RELIGIÃO

T'u-Ti shen

Ramon Lay Mazo*

Deuses da Terra

Texto vertido do espanhol

T'U-TI (à letra, solo-terra) é o nome genérico que se dá aos Deuses do Solo Locais. A origem destes deuses remonta à Dinastia Chou (1122-255 A. C.), quando o culto do Céu e da Terra passou a ser privilégio do Filho do Céu. O povo, que nunca se conformou em abandonar a sua velha crença na Terra, continuou a adorá-la simbolizada nos Cinco Espíritos Terrestres, representando a Terra envolvente e o Grão. A Terra-Soberana era, assim, na crença popular, a localização específica que oferecia ao homem o lugar para estabelecer a sua morada e desenvolver as suas actividades agrícolas, e o grão, produto da sua fecundidade, simbolizava a providência em seu favor. Assim, o Imperador adorava-a como T'ien-Hsia-She (o Quadrante terreno debaixo do Céu), a Terra como um todo, a qual se estendia entre os Quatro Mares, formando o Império do Meio e os países dos bárbaros que o circundavam; o povo limitava-se a adorá-la como Li-She, simplesmente como o terreno onde vivia e do qual retirava o seu sustento. O Imperador sacrificava-lhe um boi em nome do império; o povo oferecia-lhe as colheitas do campo em agradecimento pelos benefícios recebidos.

Com o correr do tempo, adoptaram-se seres humanos para representar os Deuses do Solo. Em princípio, qualquer homem podia ser eleito para desempenhar esse honroso cargo, depois da sua morte. Mas, geralmente, eram escolhidos aqueles que se houvessem distinguido por algum feito heróico ou prestado à comunidade um serviço público ou social relevante, para que, do outro mundo, o continuassem a fazer. Mas, se as suas obrigações como deuses não eram cumpridas satisfatoriamente, podiam ser destituídos e nomeados outros em seu lugar. Não poucas vezes, por consenso popular, era indicado um bandido famoso para substituir um deus destituído por negligência nos seus deveres.

Estes Deuses do Solo são conhecidos por diversos nomes, como T'u-Shen (Espíritos da Terra), T'u-Ti-Shen (Espíritos do Solo e da Terra), T'u-P'u-Sa (Deuses do Solo e da Terra), Deuses da Terra e dos Grãos, Deuses da Terra e das Colheitas, etc.. O povo chama-lhes, simplesmente, no Sul da China, T'u-Ti-Kung, e, no norte, T'u-Ti-Lao-Yeh, e divide-os em cinco grupos, correspondentes aos cinco pontos cardeais: o T'u-Ti Verde, protector da zona do Este; o Vermelho, do Sul; o Branco, do Oeste; o Preto, do Norte; e o Amarelo, do Centro. Todo o conjunto é conhecido como Wu-Fang-T'u-Ti-Shen, isto é, os Deuses Terrestres dos Cinco Pontos Cardeais, e são representados pelos Cinco Dragões que suportam a Terra, os quais, ao moverem-se, cansados com o seu peso, provocam os sismos e os terramotos.

A área de acção dos T'u-Ti é muito reduzida, principalmente nas regiões onde as aldeias se encontram muito próximas umas das outras. Além disso, cada povocação é dividida em cinco partes, cabendo a cada deus uma dessas partes, de modo que o T'u-Ti do Este não tem poder algum no lado Oeste, e vice-versa. Contudo, crê-se que são poderosíssimos dentro dos limites da sua área de acção. Protegem as comunidades dos demónios e espíritos malignos, de pestes, pragas e outras calamidades naturais. Nas áreas rurais afugentam as almas penadas e exterminam as pragas que danam as sementeiras, para que estas ofereçam abundantes colheitas, e cuidam das aves de capoeira e dos animais domésticos, para que engordem e se multipliquem.

Quando sobrevem uma seca ou inundação, as imagens destes deuses são levadas em procissão a um lugar de onde dominem o panorama e se dêm conta da situação. Crê-se que, assim, são obrigados a conjurar as catástrofes que assolam os seus domínios.

Como o povo os invoca sempre nas necessidades e lhes tem muita devoção, os seus templos e altares encontram-se nas entradas das aldeias, ao longo dos caminhos, nas margens dos canais, rios e lagos, e, nas cidades, espalhados por toda a parte.

Os templos, em geral, são quadrados, muito pequenos, medindo apenas um metro a um metro e meio de lado, tendo no seu interior as estátuas do deus e da deusa T'u-Ti, representados como citadinos, nas cidades, e como camponeses, nas aldeias. A razão por que estes templos são pequenos, tem origem na lenda seguinte.

Um mandarim de apelido Li tinha cinco filhos varões. Sua mulher era grande devota do deus T'u-Ti, enquanto ele não acreditava em nenhum ídolo. Um dia, o seu filho mais velho adoeceu e, na noite desse mesmo dia, sonhou que um T'u-Ti lhe dizia que, se não o adorasse, o seu filho ia morrer. O mandarim respondeu-lhe que, se essa era a vontade do Céu, teria que morrer. E o rapaz morreu. Logo o seguiram outros três. Quando o quinto caiu enfermo, o deus voltou a aparecer-lhe em sonhos, dizendo-lhe que já lhe havia tirado a vida a quatro dos seus filhos e que, se persistisse em não querer adorá-lo, perderia também o seu último descendente. O mandarim respondeu-lhe que esse filho não morreria; e, já que ele era o responsável pela morte dos seus quatro filhos, ia destruir todos os templos que lhe eram dedicados. E assim o fez. Dias depois, o deus voltou a aparecer-lhe em sonhos e, arrependido, confessou-lhe que os rapazes haviam morrido por determinação do Céu, e que lhe havia dito aquilo apenas para lhe conquistar a devoção. E terminou suplicando que lhe reconstruísse os templos que havia destruído. O mandarim acedeu aos rogos do deus e prometeu construir-lhe "sche-ch'i" (templos-flechas). O deus alegrou-se muito, pensando que ia edificar-lhe templos do comprimento do alcance de uma flecha disparada; mas o mandarim, para se vingar do deus, mandou reconstruir-lhe os templos da largura de uma flecha. Desde então, os templos dedicados a T'u-Ti passaram a ter esse tamanho em todo o império, excepto um, grandioso, que se encontra dentro da Cidade Proibida, em Pequim.

Os altares dedicados a este deus, nas zonas rurais, são quadrados (forma tradicional dos objectos associados ao culto da Terra), desprovidos de tecto e estão sempre rodeados de árvores. Dentro deles, o T'u-Ti aparece quase sempre representado por uma pedra tosca e pontiaguda, no máximo de meio metro de altura. Ás vezes, vêem-se cinco pedras, as quais representam os Cinco Espíritos que comandam os Cinco Pontos Cardeais ou os Cinco Dragões que personificam esta divindade. A estes altares acorrem os camponeses que procuram a protecção destes deuses, dedicando-lhes víveres, orações e pivetes.

Além dos T'u-Ti que se encontram por toda a parte servindo o culto popular, todo o lar chinês tem o seu T'u-Ti particular, como deus protector do sítio e local que a casa ocupa. É representado com os ideogramas do seu nome numa folha rectangular de papel vermelho colada no fundo de um nicho, escavado rente ao solo e a deslado da porta principal.

Durante a Dinastia Ming surgiu o costume de colocar a imagem de T'u-Ti no solo. Diz-se que, quando o imperador T'ai-Tsú (1368-1399) se deslocava, incógnito, de um lugar para outro para inspeccionar os postos militares do seu recém-estabelecido império, certa noite entrou numa pousada para comer, encontrando ocupadas todas as mesas, excepto a que estava tomada pelo deus T'u-Ti. Aborrecido, colocou a imagem no chão, dizendo: "Por favor, cede-me o teu lugar". Logo que acabou de cear, colocou outra vez a imagem do deus sobre a mesa que lhe servia de altar.

Nessa mesma noite, o deus apareceu em sonhos ao estalajadeiro e disse-lhe que, apesar de ser um deus, não queria contrariar outra vez o imperador, pelo que lhe suplicava que deixasse a sua imagem permanentemente no solo.

A notícia deste facto sobrenatural propagou-se de imediato por todo o império e os devotos, para sa-tisfazerem os desejos do deus, não tardaram em colocar a sua imagem no chão. Desde então, a imagem de T'u-T'i-Lao-Yeh nunca é posta sobre uma mesa ou peanha, nos sítios onde é adorada.

Crê-se que os deuses T'u-Ti tomam nota de tudo quanto sucede na vizinhança e dentro de cada lar e tudo comunicam a Ch'eng-Huang (o Deus das Muralhas e Fossos) e este, por sua vez, ao Rei dos Infernos, para que o transcreva no Livro da Vida. Estas informações sevir-lhe-ão para ditar os prémios ou castigos que as almas dos mortos hão-de merecer pelas suas obras neste mundo. Para caírem na graça dos T'u-Ti e receberem a sua protecção, os crentes oferecem-lhes sacrifícios e oferendas no dia 2 do segundo mês - a festa principal desta divindade - assim como em cada dia 10 dos cinco primeiros meses do ano lunar, em honra dos Cinco Espíritos que os representam. Além dessas festas indicadas no calendário, cada localidade tem a sua própria, para festejar o seu T'u-Ti particular.

1 T'ou Tei e sua esposa - altar dedicado aos espíritos protectores da terra (Templo destinado ao culto dos deuses da terra e do solo, Macau, R. de Tomás da Rosa).

Os deuses T'u-Ti diferem dos She ou She-Chi no que respeita à extensão da sua área de acção, já que a eles se lhes destina uma comunidade de umas 25 a 100 famílias, enquanto que os She controlam uma área que abarca 2.500 a 5.000 fogos e, em certos casos, até uma prefeitura inteira.

Os Ch'eng-Huang (Deuses das Muralhas e Fossos) são T'u-Ti de maior categoria que exercem a função de deuses tutelares das cidades rodeadas por muralhas, assim como dos territórios que se encontram sob a jurisdição do magistrado governamental que nelas reside, pelo que os T'u-Tique se encontram dentro desse perímetro lhes são subordinados.

Entre os mais famosos Deuses do Solo ou T'u-Ti que aparecem na literatura chinesa, encontram-se os seguintes: Kon-Lung, da época do mítico imperador Fu-Hsi (2953-2838 A. C.), destituído e reeleito como deus várias vezes; Chiang-Tsu-Wen, dos finais da Dinastia Hon; Shen-Yueh, das Dinastias Ch'i e Liang; Yo-Fei, da Dinastia Sung; T'ai-Tsu, fundador da Dinastia Ming, a partir do qual estes deuses pas-saram a ser colocados sobre o chão raso; e Ch'un-Shen-Chun que, depois de ter ascendido até ao posto de Ch 'eng-Huang, foi destituído e degredado.

O dia 21 do quinto mês lunar é a festividade de Ch'eng-Huang, o Deus das Muralhas e Fossos, o Patrono da Cidade, o Mandarim Celestial, já que cumpre as funções de protector e governador da cidade da qual é tutelar.

Esta divindade só se encontra e é adorada nas sedes das circunscrições administrativas, ou seja, nas cidades rodeadas de muralhas, e daí a origem do seu nome.

Na antiga China, todas as cidades ou vilas de certa importância estratégica ou administrativa encontravam-se rodeadas de um ch'eng ou muralha, geralmente composta de duas partes: as paredes dos lados exteriores, feitas de grandes lajes de pedra ou ladrilhos, e o espaço intermédio, cheio com terra. Esta é cavada a pouca distância do muro exterior e, à medida que é extraída, vai formando o huang ou fosso que corre paralelo com a muralha.

Como a muralha e o fosso têm, respectivamente, um espírito que os anima e reside neles, os habitantes das cidades rodeadas de muralhas, em reconhecimento e gratidão pela protecção e benefícios recebidos desses espíritos, deificaram-nos. Com o correr do tempo, estes dois espíritos começaram a ser tratados conjuntamente como um só deus, dando-se-lhes, também, uma só figura em representação antropomorfa, nascendo, assim, o deus Ch 'eng-Huang.

Na consciência popular, o magistrado assume o governo da cidade entre os seres humanos e protege-a de perigos e inimigos visíveis, enquanto que Ch'eng-Huang a rege entre os mortos e a protege de inimigos invisíveis e influências maléficas. O primeiro era considerado Yang e, o segundo, Yin, e ambos tinham igual hierarquia administrativa.

Nos tempos do império, ambos eram responsáveis pela ordem e paz da cidade e pelo bem-estar e prosperidade dos habitantes que lhes tocava reger. Era um governo participado, e assim, quando o magistrado enfrentava algum caso que não podia resolver, dirigia-se a Ch'eng-Huang, para lhe pedir ajuda e conselho. Para isso, começava por jejuar pelo menos um dia, oferecia em seguida ao deus um sacrifício e, por último, ao chegar a noite, dormia no seu templo. Pelo sonho tido nessa noite, inspirava-se para ditar a sentença e dar o veredicto definitivo.

Além de actuar como co-regente da cidade e conselheiro do magistrado, Ch'eng-Huang tinha ainda que desempenhar várias missões, já que os demónios e espíritos malignos de todo o distrito onde se encontrava assente a cidade ficavam sob a sua jurisdição, podendo compeli-los a deixar a região livre de inundações ou secas. Por isso, quando uma povoação próxima sofria com falta de chuva ou outra calamidade natural, a sua imagem era levada em procissão e passeada com pompa pelas ruas e praças, para que, com os seus próprios olhos, o deus visse a necessidade e prestasse pronta ajuda. Também se lhe implorava para conseguir uma vitória sobre os inimigos ou o termo de alguma epidemia ou praga; por fim, para todo e qualquer infortúnio público ou privado se recorria a Ch'eng-Huang.

Como divindade protectora, Ch'eng-Huang era venerado em todas as cidades do império, com excepção de muito poucas em que se adoptava outra divindade para deus tutelar. Entre estas, encontra-se a cidade de Xangai e a de Hangchou, capital da província de Chekiang, que adoptou o deus Chou-Hsin como seu Ch'eng-Huang.

Sobre a origem do culto a Ch'eng-Huang existem várias versões. Umas atribuem-no aos sacrifícios em honra de Pa-Cha (os oito espíritos que protegem ou prejudicam as colheitas) instituídos pelo imperador Yao (2357-2255 A. C.), sendo o sétimo destes espíritos, Shui-Yang, o protector dos diques e represas, o qual foi depois designado Ch'eng-Huang; outros afirmam que, a princípio, só existiam os T'u-Ti ou Deuses do Solo e das Colheitas e que o culto a Ch'eng-Huang começou muito depois, pelos fins do período feudal, quando o império se encontrava fraccionado e em contínuas guerras, época em que as cidades, para sua protecção e defesa, começaram a ser rodeadas de muralhas e fossos.

2 Tipo de altar destinado ao culto de T'ou Tei ou T'u-Ti.

3 Nicho de T'ou Tei, com perfumadores de pedra lavrada (Tempo de Á Má, Macau).

Foi também por essa época que Ch'eng-Huang passou a ser representado por seres humanos divinizados, heróis ou mandarins de personalidade irrepreensível, e, de um modo especial, por cidadãos que serviam desinteressadamente o povo e foram seus protectores. Tais indivíduos foram designados, à sua morte, Ch'eng-Huang desta ou daquela localidade, para que continuassem a proteger os seus habitantes. E, quando os livros sagrados tauístas nos dizem que a eleição de um Ch'eng-Huang corre por conta de Yu-Huang, o Augusto de Jade, o certo é que o mesmo povo é quem o elege entre os habitantes mais ilustres e bondosos já falecidos, não faltando, entretanto, casos em que, por concurso e aclamação popular, um bandido ou revoltoso haja sido eleito para esta alta distinção.

Muitos Ch'eng-Huang foram honrados por vários imperadores com títulos de Wang (rei), Kung (duque), Hou (marquês) e Po (conde), pelos relevantes serviços prestados ao império.

A festividade em honra de Ch'eng-Huang tem lugar anualmente no dia 21 do quinto mês e o seu aniversário no dia 25 do nono. Estas festas celebram-se com oferendas, sacrifícios, procissões e representações teatrais. Por ocasião das festividades do ano novo lunar, também é comemorado este deus, assim como no festival de Ch'ing-Ming, e em todos os dias de Lua nova e Lua cheia do ano.

É figurado num velho de barbas brancas, variando de vestuário segundo a localidade da qual é Ch'eng-Huang: de mandarim de alta posição, se o é de uma cidade capital e de cidadão comum e vulgar, se é de uma de menor categoria. Junto dele pode vêr-se a sua esposa, que adopta os trajes de uma velha, assim como os seus ajudantes mais chegados: Pai-Lao-Yeh (o Senhor de Branco) e Hei-Lao-Yeh (o Senhor de Negro), que estão incumbidos de o informar de tudo quanto sucede nos seus domínios, respectivamente, durante o dia e durante a noite; e Miu-T'ao (Cabeça de Boi) e Ma-Mien (Cara de Cavalo), que estão incumbidos de arrancar do corpo as almas dos moribundos que se encontram dentro dos limites da jurisdição do seu amo e levá-las à sua presença, para que se informe da identidade dos falecidos e do momento exacto em que deviam terminar a sua existência terrena, segundo o indicado no Registo da Vida e Morte, e logo, pesando as suas boas e más acções, as julgue e envie ao juíz do primeiro inferno, para que se lhes confirme a sentença e sejam remetidas às respectivas câmaras de suplícios, onde deverão purgar as suas faltas.

Supõe-se que Ch'eng-Huang exerce especial cuidado sobre os K'u-Kuei ou espíritos carentes que não tenham descendentes que os adorem e lhes ofereçam sacrifícios. Por isso, durante o festival dos espíritos errantes (dia 25 do sétimo mês), a sua imagem é levada em procissão por toda a cidade, para que ponha ordem entre eles, enquanto o povo lhes oferece comida e lhes queima roupa de papel e in-pou (barras de ouro e de prata feitas de papel).

Ch'eng-Huang é também levado em procissão durante as festividades do Ch'ing-Ming (da Pura Claridade) e do Pai-Sou (dia 1 do décimo mês), ambas dedicadas a favorecer as almas dos mortos.

*Sinólogo, com vastos conhecimentos da cultura chinesa, que aprofundou durante cerca de 30 anos vividos numa aldeia chinesa e 12 em Macau; colaborador das páginas culturais de alguns semanários mexicanos, onde tem ultimamente publicado ensaios, poemas e traduções de textos literários chineses.

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