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SOBRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO (Ⅱ)

Jorge Morbey

A liberdade de expressão nas sociedades culturalmente heterogéneas, organizadas segundo o modelo da democracia formal, é um problema complexo que, do nosso ponto de vista, não se encontra resolvido.

A questão está em saber se se trata de insuficiência inerente ao regime democrático ou se se deve a factores exógenos que têm a ver com a própria fundação e estruturação do Estado democrático nessas sociedades.

A escassa, se não mesmo nula, teorização à volta desta matéria constitui demonstração bastante de que o problema da liberdade de expressão não conseguiu encontrar soluções, nos Estados culturalmente heterogéneos, que se aproximem daquelas que se adoptam nos Estados democráticos culturalmente homogéneos.

A existência de mecanismos legais de censura em Estados formalmente democráticos, por exemplo do continente asiático, resulta da heterogeneidade cultural existente no interior das suas fronteiras e tem em vista objectivos políticos de estruturação da unidade do Estado.

Convém precisar que, por sociedade democrática culturalmente heterogénea, se entende um conjunto social compreendendo dois ou mais subconjuntos étnica ou culturalmente diferentes com um poder político comum, representativo e equidistante.

Todavia, o que se verifica, em regra, é que, nos Estados pluriculturais ou multi-étnicos, os regimes de democracia formal acabam por funcionar com base na hegemonia do grupo étnico ou cultural mais forte que, não raro, se organiza em partido de base étnica ou religiosa.

Quando, para além da identidade étnica, cultural ou religiosa, tais partidos se constituem como expressão da vontade e estrutura liderante da população de determinada região, ficam criadas as condições para a cisão do Estado culturalmente heterogéneo que cede lugar ao nascimento de novos Estados culturalmente homogéneos.

Tem havido quem defenda que a democracia é um regime político desajustado, insuficiente e, por isso, não adequado aos Estados cuja população seja constituída por diferentes grupos étnicos ou culturais.

A democracia é, do ponto de vista de alguns, um modelo político originário de determinados povos, que apenas entre eles funciona e que está condenado ao insucesso quando "importado" por outros povos.

Na mesma linha de raciocínio, tem-se sustentado que a democracia, partindo do pressuposto de que todos os indivíduos são iguais em matéria de direitos políticos, consubstanciado no princípio "um homem, um voto", acaba por produzir situações anti-democráticas, quando propicia o controlo do poder político pelo grupo étnico ou cultural mais populoso que o exerce, não raro, em proveito próprio e contra os interesses dos demais grupos em presença.

Temos assistido a uma relativa estagnação no pensamento político sobre esta matéria, que se tem limitado a classificar os regimes de democracia formal dos Estados culturalmente heterogéneos, com a designação de "democracias musculadas", "democracias impuras", "democracias imperfeitas" e outras designações, sem aprofundar que se trata de equacionar, no mundo contemporâneo e no seio de Estados formalmente democráticos, os mesmos objectivos de estruturação da unidade do Estado que se colocaram às sociedades que se organizaram politicamente antes de terem passado dos regimes de poder absoluto para os regimes democráticos dos nossos dias.

Um grande equívoco tem estado na origem das convulsões internas e dos conflitos entre Estados contíguos: o de que os regimes democráticos poderão preservar, sem alteração, territórios e populações cuja unidade política resultava de uma vontade imposta por um poder exterior.

Propõe-se, assim, uma outra via de análise: a que prefigure os regimes de democracia formal, nos Estados culturalmente heterogéneos, como mecanismos rectificadores de construções políticas artificiais e que, por isso, podem originar o seu redimensionamento e o nascimento de novos Estados na comunidade internacional.

O fenómeno da rectificação dos limites territoriais e da composição populacional dos Estados, por acção dos regimes democráticos nas sociedades culturalmente heterogéneas, é responsável pelo aparecimento de um novo conceito de fronteira natural que deixa de poder ser determinado apenas pela geografia física (relevo, hidrografia, etc.).

Este novo conceito de fronteira natural passa a abranger, para além das barreiras físicas, as diferenças culturais, isto é, as fronteiras culturais.

Da observação do mapa político do mundo actual, arriscar-se-ia o vaticínio de que, se num dado momento todos os Estados se pudessem organizar livre e democraticamente, a geografia política passaria por uma profunda transformação, assistindo-se à divisão de Estados formados artificialmente e, ao mesmo tempo, à reunificação de Estados artificialmente divididos.

Uma nova ordem internacional, fundada no reordenamento político do mundo com base no reconhecimento das fronteiras culturais, contribuiria decisivamente para a eliminação de tensões e conflitos que, no fundo, são consequência do artificialismo de boa parte do planisfério político do nosso tempo.

O problema da liberdade de expressão, nos Estados democráticos culturalmente heterogéneos, encontra-se, assim, fortemente condicionado pela questão da construção da unidade do Estado.

As democracias ocidentais, em regra, assumiram a direcção dos respectivos Estados com esse problema resolvido pelos regimes de poder absoluto que as precederam.

Nas antigas colónias europeias do continente americano também o problema da estruturação da unidade" do Estado se encontrava resolvido quando emergiram como Estados independentes, que politicamente se separaram mas que, étnica e culturalmente, se configuravam como extensões das antigas metrópoles. O processo que conduziu à sua independência foi liderado pelos colonos europeus, à margem dos povos autóctones, entretanto exterminados ou remetidos a completa sujeição, que subsistem em bolsas ou reservas, desprovidos, em regra, dos direitos de cidadania plena de que goza a população de origem europeia.

Entre os novos Estados que emergiram na comunidade internacional no pós-guerra, a situação apresentava-se de modo inverso. Na sua grande maioria, os Estados nascentes correspondiam a territórios com populações heterogéneas étnica e culturalmente o que, desde logo, colocava em risco a sua configuração territorial e a respectiva composição populacional.

Duas vias principais se seguiram: uma, a de tudo sacrificar pela manutenção do "statu quo ante", designadamente as liberdades públicas, através da instauração de regimes ditatoriais ou de partido único; outra, a de consolidar os regimes democráticos e, tanto quanto possível, mesmo com o recurso a alguns condicionamentos às liberdades públicas, procurar manter a fisionomia e composição dos Estados nascentes.

Entre estes últimos, conforme a intensidade maior ou menor dos condicionamentos às liberdades públicas, os Estados mantiveram-se com a mesma configuração que tinham à data do seu nascimento ou foram dando origem à sua própria divisão em novos Estados, delimitados segundo fronteiras culturais pré-existentes mas só então reconhecidas como fronteiras políticas.

No contexto político existente nos Estados democráticos culturalmente heterogéneos a questão da estruturação da unidade do Estado é normalmente prioritária e impõe restrições às liberdades públicas de que a liberdade de expressão faz parte. Trata-se das chamadas formas impuras de democracia formal onde a formação das maiorias políticas não depende essencialmente de programas políticos ou de candidatos ao sufrágio, mas resulta fundamentalmente do maior peso populacional de um grupo étnico ou religioso.

Do pós-guerra aos nossos dias, a questão da liberdade de expressão, nos Estados culturalmente heterogéneos, tem vindo a estar dependente da importância atribuída às fronteiras culturais. Se o poder político as sacrifica na defesa da integridade do Estado é nula ou praticamente inexistente a liberdade de expressāo. Quando o poder político acaba por reconhecê-las, o Estado entra num processo de evolução natural semelhante à multiplicação biológica celular e redimensiona-se, originando novos Estados onde a liberdade de expressão se torna possível.

A evolução seguida após a independência da União Indiana, com a secessão do Paquistão primeiro e, posteriormente, a do Bangladesh, parece poder constituir exemplo paradigmático.

Jorge Morbey

Presidente do Conselho Directivo do Instituto Cultural de Macau

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