Linguística

Os objectos de Álvaro de Campos

António Tabucchi*

Álvaro de Campos, por Almada Negreiros (mural da Faculdade de Letras da Univ. Lisboa)

Com a publicação deste primeiro texto sobre Fernando Pessoa, RC pretende assinalar também o centenário do nascimento do Poeta (13 de Junho de 1888), e dar um pequeno contributo, com as suas edições nas Línguas chinesa e inglesa, à divulgação de uma obra que alcançou já dimensão universal.

"Poderíamos dizer que há duas malas na vida de Pessoa: Uma mala de manuscritos, que é a arca, e a mala de Álvaro de Campos.

É indicativo que Almada Negreiros, na sua iconografia pessoana, tenha reparado neste objecto, fundamental para a personagem Campos".

A figura de Campos pintada por Almada na fachada da Faculdade de Letras de Lisboa leva de facto uma mala na mão esquerda. Ora pense-se na quantidade de informação fornecida por essa mala. Ela indica vagabundagem, é evidente, o homem sem fronteiras, mas também o estrangeiro da geografia e da existência; e para o engenheiro algarvio formado em Glasgow e poeta em Lisboa, essa mala é muito mais do que um acessório. Mas esta mala não viajou apenas duma maneira extra-textual, quer dizer, como atributo de uma personagem de ficção. Não, esta mala viajou mesmo textualmente. Embora num certo ponto a encontremos «aberta, esperando a arrumação» (Grandes são os desertos e tudo é deserto, 1930), esta mala esteve na cabine de um transatlântico que regressava do Oriente através do canal do Suez (Opiário). Como terá sido esta mala? Podemos supor que fosse uma mala de coiro, muito elegante e com uma certa patine, à maneira de Lord Brummel? Tudo leva a crer que sim, vistos os objectos que ela contém. Mas vamos por ordem. Há, em primeiro lugar, uma mala. É a mala hipotética de Álvaro de Campos. Dentro dessa mala há uma mala real, no sentido textual, na qual também cabe o próprio transatlântico em que a mala está a viajar. Pois claro, porque o transatlântico é também um cliché estético que veicula a ideia de uma época e de um gosto inequívocos; é ele próprio um objecto literário que faz parte da bagagem estética do dandy. Ora, ficando no comportamento dandístico desta mala, encontramos o «Mercure de France», muitos cigarros e uma anglofilia que ganha materialidade na pesadíssima Enciclopédia Britânica do poema Há mais de meia hora (1935), no Times (The Times, 1928), ou que percorre lexicalmente a obra inteira de Campos (citando ao acaso: smoking-room, Canadian Pacific, Derby, tramways, music-hall, fifteen men, Jim Burns, Cardiff, Liverpool, obviamente Glasgow, Texas, Carolina, New York, Brooklyn Ferry, bridge, Daisy, Cecily, Lisbon Revisited, etcétera).

Ora bem, o «Mercure de France», como sabemos, foi para a geração do Orpheu a «bíblia» das letras, o verdadeiro mensageiro de Paris, um «Mercúrio» de nome e de facto. Nele aliás escrevia sobre literatura portuguesa o Phileas Lebesgue, cujo nome vem frequentemente citado nas cartas de Sá-Carneiro. Sobre o cigarro e a utilização que Campos faz deste objecto, detive-me no meu livro Pessoana mínima, pelo que escusarei de estar a repetir o já dito. Quero apenas dizer que Campos recupera, para o objecto cigarro, o papel que na literatura do século XX tiveram o ópio e o absinto, embora o faça com uma utilização jogada num plano totalmente inédito, de oposição entre o pragmático-factual e o ontológico-metafísico. E para chegar à Enciclopédia Britânica e a todas as tabuletas e marcas inglesas de que é constelada a sua poesia, diria que Campos efectua o repechâge da anglomania que percorre a Europa, e a França em particular, nos meados do século XIX, com Barbey d'Aurevilly, Charles Laffitte, Le Comte d'Orsey, Gautier, Nerval, e naturalmente Baudelaire. Todos eles na esteira de Lord Brummel, que chegou a difundir uma verdadeira mania intelectual (V. Jacques Boulanger, Les Dandies, Paris 1907; André Ferrou, L'Esthétique de Baudelaire, Paris 1968).

Fechado este compartimento da mala de Campos, queria abrir outra gaveta onde me parece se possam encontrar outros objectos que merecem figurar na lista que estamos a fazer. Trata-se de mapas, de ilustrações de infância e de grandes livros coloridos.

«E o espelho dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta

Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha

O que de sonho jaz nas encadernação vetustas

Nas assinaturas complicadas».

E agora Rimbaud (Alchimie du Verbe) que Pessoa porém nunca lembra nos seus apontamentos estéticos (mas é preciso dizer que Pessoa amava Baudelaire, «l'enfant amoureux de cartes et d'estampes» e que portanto a fonte talvez seja a mesma):

«J'aimais les peintures idiotes, dessus de portes, décors, toiles de saltimbanques, enseignes, enluminures populaires; la litérature démodée, latin d'église, livres érotiques sans orthographe, romains de nos aїeux, contes de fées, petits livres de l'enfance, opéras vieux, refrains niais, rhythmes naїfs».

As coincidências com Rimbaud são de qualquer modo demasiado flagrantes para não as sublinhar; e acho que não será fazer de la petite philologie a lembrança de outras coincidências, mesmo fora do poema de Campos que lemos há pouco. Deve-se lembrar, para já, que o latim de igreja está presente também na bagagem cultural de Campos, graças ao tio sacerdote da Beira que lho tinha ensinado e que aflora num poema sem data (Gostava de gostar de gostar) através duma citação de memória de Santo Agostinho: «Nondum amabem et amara amabam». E há também as «pinturas idiotas» na obra de Campos, mesmo que nunca assim chamadas. Qualquer coisa de semelhante possui o quadro do poema A casa branca nau preta (1916)** que provoca as fantasias de Campos que dormita numa tarde de Verão. E não muito diferentes de calcografias infantis, demais cor-de-rosa e demais azuis, são as ilhas oleográficas da Ode Marítima, onde o demais fornece a dimensão do hiper-real. Mas se o bric-à-brac serve a Rimbaud essencialmente como passaporte para o onírico (e queria sublinhar mais uma vez o uso e o abuso que as vanguardas históricas, Dada, Futurismo e Surrealismo, fazem da quinquilharia), em Campos, e especialmente no Campos «idoso», o uso poético da quinquilharia prevê uma interrogação ontológica e um arranjo metafísico que talvez autorizassem uma comparação com a função que os objectos desempenham na poesia de Mondale. Parece-me evidente que o objecto de Campos, «visível» e «enigmático», tem uma espessura fenomenológica que postula uma visão metafísica muito aparentada, e por vezes diria mesmo precursora, de certas posições da filosofia contemporânea (Husserl).

Abrindo outro compartimento da mala de Campos, aquele que com uma certa aproximação poderíamos definir como «decadente», vamos encontrar uma máscara, um espelho e um dominó (Tabacaria). O contexto estético é imediato: o «Pierrot Lunaire», Laforge, Wilde, na Itália Goldoni e Pallazzeschi.

À luz desta apressada e mesmo assim numerosa lista de objectos, poderia parecer que Pessoa constrói, com a figura de Álvaro de Campos, a fisionomia, diria quase os estigmas, do perfeito vanguardista do princípio do século: entediado, blasé, dandy, blagueur, «futurista e tudo», como diria com uma certa simplicidade Almada Negreiros. Mas com Campos, naturalmente, as coisas não são tão simples. Porque Campos é uma personagem dupla no sentido em que é uma personagem de ficção que cria ficção, é uma figura literária que, por sua vez, cria literatura. Campos, portanto, é muito mais do que um retrato ou uma auto-análise: é uma reflexão, uma espécie de distanciação; é Pessoa que se vê a si próprio ser um artista de vanguarda. A distanciação pressupõe afastamento e o afastamento a ironia. A grande novidade que Campos introduz na figura do poeta vanguardista consiste exactamente nesta específica qualidade. E essa é uma qualidade que pertence a uma categoria filosófica: a «consciência irónica». Segundo a definição que Jankélévitch fornece da consciência irónica, poderíamos dizer de Campos que «C'est la conscience de la révelation par laquelle l'absolu, dans un moment fugitif, se réalise et du même coup de détruit; et l'art n'est rien d'autre que l'instant du passage, la belle et fragile apparence qui à la fois exprime et anéantit l'idée. Ainsi se constitue, par oppositon au «Witz» réflexif, acide et persifleur du XVIIIe siècle, une ironie un peu sauvage, une ironie exaltée et ambitieuse. (...) L'ironie n'est plus heuristique, mais nihilisante» (Jankélévitch, L'ironie, Paris 1979).

Graças a este tipo de consciência irónica, Campos destrói por dentro a figura do vanguardista, ou melhor, auto-destrói-se, desintegra o décor estético da sua época e desintegra-se, depura-se de qualquer escória e atinge, não direi uma sobriedade apenas estética, mas sim um espaço despovoado, um deserto, um écran branco para o qual se põe a olhar.

Há também outro objecto ligado à mala de Campos, mas este não está lá dentro, está fora dela: é o Sud-Express.

Acho plausível imaginarmos Campos levando a sua mala para a estação do Rossio e, com uma operação inversa do que fazia o poeta português da mesma época, que vinha com a sua mala de Paris no Sud-Express, deixar lá, na estação, a mala com todo o seu conteúdo, regressando para o seu quarto com um objecto puríssimo e essencial: uma cadeira. Há uma cadeira imensa na obra de Campos, que é o seu estar sentado a olhar para a janela, para o Cais e para o Nada: é a cadeira da Tabacaria que marca o percurso do interior do quarto até à janela, é a cadeira na qual Campos está reclinado num dia de Verão, é a cadeira de café na qual Campos está sentado em companhia de Espinosa, no poema Nas praças vindouras:

«Nas praças vindouras — talvez as mesmas que as nossas -

Que elixires serão apregoados?

Com rótulos diferentes, os mesmos do Egipto dos Faraós;

Com outros processos de os fazer comprar, os que já são nossos.

E as metafísicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a parte,

As filosofias solitárias de tanta trapeira de falhado,

As ideias casuais de tanto casual, as intuições de tanto ninguém -

Um dia talvez, em fluido abstracto, e substância implausível

Formem um Deus, e ocupem o mundo. Mas a mim, hoje, a mim

Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas,

Nos destinos que não desvendo, Na minha própria metafísica, que tenho porque penso e sinto,

Não há sossego,

E os grandes montes ao sol têm-no tão nitidamente!

Têm-no? Os montes ao sol não têm coisa nenhuma do espírito.

Não seriam montes, não estariam ao sol, se o tivessem.

O cansaço de pensar, indo até ao fundo de existir,

Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo.

O que é feito dos propósitos perdidos, e dos sonhos impossíveis?

E porque é que há propósitos mortos e sonhos sem razão?

Nos dias de chuva lenta, contínua, monótona, una,

Custa-me levantar-me da cadeira onde não dei por me ter sentado,

E o universo é absolutamente oco em torno de mim.

O tédio que chega a constituir nossos ossos encharcou-me o ser,

E a memória de qualquer coisa de que me não lembro esfria-me a alma.

Sem dúvida que as ilhas dos mares do sul têm possibilidades para o sonho,

E que os areais dos desertos todos compensam um pouco a imaginação;

Mas no meu coração sem mares nem desertos nem ilhas sinto eu,

Na minha alma vazia estou,

E narro-me prolixamente sem sentido, como se um parvo estivesse com febre.

Fúria fria do destino,

Intersecção de tudo,

Confusão das coisas com as suas causas e os seus efeitos.

Consequência de ter corpo e alma,

E o som da chuva chega até eu ser, e é escuro».

É aqui, nesta poesia, numas cadeiras dum café de Lisboa, que Campos, tirando a nobreza à filosofia e actuando com a «conscience ironique», realiza o seu melhor encontro com a filosofia espinosiana. A ideia de Deus como coágulo das metafísicas de café e de todos os falhados sentados nos cantinhos de todas as «Brasileiras» do Mundo, é talvez a melhor metáfora da inquietante cadeira de Álvaro de Campos. Uma cadeira, porém, que já tinha aparecido, com aparente futilidade, no poema Opiário:

«Deixem-me estar aqui, nesta cadeira até virem meter-me no caixão».

É uma cadeira que possui um estatuto gélido e misterioso que significa a Imobilidade eterna e que se opõe frontalmente à fútil vitesse do século XX.

**"Estou reclinado na poltrona, é tarde, o verão apagou-se... / Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro... / Não existe amanhã para o meu torpor nesta hora... / Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim... / Há uma interrupção lateral na minha consciência... / Continuam encostadas as portas da janela desta tarde / Apesar de as janelas estarem abertas de par em par... / Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo / E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma... / Quem dera que houvesse / Um estado não perfeitamente interior para a alma, / Um objectivismo com guisos imóveis à roda de em mim... / A impossibilidade de tudo quanto eu não chego a sonhar / Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir... / As naus seguiram, / Seguiram viagem não sei em que dia escondido, / E a rota que deviam seguir estava escrita nos ritmos, / Nos ritmos perdidos das canções mortas dos marinheiros de sonho... / Àrvores paradas da quinta, vistas através da janela,/ Àrvores estranhas a mim a um ponto / inconcebível à consciência de as estar vendo, /Àrvores iguais todas a não serem mais que eu vê-las, / Não poder eu fazer qualquer coisa género haver árvores que deixasse de doer, / Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá, / E poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão.../(...)

11 de Outubro de 1916

FERNANDO PESSOA 
Director de Orpheu "

*Lic. Universidade de Pisa; Prof. catedrático de Literatura Portuguesa na Fac. Letras Univ. Génova. Escritor e autor de vários ensaios sobre Literatura portuguesa; tradutor para italiano e autor de ensaios sobre Fernando Pessoa.

desde a p. 77
até a p.