;

7. ° Polka;

8. ° Hymno de S. M. El-Rei D. Luiz.

Récita de Carnaval em "patois " (1960)

**Nota da autora: Não menor tem sido o sucesso obtido pelo actual maestro, Abel Teixeira Mendes (1988).

*Licenciada em História (Univ. Coimbra); investigadora da História de Macau e da presença portuguesa no Oriente.

desde a p. 87
até a p.