Linguística

FERNÃO MENDES PINTO, UM PIRATA? MAS OUE ABSURDO!

Rebecca Catz*

Há uns tempos atrás, durante uma visita a Pequim, fiz uma prelecção sobre a obra-prima de Fernão Mendes Pinto, a "Peregrinação". Foi com grande surpresa que soube que as autoridades chinesas não permitem que se publique o que quer que seja sobre este autor. Quando perguntei qual a razão de tal atitude, informaram-me que isso se devia ao facto de Fernão Mendes Pinto ter sido um pirata. Mas que absurdo! Trata-se duma rematada mentira. Fernão Mendes Pinto gostava tanto dos piratas como os chineses. Na realidade foi ele o primeiro europeu a condenar as actividades dos portugueses na Ásia considerando-as actos bárbaros de pirataria. Só este motivo é suficiente para que a obra de Fernão Mendes Pinto seja lida e divulgada pelos chineses. Além disso, ele foi o primeiro europeu a chamar a atenção para o facto da Ásia ser vítima de saqueadores, negociantes e padres intolerantes vindos do Ocidente. Mas atrevo-me a afirmar que aqueles que criticam Fernão Mendes Pinto nunca leram a "Peregrinação" ou, se o fizeram, não a entenderam. É precisamente a tais pessoas que se destina este artigo.

Uma leitura atenta da "Peregrinação" revela-nos uma obra de sátira corrosiva na qual o autor ataca todas as instituições religiosas, sociais e políticas do Portugal do séc. XVI. Mais do que isto, ela é uma condenação violenta da ideologia de cruzada, o salva-vidas mítico do império ultramarino português, atitude perigosa numa época em que as mentes e os pensamentos mais íntimos dos homens eram objecto particular duma censura rigorosa. Contudo, é este aspecto que faz com que a "Peregrinação" seja um documento único na história das ideias ocidentais. É, na verdade, um livro raro, pois numa época de lutas de religião defende a tolerância religiosa como ordem moral de origem divina.

É um dos primeiros livros, se não mesmo o primeiro, que, num período em que se assiste ao início do imperialismo europeu, põe em dúvida o valor moral das conquistas ultramarinas dos portugueses, as quais, segundo a óptica do autor, não passavam de actos bárbaros de pirataria.

Ao elaborar a sua acusação, o autor viu-se obrigado a usar todos os recursos de retórica e de dissimulação usados pelos satíricos desde tempos imemoriais - o heroísmo balofo, o elogio dúbio, a caricatura, a ironia e a insinuação. Estes são apenas alguns dos métodos satíricos usados pelo autor, cujo objectivo é o de convencer o leitor. Para se compreender a obra é necessário conhecerem-se as técnicas da sátira, pois de outro modo perde-se o sentido do livro.

Para alcançar o seu objectivo de satirizar, Fernão Mendes Pinto usou a crónica ou a pseudo-autobiografia, cuja estrutura se molda extremamente bem à forma episódica geralmente usada na sátira. Esta funciona como disfarce literário e não é mais do que um escudo com qual o autor se protege em períodos de censura política e religiosa. Genericamente, Fernão Mendes Pinto pertence à pleiada de autores como Rabelais, Cervantes, Swift e Voltaire, cujas obras encerram os mesmos elementos realistas, fantásticos e utópicos que encontramos nas viagens daquele autor.

No seu livro "The Grand Peregrination", o escritor inglês Maurice Collis, que tal como Fernão Mendes Pinto viveu 20 anos na Ásia, compreendeu bem a crítica expressa no livro. Mas não conseguiu entender a natureza da sátira, pois escreve o seguinte: "O livro é o primeiro a relatar como o Ocidente atacou o Oriente a fim de obter dinheiro e propagar o catolicismo. Mas não exalta nenhum destes objectivos, como sucede com outros historiadores e épicos lusitanos; pelo contrário, levanta a questão de saber se os portugueses não arriscaram a salvação das suas almas ao apoderarem-se do que não lhes pertencia. Estes aparecem mais como vítimas do que triunfadores, mais como perdedores do que vencedores, como se Deus lhes tivesse virado as costas. Se tal assunto - e parece ser este o tema do livro de Fernão Mendes Pinto - tivesse sido escrito de modo explícito, as autoridades eclesiásticas nunca teriam autorizado a sua publicação" (1).

Para provar esta afirmação, debrucemo-nos sobre as partes do livro mais relacionadas com o nosso tema.

A primeira parte, e provavelmente aquela que levou os chineses a terem uma ideia errada de Fernão Mendes Pinto, narra a expedição pirata de António de Faria. Sigamos a rota dos piratas portugueses na sua viagem desde a costa leste da Malásia até à península indo-chinesa; consideremos o naufrágio ao largo da costa do Sul da China onde Fernão Mendes Pinto foi feito prisioneiro e julgado como pirata e, finalmente, a sua captura pelos tártaros que invadiram Pequim e que, eventualmente, o libertaram mais tarde.

O episódio começa da seguinte forma: um ataque súbito do pirata mouro Coja Acém, deixa um grupo de mercadores portugueses em Patane, sem tostão. Em vez de regressar a Malaca e enfrentar de mãos vazias os seus credores, António de Faria, que em breve se tornaria o chefe dos futuros piratas portugueses, anuncia aos seus companheiros, que o consolam pelas perdas sofridas, que "faz mais sentido ele ir em perseguição dos que lhe roubaram o dinheiro do que ficar em falta com os que lho emprestaram" (2).

O modus operandi da expedição pirata de António de Faria pode resumir-se do seguinte modo: segundo afirma Fernão Mendes Pinto, os portugueses, sob a capa de pacíficos mercadores, percorrem o país em busca de ouro por entre uma população asiática sem defesa, que um punhado de homens poderia facilmente subjugar. Prosseguem nesta senda acumulando vitória sobre vitória. Após o quarto combate com os piratas, a fama dos piratas portugueses era de tal maneira grande que "os chineses tremiam todas as vezes que se fazia menção dos portugueses" (3). Os mercadores dos mares do Sul da China oferecem "dinheiro para sua protecção " a António de Faria, "Rei dos Mares", a fim de não serem atacados nas suas viagens. Faria inicia um negócio florescente vendendo salvo-condutos a todos os que quisessem ter uma viagem sem incidentes. Após vários ataques, durante os quais acumularam uma larga maquia, os piratas portugueses acharam que era altura de regressarem ao lar. Lançam âncora numa ilha chamada, com muita propriedade, "Ilha dos Ladrões", onde aguardam a chegada da monção para regressarem à Índia. São assolados, subitamente, por um tufão que, com as águas revoltas dos mares bravios, destrói os navios e todos os bens acumulados. Isto é visto como um castigo de Deus, pois no universo de Fernão Mendes Pinto o castigo é uma manifestação da vontade divina que assim pune o mal, e serve de aviso aos loucos e temerários para que modifiquem a sua conduta. Mas António de Faria ignora o aviso divino e rouba um navio chinês que aportara à ilha para se abastecer de água. A bordo deste navio, os portugueses encontram um rapazinho chinês com cerca de 13 anos de idade que, na ficção da "Peregrinação", é o porta-voz do autor. Para esta criança, que acabara de ver os portugueses rezar em acção de graças pela comida que tinham roubado e que acabavam de comer, os portugueses "agem como se algumas palavras dirigidas ao céu substituíssem o pagamento do que tinham roubado ".

"Porque vos vi louvar a Deus, depois de fartos, com as mãos alevantadas e c'os beiços untados, como homens que lhes parece que basta arreganhar os dentes ao céu sem satisfazer o que têm roubado. Pois entendei que o Senhor da mão poderosa não vos obriga tanto a bolir c'os beiços quanto vos defende tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que são dous pecados tão graves, quanto depois de mortos conhecereis no rigoroso castigo de sua divina justiça" (4). As palavras desta criança precoce inspiram em António de Faria o desejo de o converter e explica-lhe o que significa ser cristão. Da boca deste inocente sai, incontido, o grito de desespero do autor:

"Bendita seja, Senhor, a tua paciência, que sofre haver na terra gente que fale tão bem de Ti, e use tão pouco da tua lei, como estes miseráveis e cegos, que cuidam que furtar a pregar Te pode satisfazer como aos príncipes tiranos que reinam na terra" (5).

Trata-se, na verdade, duma violenta condenação de todos os portugueses expressa pela voz duma criança inocente que usa palavras demasiado perigosas para poderem ser ditas pelo próprio autor. Será que Fernão Mendes Pinto fala como um pirata?

O episódio continua quando António de Faria recomeça a sua actividade de pirata e se alia, desta vez, a um corsário asiático. Os dois dirigem-se para o enclave de Ningpó para lá passarem o Inverno. Durante a viagem encontram e derrotam Coja Acém, o corsário mouro que fizera com que António de Faria se tornasse pirata. Parece que este Coja Acém também tinha atacado os portugueses de Ningpó e, por isso, António de Faria é lá recebido com honras de herói.

Com a chegada da monção, António de Faria parte de Liampó em direcção à ilha de Calemplui com o fito de saquear os túmulos sagrados dos imperadores da China. Na viagem de regresso, este ente malévolo que não acatara o aviso que lhe fora dado na Ilha dos Ladrões, é assolado por um tufão e morre no mar. Com a sua morte termina a história do infame pirata português, António de Faria. Este episódio tem uma unidade estrutural que vale por si mesma, o que faz com que muitas vezes seja publicado em separado.

Em todo o episódio da pirataria, a sátira concentra-se na figura satânica de António da Faria cujas acções horrendas se opõem diametralmente às suas aspirações realmente nobres. Aqui, Fernão Mendes Pinto, assumindo a sua faceta imaginária, afirma ter feito parte da expedição pirata por necessidade, nela desempenhando o papel de observador irónico. O autor mantém-se à margem, manejando os cordelinhos com inteligência e distanciando-se cuidadosamente do assunto, pretendendo ignorar as contradições - ou a realidade - que tão naturalmente revela. É esta a técnica usada na caricatura do heroísmo. Nunca põe em dúvida o ideal em si, mas destrói-o insidiosamente ao opô-lo à realidade, expondo a falsidade ou a impossibilidade (de concretização) desse ideal à luz da experiência humana. Para compreendermos a sátira é importante entendermos o conceito de persona, carácter ou identidade fictícia atrás do qual se esconde o autor a fim de fazer a sua crítica que, no caso da "Peregrinação", é quase sempre dirigida contra os portugueses. Convém salientar que o autor satírico apresenta na persona um retrato distorcido dos seus conterrâneos, fingindo acatar o mal que deseja condenar. São estas as armas principais usadas na sátira.

Chegámos agora à parte utópica da sátira de Fernão Mendes Pinto, cujo objectivo é criticar as instituições sociais e políticas portuguesas e, em particular, a corrupção do sistema legal. E fá-lo do seguinte modo: um pequeno grupo que sobreviveu ao naufrágio em que pereceu António de Faria, vem dar à costa chinesa onde é preso por vagabundagem. São condenados ao açoitamento e ao corte dos polegares. Mas apelam em relação à segunda parte da sentença e são apresentados aos tribunais de Nanquim e Pequim para serem ouvidos. Os seus desvarios são o pretexto à volta do qual o autor constrói a sua utopia. Por várias razões, a acusação original torna-se mais grave, pois o promotor público recomenda "... que também nos cortassem os dedos polegares das mãos, com as quais, por claras suspeitas, se podia bem colegir termos nós feitos roubos e males tão criminosos quanto o soberano juiz que reinava no Céo despois castigaria com apotência da sua direita justiça no derradeiro dia de nossos dias" (6).

Para ser eficaz, a sátira utópica deve servir-se do observador ingénuo que viaja pelo mundo e vê civilizações melhores que a sua. Cabe ao leitor inferir uma série interminável de contrastes e comparações entre Portugal e a ideia que o autor tem duma China utópica.

Se acreditarmos na descrição de Fernão Mendes Pinto, a China que ele diz ter visto é o paraíso terrestre, a sociedade mais perfeita criada pelo homem. O seu governo, chefiado por um rei sábio e temente a Deus, é benevolente e altamente organizado. Uma das ordens emanadas do Rei para o bem-estar do seu povo é a de arrecadar as colheitas durante os anos de fartura a fim de que ninguém passe fome durante os anos de míngua. Isto processa-se de tal modo que ninguém pode enganar os outros. As funções a desempenhar estão distribuídas de tal forma que cada homem cumpre a sua tarefa não existindo rivalidade nem competição. Todos trabalham, até mesmo o cego, o aleijado ou os que sofrem de qualquer deficiência. Os negociantes são obrigados a contratar um certo número de deficientes para desempenharem tarefas compatíveis. Os órgãos ficam a cargo do Estado. Resumindo: um governo benevolente, preocupado com o bem-estar dos cidadãos e que se encarrega de tudo. A China, na óptica de Fernão Mendes Pinto, é uma terra de abundância e prosperidade. Na verdade, o autor não cessa de dizer maravilhas de tudo o que o rodeia. Será que, alguma vez, se escreveu algo de tão elogioso sobre um país?

"... em algũas partes vi grandíssimas abundâncias de diversíssimos mantimentos que não há nesta nossa Europa, mas em verdade afirmo que não digo eu o que há em cada ũa delas, mas nem o que há em todas juntas vem a comparação c'o que há disto na China sómente.

E a este modo são todas as mais cousas de que a natureza a dotou, assina salubridade e temperamento dos ares, como na polícia, na riqueza, no estado, nos aparatos e nas grandezas das suas cousas. E para dar lustro a tudo isto há também nela ũa tamanha observância da justiça e um Governo tão igual e tão excelente que a todas as outras terras pode fazer inveja: e a terra a que faltar esta parte, todas as outras que tiver, por mais alevantadas e grandiosas que sejam, ficam escuras e sem lustro" (7).

Neste episódio, a sátira é feita por analogia e pelo carácter irónico da persona fictícia. Frequentemente, o "ingénuo" chama a atenção para os absurdos da vida chinesa, mas, na maior parte dos casos, estes absurdos não são mais que uma versão distorcida dos mesmos males ou de males semelhantes que existem no país do autor. As "bulas" e os "jubileus" que ele ridiculariza nos chineses, têm uma semelhança flagrante com as indulgências papais e os perdões emanados de Roma.

Muitas vezes, o ingénuo simplório não consegue entender as estranhas manobras da justiça chinesa e pergunta - com uma ingenuidade excessiva - por que é que os seus generosos benfeitores se recusam a subornar ou a influenciar o juiz a fim de obterem uma conclusão mais rápida e mais favorável dos casos. Na China utópica de Fernão Mendes Pinto existe uma aversão a tais práticas, pois são um pecado contra o Todo-Poderoso. Assim, tem de se explicar cuidadosamente aos bárbaros portugueses - pois é assim que os chineses os consideram - que a fonte de toda a justiça está no céu e que o castigo legal e civil é também uma manifestação da vontade divina.

A imensa riqueza da China, descrita profusamente em muitas páginas, contrasta de forma notória com a pobreza existente em Portugal. Mas também a pobreza é um castigo divino, enquanto a abundância é uma benção dos céus.

A perspectiva chinesa das conquistas de Afonso de Albuquerque é-nos apresentada quando os nossos prisioneiros, agora a caminho de Pequim para apelarem da sentença, passam por um monumento onde está gravada uma estranha inscrição que diz o seguinte: "Aqui jáz Trannocem Mudeliar, tio d'el-rei de Malaca, a quem a morte levou antes que Deos o vingasse do Capitão Albuquerque, lião dos roubos do mar" (8).

Tendo os prisioneiros conseguido que lhes fosse revogada a parte da sentença que ordenava o corte dos polegares, nada se pôde fazer quanto ao açoitamento que lhes foi aplicado antes de feito o apelo. Não foram sequer totalmente absolvidos dos seus crimes, pois ainda foram sentenciados a um ano de trabalhos forçados na Grande Muralha da China. A sentença leve destina-se a pôr em evidência um código de justiça imparcial e compassivo que recusa condenar sem provas nem testemunhas, "... o continão prometor da justiça lhes não provou nada do que alegou contra eles em suas razões, sómente disse que eram eles dignos de morte pela suspeita que deles se tinha. E como a santa justiça de respeitos limpos e agradáveis a Deos, não aceita razões de partes contrárias sem haver clara prova no que dizem, pareceo-me não ser justo aceitar o libelo do prometor, pois não provava o que nele dezia" (9).

Maurice Collis afirma que a passagem acima citada é uma crítica velada aos tribunais portugueses e diz que "Pinto apresenta o que considera ser um sistema judicial ideal e um juiz justo. O facto da figura do juiz recto aparecer na China só prova que o autor entendeu os pontos essenciais da ética confuciana, o que prova a sua intuição pois não tinha, certamente, conhecimento académico de Confúcio e da sua filosofia. Mas embora tenha razão em considerar a benevolência, a justiça, a honestidade e a consideração pelos sentimentos dos outros os princípios mais importantes da administração chinesa, a sua descrição do julgamento é fictícia e os personagens, entre os quais o juiz, não passam de estereotipos" (10).

Duma China utópica passamos para o mundo cruel e bárbaro dos tártaros que invadiram Pequim e prenderam os (prisioneiros) portugueses que lá se encontravam. Estes ganham o respeito e admiração dos tártaros ao ajudá-los a conquistar um castelo chinês. Os tártaros, repetidamente descritos como "cruéis" e "bárbaros", maravilharam-se com as proezas militares dos portugueses. Em sinal de apreço, os portugueses são apresentados ao rei tártaro que lhes pergunta donde vêm. Fica espantado quando lhe dizem que a viagem de Portugal a Pequim leva quase três anos, facto que leva o rei tártaro a proferir uma apreciação demolidora: "Conquistar esta gente terra tão alongada da sua pátria dá claramente a entender que deve de haver entre eles muita cobiça e pouca justiça". Ao que um cortesão replica em termos que nunca teriam sido pronunciados por um pirata: "Assi parece que deve ser. Porque homens que por indústria e engenho voam por cima das ágoas todas, por adquirirem o que Deos lhe não deu, ou a pobreza neles é tanta que de todo lhes faz esquecer a sua pátria, ou a vaidade e a cegueira que lhes causa a sua cobiça é tamanha que por ela negam a Deos e a seus pais" (11).

Depois dos tártaros terem libertado os portugueses, estes embarcam num junco de piratas chineses. Em pleno mar são assolados por um tufão e aportam à ilha, então desconhecida, de Tanegashima, no Japão. Um dos três sobreviventes portugueses ensina aos japoneses o fabrico e o uso das armas de fogo, as primeiras a aparecerem no Japão. A descrição que o autor faz dos japoneses é análoga à dos tártaros. Ambos admiram os portugueses pelas suas proezas militares e Fernão Mendes Pinto refere ainda que os japoneses, mais do que qualquer outro povo no mundo, gostam dos exercícios militares.

Depois dos piratas chineses terem vendido as mercadorias aos japoneses a preços muito elevados, Fernão Mendes Pinto e os seus dois companheiros regressam a Ningpó tendo informado os lá residentes dos grandes lucros obtidos nesse país recentemente descoberto, o Japão. Começa assim uma luta renhida, às vezes mesmo violenta, para a compra de sedas que, mais tarde, serão vendidas no Japão. E os portugueses partem — é Fernão Mendes Pinto que escreve — "contra vento, contra monção, contra maré e contra razão" (12).

Como é de esperar, surge um tufão (castigo divino?) e os sobreviventes conseguem chegar à ilha do Grande Rieu-Kieu, onde são presos e julgados. Lá, o promotor público pergunta aos portugueses: "Pois qual foi a causa por que as vossas gentes no tempo passado, quando tomaram Malaca pela cobiça das suas riquezas, mataram os nossos tanto sem piedade, de que ainda agora há nesta terra algũas viúvas?" Ao que os portugueses responderam que "seria por sucesso de guerra, mas não por cobiça de os roubar, porque o não costumávamos fazer em parte nenhũa ".

E as perguntas continuam: "Pois que é isto que dizem de vós? Negareis que quem conquista não rouba? Quem força não mata? Quem senhoreia não escandaliza? Quem cobiça não furta? Quem aprema não tiraniza? Pois, todas estas cousas se dizem de vós e se afirmam em lei de verdade. Por onde parece que largar-vos assi Deos da sua mão, dando licença às ondas do mar que vos afogassem debaixo de si, muito mais foi inteireza da sua justiça que semrazão que usasse convosco "(13).

Como persona, Fernão Mendes Pinto permanece calado. E não podemos esquecer que o autor, como persona fictícia, não se pode confundir com Fernão Mendes Pinto, personagem histórica. Ele não responde às perguntas perigosas feitas pelo seu "porta-voz" asiático.

A compaixão das mulheres de Rieu-Kieu faz com que os portugueses sejam libertados, mas o rei, que segundo a descrição é um homem bondoso, recusa-se a recebê-los, dizendo: "E quanto a verem minha pessoa antes de sua partida, o hei por escusado, assi pelo trabalho que nisso podem levar como pornão me ser dado, por ter o ofício de Rei, ver gente que, conhecendo muito de Deos, usa pouco de sua lei, tendo por costume tomar o alheio " (14).

É neste ponto do livro que a ironia atinge o seu auge, pois no capítulo seguinte o autor, cheio de malícia, aconselha os seus concidadãos a conquistarem Rieu-Kieu e a fazerem exactamente aquilo que eles prometeram ao rei nunca fazer!

Alguns anos mais tarde, em 1555, depois dos portugueses se terem já estabelecido em Macau, Fernão Mendes Pinto regressa à China não como pirata, mas, desta vez, como missionário e embaixador altamente respeitado. Ele acha que as coisas se modificaram muito desde a última vez que lá estivera. Descreve como os portugueses se instalaram em Macau onde vivem em segurança, paz e harmonia como se estivessem em Lisboa, mas afirma que, mais cedo ou mais tarde, serão expulsos pelos chineses tal como, já antes, tinham sido expulsos de Chinchéu (15) e Ningpó devido à sua má conduta.

Nessa mesma viagem, e antes de chegar à China, Fernão Mendes Pinto pára em Patane, um pequeno reino na costa leste da Malásia, para se abastecer. Aí informa o rei de que vai levar o Cristianismo ao Japão. O rei responde indirectamente com palavras que constituem uma das condenações mais devastadoras da acção evangelizadora dos portugueses na Ásia: "Quanto milhor fora a estes, já que se aventuram a tantos trabalhos, irem à China fazer-se ricos, que pregarem patranhas a reinos estranhos" (16). Não há dúvida que o autor defendia um ponto de vista muito actual.

Pouco depois da sua publicação póstuma em 1614, o livro tornou-se um best-seller na Europa. Só no séc. XVII houve 19 edições em 6 línguas. Com tantas edições, podemos dizer, sem hesitar, que a maioria da população culta da Europa já tinha lido a "Peregrinação" antes do fim do século. Em 1625, as partes utópicas do livro relativas à China foram publicadas em separado, em Londres, o Purchas His Pilgrimes. Não há dúvida que a descrição utópica da China feita por Fernão Mendes Pinto impressionou vivamente os europeus e pode ter sido muito bem o ponto de partida de muitas das noções românticas que a Europa acalentou sobre a China durante muitos anos.

Voltando à pergunta se Fernão Mendes Pinto era uma pirata, espero bem ter provado que não era. Também espero que as autoridades chinesas reflictam e leiam ou releiam a "Peregrinação" em português, no original, ou na nova edição inglesa que será editada pela University of Chicago Press. Há também uma tradução japonesa, Toyohenrekiki, publicada em Tóquio em 1979-80. Não recomendamos as outras edições estrangeiras publicadas no século XVII. Chegou o momento de se fazer uma edição chinesa (ouvi dizer que se prepara uma em Portugal) não só porque se deveria dar a conhecer a todos a condenação que Fernão Mendes Pinto fez da pirataria, mas também porque ele apresenta-nos a China como país exemplar apesar de utópico. Acho que os chineses ficariam muito orgulhosos em dar a conhecer o que Fernão Mendes Pinto diz dos portugueses, da Ásia em geral e principalmente da própria China. A "Peregrinação" contém muitos nomes de lugares chineses e muitas expressões difíceis de identificar para não falarmos já de algumas ideias falsas dos hábitos e costumes da China, pontos controversos que só os próprios chineses podem esclarecer. É altura dos chineses, em vez de enterrarem a cabeça na areia como a avestruz, darem o seu contributo para o conhecimento e divulgação duma grande obra de arte.

NOTAS

(l) Maurice Collis, "The Grand Peregrination" (London, 1949) pág. 157.

(2) "Peregrinação", Cap. 38.

(3) "Peregrinação", Cap. 52.

(4) "Peregrinação", Cap. 55.

(5) "Peregrinação", Cap. 55.

(6) "Peregrinação", Cap. 85.

(7) "Peregrinação", Cap. 99.

(8) "Peregrinação", Cap. 90.

(9) "Peregrinação", Cap. 103.

(10) "Peregrinação", Cap. 137.

(11) "Peregrinação", Cap. 122.

(12) "Peregrinação", Cap. 137.

(13) "Peregrinação", Cap. 140.

(14) "Peregrinação", Cap. 142.

(15) Chinchéu - tem havido, desde sempre, uma certa controvérsia acerca deste nome. Contudo, Boxer afirma que o nome se aplica à Província de Fuquien na China e, mais em particular, à região da Baía de A-Moi onde os mercadores portugueses entraram em contacto com os contrabandistas chineses provenientes das cidades de Chang-chou e Ch'uan-chou, ambas chamadas de Chinchéu pelos portugueses que usavam este mesmo nome para designar também toda a Província. Ver o artigo "Chincheo" de C.R. Boxer no seu livro South China in the Sixteenth Century (London, 1953), Ap. I, pp. 313-326.

(16) "Peregrinação", Cap. 220.

* "Bachelor of Arts" (Brooklyn College, NY, 1941); "Master of Arts" (Univ. Califórnia, 1965); "Doctor of Philosophy" em Línguas e Líteraturas Hispânicas, com especialização em Líteraturas portuguesa e brasileira. Tese de doutoramento publicada em Portugal (1978) com o título A Sátira Social em Fernão Mendes Pinto. Prepara desde 1968 uma tradução da Peregrinação em Língua inglesa, e uma edição das cartas de Fernão Mendes Pinto.

desde a p. 69
até a p.