Linguística

Cao Xueqin e 'O Sonho do Pavilhão Vermelho'
(o mais famoso romance da literatura chinesa)

António Graça de Abreu*

Cao Xueqin 曹雪芹 (1724?-1764) nasceu em Nanquim numa família de mandarins arruinados. Escreveu O Sonho do Pavilhão Vermelho, o mais famoso romance da literatura chinesa. São cento e vinte capítulos (a obra seria concluída por Gao E 高鶚), cerca de um milhão de caracteres, muita prosa e alguma poesia.

O enredo gira à volta do intrincado relacionamento de quatro famílias, os Jia 賈, os Shi 史, os Wange os Xue 薛. O herói é o jovem Jia Baoyu 賈寳玉, rebelde e apaixonado que acabará os seus dias como monge budista. Lido avidamente por gerações e gerações de chineses, O Sonho do Pavilhão Vermelho, (Hong Lou Meng 紅樓夢 ) é uma obra-prima da literatura mundial, infelizmente desconhecida em Portugal. Em jeito de apesentação, e para dar ao leitor de Língua portuguesa uma ideia do estilo e dos ambientes que a povoam, publicamos a tradução de um excerto do capítulo II.

Baoyu ouviu a canção, entendeu uma voz feminina. Antes de se extinguirem os últimos ecos, apareceu uma formosa mulher vinda do outro lado do monte. Aproximou-se dele, ondulando e flutuando no espaço. Era diferente de qualquer outra dama terrena, como se pode entender através do seguinte poema:

Deixa sua casa sob os salgueiros,

seus jardins floridos, seus ribeiros,

os pássaros abrem-lhe o caminho

e ela vem, entre árvores, devagarinho.

Sua sombra atravessa um sopro de vento,

ela traz a fragrância, o movimento,

o perfume das orquídeas nas mãos de fada,

o tilintar de rubis atravessando a madrugada.

De folhas de lótus é o seu vestido, suas tranças, de nuvens, de luar entretecido.

Flores de pessegueiro, um aroma e gosto, desabrocham nas covinhas do seu rosto.

Entre os lábios de cereja esconde os dentes que são, de romã, pequeninas sementes.

O balancear sinuoso da sua cintura breve recorda o bailar dos flocos de neve.

O fulgor das estrelas, uma pérola irisada, brilham em sua testa prateada.

No rosto, um espelho de flores fugidias, a alegria e a força de todos os dias.

Vem em bicos de pés, sobre as águas, avançando sobre musgo e fráguas.

Um gesto ligeiro e vai falar, os pés que vacilam e vai parar, um movimento vago, titubeante, e continua seu andar ondeante.

Observo sua rara compostura como cristal de gelo, como jade, pura, a maravilha dos vestidos refulgentes, a graça, os enfeites resplandecentes.

Admiro seu corpo recortado e fino, de mármore, perfumado, divino.

Contemplo a nobreza do seu porte como se acompanhasse, altiva, o seu consorte.

Sua singeleza irei sempre recordar ao ver flores da ameixieira na neve desabrochar.

Numa orquídea de Outono a geada cai, dela, casta e pura, a doçura sai.

Uma infinita calma, perfeita serenidade, pinheiro solitário no vale da eternidade.

Sua beleza, o fascínio, o esplendor do brilho do sol no lago do amor.

Em si a graça dos dragões brincando, o gesto diáfano, o corpo cintilando.

Ela é apenas espírito, não sabe sonhar, é como a água sob os raios frios do luar.

Encantado, compreendendo que a mulher era uma fada, Baoyu correu para ela e saudou-a com um sorriso.

- "Senhora Fada, não sei de onde vem nem para onde vai, mas sinto-me perdido neste lugar. Pode levar-me consigo e ser minha guia?"

- "Eu sou a Fada do Desencantamento. Vivo por detrás do Reino da Separação, na montanha do Despertar da Primavera que se levanta no meio do Mar da Tristeza. Nessa montanha fica o Paraíso das Flores Desabrochando e aí se situa a Terra da Ilusão, o meu lar. Eu lido com paixões românticas, dívidas de amor, meninas com corações destroçados, homens enamorados no vosso mundo de pó e cinzas. Hoje vim aqui porque nesta região se registou ultimamente uma grande concentração de capacidade de amar. Espero a oportunidade de ser capaz de distribuir alguns sentimentos amorosos e o meu encontro contigo não aconteceu por acaso, faz parte deste projecto.

O lugar onde estamos não fica longe do meu lar. Eu não tenho muito para te oferecer, mas gostava que bebesses do chá encantado que eu própria colhi. E tenho algumas jarras de vinho novo, seleccionado e feito por mim. Compus recentemente uma melodia em doze partes intitulada 'Um Sonho de Dias Dourados' e tenho ensaiado com um coro e um grupo de bailarinas que também são fadas. Elas podem cantar e dançar para teu prazer. Vens comigo?"

Baoyu ficou tão entusiasmado que se esqueceu de Qin Shi e acompanhou a Fada.

Mais adiante, surgiu em frente deles um arco de pedra onde estava escrito em grandes caracteres:

TERRA DA ILUSÃO

Havia dois versos mais pequenos gravados do outro lado do arco:

"A verdade torna-se ficção quando a ficção é verdade.

O real torna-se irreal quando o irreal é real."

(tradução de António Graça de Abreu)

*Licenciado Univ. Lisboa; foi durante quatro anos leitor de Português no Departamento de Línguas Estrangeiras da Univ. Pequim; orientalista, com vários trabalhos publicados.

desde a p. 75
até a p.