Filosofia

Um bispo de Malaca tio de Garrett

P.e Manuel Teixeirae Manuel Teixeira*

D. Frei Alexandre, segundo pintura da época

Trata-se do virtuoso D. Frei Alexandre da Sagrada Família, ilustre açoriano e mavioso poeta, que nasceu na Horta, Faial, em 22-5-1737 e morreu em Angra a 22-12-1818. Foi tio e preceptor de Garrett.

O nosso amigo Pedro da Silveira na sua "Antologia de Poesia Açoriana - do séc. XVIII a 1975", diz dele: "Missionário, bispo de Malaca e depois de Angra (até hoje o único açoriano que o foi e o mais ilustre e digno de quantos o foram), escusado será talvez pôr aqui que se trata do confessor e amigo de Alcipe, tio de Garrett e seu mestre de poética, entre os árcades lisbonenses Sílvio". Como todos sabem, Alcipe é a marquesa de Alorna e há uma Epístola a Alcipe, escrita por D. Alexandre com o pseudónimo de Sílvio.

A "Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira", seguindo na esteira de Silveira Macedo e Ernesto Rebelo, afirma que ele se formou em Coimbra: "Como revelasse excepcional inteligência e disposição para o estudo, sua família trouxe-o para o continente e matriculou-o na Universidade de Coimbra, onde se formou em Filosofia no ano de 1759". Isto é falso, pois D. Alexandre não teve nenhuma formatura universitária, segundo demonstrou Ferreira de Serpa no seu livro "D. Fr. Alexandre da Sagrada Família" (ver pág.8).

Nem dela precisou para se tornar um sábio, digno de ser nomeado em 1791 sócio correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa. Essa ciência adquiriu-a ele no remanso da clausura do convento de N.a Senhora dos Anjos, dos Menores Observantes Reformados, de Brancanes, em Setúbal, aonde entrou como noviço em 11-6-1761 e onde professou em 13-6-1762, continuando pela vida fora o seu "honesto estudo", como fez Camões. Um dos seus sermões em 1771 na festa do Corpo de Deus, em Beja, provocou polémica teológica, saindo-lhe à estacada Fr. Bartolomeu Brandão, que criticou certos passos desse sermão.

Como bom franciscano, esmolou de porta em porta em Lisboa e no Alentejo, e meteu-se numa aventura que não é para todos: foi a pé de Lisboa a Roma e obteve do Papa que o seu convento ficasse isento da jurisdição dos superiores da Província de S. Francisco dos Algarves e submetido directamente à Santa Sé.

Foi eleito bispo de Malaca em 24-10-1781, confirmado pelo Papa em 16-12-1782 e sagrado em 24-2-1783 na igreja da SSma. Trindade de Lisboa.

Malaca estava ocupada pelos Holandeses desde 1641; e durante o domínio destes calvinistas a Religião Católica foi perseguida, não podendo lá residir nenhum bispo. Durante esse período, os bispos portugueses de Malaca iam residir em Timor. Foi isto que fez o seu antecessor, o dominicano D. Fr. Gerardo de S. José, bispo de Malaca (1747-1760), o qual passou por Macau de caminho para Timor em 1749. Ali faleceu repentinamente em 1760 ou 1761, envenenado, ao que parece, por outro dominicano, Fr. Jacinto da Conceição, que tomou posse do governo da colónia, para que fora nomeado D. Fr. Gerardo. Misérias humanas!

D. Frei Alexandre não foi para Malaca nem para Timor, sendo transferido para a diocese de Angola e Congo por bula de 24-2-1783. Ali conseguiu que o rei do Congo voltasse ao seio da Igreja, que abandonara, e prestasse vassalagem ao rei de Portugal.

D. Alexandre opôs-se ao Capitão-general de Angola, barão de Moçâmedes, que pretendia ingerir-se na jurisdição eclesiástica.

Esta atitude desgostou o governo da metrópole, que pôs entraves à execução da confirmação de D. Alexandre. Em face disto, o bispo abandonou secretamente a sua diocese e regressou ao seu convento de Brancanes.

Em 1811, foi ao Rio de Janeiro pedir ao regente D. João o deferimento de certas pretensões de seu irmão, António Bernardo da Silva Garrett.

O regente despachou-o favoravelmente e nomeou-o bispo de Angra em 17-12-1812, mas o cabido opôs-se e ele só tomou posse mais tarde.

Faleceu em Angra com 85 anos de idade.

Deixou muitas obras, todas manuscritas, sendo apenas publicadas as seguintes:

Devoção das Dores da Virgem Mãe de Deus, por um seu devoto (1782), sendo publicada uma segunda edição em 1817.

Epístola a Alcipe, publicada a pág. 213 do Tomo I das Obras Poéticas da marquesa de Alorna.

Pastoral do Bispo de Angra, dirigida à reverenda vigairaria do convento de S. João Evangelista de Ponta Delgada na ilha de S. Miguel, publicada no Investigador Português, n° 68, pág. 488, Fev.1817.

Pastorais ao Clero da Diocese de Angola e Congo, no Jornal de Coimbra, n°84 e 85, 1820.

Poesias, publicadas por Ofélia M. Caldas Monteiro em D. Frei Alexandre da Sagrada Família, a Sua Espiritualidade e a sua Poética, Coimbra, 1974.

Da pág. 216 vamos transcrever a poesia de D. Alexandre, intitulada:

A meninice

Da bela natureza

Que viçosa frescura! o vício feio

Não a pode abafar co'as negras asas,

Murchar c'o bafo ardente.

A paz, filha do céu, repoisa n'alma,

A alegria no plácido semblante

Do tenro pequenino.

A saraiva cruel assole os campos,

Ou torrada a seara as esperanças

Do lavrador desminta.

Negros fumos espalhe sobre as terras,

De humano sangue tinja as águas claras

A guerra assoladora.

Junto à fonte brincando, alvas pedrinhas

Ajunta e lança ao rio sem cuidado.

De rosas, de mosquetas,

Co'a murta verde tece uma capela

Para a mãe, que nos braços o agasalha.

Que beijinhos tão doces

Em os beiços maternos colhe alegres!

Se pudéreis voltar, dias antigos!

*Laureado historiador de Macau, da presença de Portugal e da Igreja no Oriente, com mais de uma centena de títulos publicados. Membro da Academia Portuguesa de História e de várias associações e instituições internacionais, v. g. a Asociação Internacional dos Historiadores da Ásia

desde a p. 49
até a p.