Ethnos

Antigas receitas de segredo de Macau

Ana Maria Amaro*

O famoso Chá do Dr. Pitter e o já esquecido Chá Patrício

- Alguma vez tomou chá Pitter?

O olhar de D. Maria interrogava-me, brilhando, sobre um sorriso bonito, que o tempo conservara jovem.

- Já provou?

Não. Não conhecia. Chegara há poucos anos a Macau. Era nova na terra.

Passados dias, recebi um pacotinho cor-de-rosa vivo, embrulhado à chinesa, que derramou, sobre a mesa, quando o abri sem jeito, um pó castanho muito fino com aroma a limão.

Saboroso, o chá do Dr. Pitter!

Era segredo. A receita era segredo de família...

O Chá sin-cap ou Chá do Dr. Pitter

Pode talvez afirmar-se, sem exagero, que o chá mais popular e mais famoso entre a população portuguesa de Macau era, ainda em meados deste século, o chá sin-cap, chá Pitter ou chá do Dr. Pitter.

Por constituir um segredo de família, ciosamente guardado durante muito tempo, a receita prestou-se às mais fantasiosas interpretações por parte de quantos se lhe têm referido.

O Dr. José Caetano Soares, no seu livro "Macau e a Assistência" (1), refere-se às variedades de chá que, no seu tempo, existiam no mercado de Macau, descrevendo chás que incluíam cascas de laranja e de tangerina, e outros mais ou menos aromatizados com pétalas de várias flores, tais como mogarim (Jasminum sambac Ait.), rosa, camélia, queifa (Olea fragransL.) (2), mutre (Aglaiaodorata L.), cloranto (Chloranthus inconspicuus L.) e outras. Os ingleses englobaram estes chás na designação geral de "scented caper tea" porque eram aromáticos e porque nos chás mais finos a parte escolhida não era a folha do chazeiro, mas sim o gomo foliar mal aberto. A estes gomos foliares juntavam-se, ainda, botões de alcaparra (Caparis spinosa L.), que possuem propriedades eupépticas e são muito do agrado dos filhos da velha Albion. Segundo a mesma fonte, o chá sin-cap era uma especialidade de muito apreço no meio de Macau. A designação macaense, não seria, pois, mais do que uma corruptela de scented caper, uma vez que o termo sin-cap não é considerado, pelos sinólogos, um vocábulo chinês, nem é sequer conhecido fora do comércio que mais está em contacto com pessoas e hábitos macaenses. Um dos propagandistas desse chá sin-cap, se é que não foi o seu autor (escreveu o Dr. J. Caetano Soares), era um cirurgião, o Dr. Vicente Pitter, de origem estrangeira, mas nascido e velho residente em Macau, onde pelo casamento esteve ligado a família portuguesa.

Sobre o chá Pitter existe, ainda, um curioso documento, uma carta escrita em 1907 pelo macaense Francisco Pereira Marques, irmão do médico Dr. Lourenço Pereira Marques, carta dirigida a seu primo, João Feliciano Marques Pereira, onde pode ler-se: «Os pães de sin-cap vendem-se em todas as pharmacias chinesas e são mettidos n'um caixote de papelão. A família do Dr. Pitter sabia preparar um sin-cap especial em pó. Quando elle vivia, iamos jantar em casa d'elle no dia do seu anniversario ou de qualquer pessoa da família, e obrigava-me a tomar uma chavena de sin-cap; logo depois de um lauto jantar. » (3).

A receita

Este famoso chá era ainda preparado em Macau, nos anos 60/70, por D. Maria Tereza Pitter (4), neta daquele médico. Era vendido em embrulhinhos de papel de seda cor-de-rosa e apresentava-se sob o aspecto de um pó muito fino, castanho, e fortemente aromático, lembrando o cheiro de limão ou de laranja. Da infusão, feita como se faz para qualquer chá vulgar, resultava uma bebida de paladar muito agradável, considerada de grande valor como estomáquico.

D. Maria Tereza Pitter, que reside actualmente em Macau, teve a amabilidade de pôr à nossa disposição o original da famosa receita do chá sin-cap, segredo de família, receita que foi copiada, em 1909,(5) num antigo caderno pertencente a uma sua tia, e que dela herdou.

Esta mezinha, considerada um bom estomáquico e eupéptico, usava-se como profiláctico, após um chá gordo ou lauto banquete, e era também muito estimada em Macau contra afecções gastro-intestinais de diferentes etiologias. É composta de oito simples, quase todos específicos contra doenças do tubo digestivo, usados em medicina tradicional chinesa:

1. San chá (山查) - Crataegus cuneata Sieb. et Zucc., cujos frutos são usados como digestivo e antidiarreico. São empregados para o mesmo fim, os frutos de C. pinnatifida Bunge. (sin. C. pentagyna Waldst. et Kit.).

2. Mak ngá (麥牙) - rebento de cevada, usado em afecções gastro-intestinais.

3. Tói wu (台鳥) - raiz de Lindera strychnifolium Vill. (sin. Benzoin strychnifolium Kuntze), também conhecida por wu iók (烏藥). A raiz é usada como estomáquico aromático.

4. Chang pei (陳皮) - casca da laranja, usada como estomáquico.

5. Chün pui (川仆) -Magnolia officinalis Reh. et Wils., cuja casca do tronco é usada como antiespasmódico e estomáquico.

6. San kôk (神曲) - polifármaco vendido em blocos que lembram a antiga terra sigilata.

7. Pau sôt (泡術) - Atractylis ovata Thunb. (sin. Alia ctylodes lancea (Thunb.) DC. - classificação, aliás, insegura. A raiz desta Asteracea é usada como tónico aromático, em gastroenterite crónica.

Simples constituintes do célebre Chá Pitter

Hordeum sativum (L.), vulgare (Hack)
Crataegus cuneata Sieb. e Zuccc.
Magnolia officinalis Reh. et Wils.
Atractylis ovata Thunb.
Siler divaricatum Benth. et Hook.
Lindera strychnifolium Vill. llustrações de Chan leng Hing © 1988

8. Fóng fong ( 防風 ) - Siler divaricatum Benth. et Hook. - As raízes desta Umbelífera são usadas como antipirético e analgésico.

O Chá Patrício

O chá do Dr. Pitter anda mais ou menos confundido, na tradição popular de Macau, com o chá Patrício. Informadores idosos, porém, dizem que ambas as mezinhas se destinam ao mesmo fim, mas são de composições diferentes. Por ser também uma receita de segredo, ninguém soube dizer-nos em que consistia o dito chá Patrício.

D. Maria Margarida Gomes informou-nos de que estava quase certa de que o chá Patrício era o mesmo que wong chi chá (chá de papel amarelo, em tradução literal). Este chá vendia-se em pacotinhos amarelos, nos bons ervanários de Macau, ainda nos anos 70. Outros informadores analogam esta segunda receita com a que encontrámos num antigo caderno, pertencente a uma senhora macaense nossa amiga, receita que a seguir transcrevemos:

«Flato ou dôr de estomago

15 tapuses de Figo caque secco

15 grãos de Massaãs vermelhas

15 grãos de Longans seccos

9 mases (peso) de feijão preto

2 mases (peso) de chá velho

8 condorins de Arcassús

1 condorim ou uma pitada d'erva doce

3 olhos de Hortelã de soupa

2 pidaços de casca secca de laranja em 1 1/2 libra de agoa até reduzir uma chicara».

Esta receita tem muito interesse por estar completamente escrita em português antigo de Macau e, também, pela variedade dos simples que apresenta.

Os tapuses de Figo caque são os cálices secos de Dyospirus kakiL., que ficam aderentes ao fruto, e que são também usados em medicina como antiflogístico e emético, embora não tenha sido ainda, ao que sabemos, determinado com precisão o seu princípio activo. Tapuses, plural de tapuz, é uma palavra que, em Macau, significa touca ou capuz. É de notar que a palavra tarpuz significa, em turco, a touca formada por gomos, geralmente de brocado, que as mulheres usavam debaixo do véu. Supomos, embora sem confirmação, que a palavra tapuz, de Macau, seja derivada de tarpuz. A semelhança do cálice do dióspiro com as toucas das mulheres turcas parece confirmá-lo.

Os grãos de Massaãs vermelhas correspondem às pequenas jujubas vermelhas ou às suas sementes. O Zizyphusjujuba Mill. é usado em muitas receitas destinadas ao tratamento de doenças gastro-intestinais.

Os grãos de Longans seccos são os frutos secos de Euphoria longana Steud. Neste caso, empregam-se as sementes (grãos) que são usados em medicina chinesa como estíptico.

O feijão preto é o feijão soja conhecido, em chinês de Macau, por wu tau ( 烏豆 ). Trata-se duma Fabacea com larga sinonímia científica e que tem sido muito estudada, principalmente na América, em virtude das suas propriedades nutrientes. O nome pelo qual é mais conhecido é, porém, Soja hispida L.. Empregado para sutate (missó-china, no antigo falar de Macau), usa-se também para tafu mui e tafu fá (molho e coalhada de feijão soja), e ainda para ngá choi ou tanká choi (rebentos de feijão soja). Em medicina popular, usa-se no tratamento de doenças femininas e, de maneira geral, como revigorante, devido ao seu alto teor em vitaminas e em proteínas.

O chá velho é o chá vulgar de Thea sinensis L. (sin. T. bohea L., T. cochinchinensis Lour., T. assamica Mast., T. chinensis Sims., T. viridisL., Camelia bohea Griff., C. theifera Griff., C. viridis Link.). O chá, pela acção dos alcalóides que contém, é um estimulante contra a fadiga muscular e mental, sendo também usado em medicina chinesa como cardiotónico, diurético e adstringente intestinal. O chá velho, segundo as nossas informadoras, é o chá vulgar, escaldado, e depois seco e guardado em caixas especiais de estanho ou de bambu.

Arcassús é o mesmo que alcaçuz ou regoliz: Glycyrrhiza uralensis Fisch., se se tratar de alcaçuz da China ou Glycyrrhiza glabra L., se se tratar de alcaçuz da Europa que, dantes, se vendia nas boticas portuguesas de Macau.

Alguns simples constituintes do suposto Chá Patrício

Mentha arvensis L.
Citrus aurantium L.
Citrus nobilis Lour.
Ziziphus sativa Gaertner ou Ziziphus jujuba Mill.
Diospyros KakiL.
Euphoria longan(L.)Steud. Ilustrações de Chan leng Hing © 1988

Erva-doce , também conhecida por aniz ou aniz verde, é designada, em chinês, por siu wui héong (小茴香) ou tim siu wui (甜小茴). Esta Umbelifera, originária do Egipto e muito cultivada em Portugal, é, ainda, muito utilizada nas nossas aldeias como aromatizante de licores, confeitos e bolos, e também em medicina popular como carminativo, em casos de indigestão, flatulência e cólicas, principalmente das crianças. A erva-doce era vendida, em Macau, nas boticas portuguesas. Os chineses utilizam o Foeniculum vulgare Mill., que designam pelo mesmo nome (siu wui héong) em casos de dispepsia, cólicas e outras doenças intestinais. Pode substituir-se também por funcho doce (Foeniculum dulce G. Bauh. sin. Anetum dulce DC.).

Olhos de Hortelã de soupa são os rebentos terminais, com as folhas tenras, de hortelã vulgar (Mentha arvensis L.), usada como estomáquico, carminativo, estimulante e diurético.

A casca secca de laranja é um simples muito usado pelos chineses e considerado um bom eupéptico.

Comparando a receita do wong chi chá ( 黃纸茶 ) e a que acabamos de descrever, parece-nos muito mais verosímil ser esta, e não a primeira, a que poderia ter correspondido à receita do famoso Chá Patrício, cujo segredo se perdeu, obrigando-nos a não ultrapassar o domínio das hipóteses.

Pela comparação destas duas composições facilmente se pode verificar que são mezinhas diferentes, tendo possivelmente de comum apenas a sua eficácia como eupéptico.

Os homens

O famoso Dr. Vicente Salatwichy Pitter

Quem foi o macaense Dr. Vicente de Paulo Salatwichy Pitter, cujo nome venceu o tempo e perdurou na memória dos seus conterrâneos, como um médico de grande mérito e inventor duma mezinha "prodigiosa" - o seu famoso chá?

Vicente de Paulo nasceu em Macau em 10 de Janeiro de 1813, sendo baptizado em 17 do mesmo mês. Do seu registo de baptismo consta que é filho de Pedro Salatwichy (6) e de Josefa Antónia Favacho, naturais de Macau, e neto pa-terno de André Salati Buliu e de Maria, naturais de Raqueis, Itália, e materno de Henrique Favacho e de Quitéria Francisca.

Foi cursar medicina a Goa, em data que não podemos precisar. Sabe-se, apenas, que em 1849 já se encontrava em Macau, onde casou na Igreja de S. Lourenço, em 6 de Novembro desse ano, com Hermelinda Joaquina Cortela Leiria, filha de Macau e nascida da união de duas famílias das mais abastadas da Cidade: a família Leiria e a família Cortela.

Vicente de Paulo tinha, então, 36 anos e a sua mulher apenas 19. Hermelinda Maria faleceu em 1855, depois de ter dado à luz quatro filhos: Hermenegildo Joaquim, Maria de Assunção, Teresa Maria das Neves e Eugénia Maria.

Tendo enviuvado, o Dr. Vicente de Paulo Salatwichy Pitter, casou pela segunda vez, em S. Lourenço, em 16 de Fevereiro de 1858, com a sua cunhada Eugénia Norberta Cortela Leiria, da qual teve três filhos: Maria da Purificação, Maria das Dores (ambas falecidas ainda crianças) e Maria do Carmo, nascida em 25 de Janeiro de 1869, senhora que faleceu solteira em 9 de Outubro de 1940.

Quando o Dr. Pitter faleceu em 9 de Julho de 1882, os jornais locais teceram-lhe os mais rasgados e justos elogios.

Alguns jornais registaram as honrarias que lhe haviam sido concedidas pelos serviços prestados à Comunidade, nomeadamente às guarnições de vários navios de guerra franceses, durante a epidemia de cólera-morbo que assolou Macau, pelo que foi condecorado com o hábito da Legião de Honra. Mais tarde, também foi agraciado pelo Governo Português com as Ordens da Conceição e da Torre e Espada ("O Macaense", de 13 de Julho de 1882).

Noutros jornais, elogiam-se as suas virtudes de homem probo, católico praticante fervoroso, digno discípulo dos Padres Leite e Gonsalves, da Congregação da Missão, dos quais nunca falava sem ternura e respeito ("Novo Mensageiro do Coração de Jesus", N°20, Novembro de 1882).

Patrício da Luz

Filho de Francisco Borja da Luz e de Ana Rosa da Luz, nasceu em Macau em 1857. Estudou no Seminário de S. José e desempenhou depois diferentes cargos, nos quais se revelou um funcionário modelar, que muito prestigiou a sua terra.

Casou duas vezes; a segunda vez com Amália Maria da Encarnação, filha de Secundino da Encarnação e de Etelvina Filipa Batalha.

Patrício da Luz faleceu em 10 de Outubro de 1920, na casa n° 13 da Rua da Sé, depois de ter servido o Leal Senado durante 36 anos, dez como professor e vinte e seis como secretário. Durante vários anos, Patrício da Luz foi director da Escola Central (7).

Deixou fama em Macau, por ser uma pessoa muito inteligente e sabedora. Foi, de facto, um macaense ilustre, embora sem títulos de fidalguia, nem por linhagem nem por compra.

As receitas vistas à luzda Matéria Médica chinesa

Como é do conhecimento geral, os médicos chineses consideram as drogas mais ou menos eficazes consoante a sua natureza (quente, tépida, neutra ou fria) e consoante o seu sabor. Para além destas duas características fundamentais, o método de manipulação dos simples é também importante na regulação das suas propriedades.

Os cinco sabores estão relacionados com os cinco órgãos, por uma série de conceitos que vêm do tempo dos Sofistas e as propriedades medicinais, sabor e natureza, podem actuar tanto por antagonismo como por reforço, estando também relacionadas com os princípios iâm-ieong (dualidade que rege todo o pensamento chinês), com o sopro vital h'eie com a circulação sanguínea.

É extremamente complexa a série de inter-relações que estabelece os princípios básicos do diagnóstico, em medicina chinesa, mas é essa lógica, com raízes na mais alta Antiguidade, que permite ao Mestre redigir com certa facilidade as suas receitas.

Ímpares, pares ou complexas, estas receitas jogam sempre com as principais características dos simples que as compõem e com as suas relações com os diferentes órgãos e circuitos de energia.

Analisemos simples por simples, os componentes das receitas atrás apresentadas:

O Chá do Dr. Pitter

Crataeguscuneata Sieb. et Zucc. Vill.

(Fam.: Rosaceae)

0s frutos, recolhidos no fim do Outono e no princípio do Inverno, são secos ao sol sem qualquer preparação ou ligeiramente torrados. São considerados eupépticos. O sabor é ácido e doce e a natureza é ligeiramente tépida. Actuam sobre os meridianos do baço-pâncreas e do estômago.

Modo de acção: facilita a digestão, tonifica o estômago, activa a circulação do sangue e elimina os coágulos.

Rebento de cevada

Hordeum vulgare L. (Fam.: Gramineae)

É considerado um fármaco eupéptico, devido ao seu sabor e natureza, respectivamente doce e neutra. Actua sobre os meridianos do baço e do estômago.

Modo de acção: tonifica o estômago e facilita a digestão.

Fac-simile da receita da famosa mezinha do Dr. Pitter que durante muito tempo se manteve em segredo (cópia cedida por D. Maria Tereza Pitter).

Lindera strychnifolium Vill.

(Fam.: Lauraceae)

A raiz de lindera, seca ao sol ou levemente torrada, é considerada um bom estimulante da circulação da energia. O sabor é picante e a natureza tépida.

Actua sobre os meridianos do estômago, dos rins e da bexiga.

Modo de acção: activa a circulação da energia, elimina os coágulos, facilita a eliminação de água e dissipa os edemas.

Casca de laranja seca

Pericarpo de citrinos

C. reticulata Blanco

Citrus sp. (Fam.: Rutaceae)

O pericarpo é seco ao sol e usado sem preparação prévia, ou levemente torrado. Os pericarpos mais antigos são os mais eficazes.

Este fármaco pertence ao grupo dos que activam a circulação da energia.

O sabor é amargo e picante e a natureza tépida.

Actua sobre os meridianos do baço-pâncreas e dos pulmões.

Modo de acção: activa a circulação da energia, tonifica o baço-pâncreas, elimina as mucosidades, sustém as náuseas e reduz a sudação.

Magnolia officinalis Reh. et Wils.

e Magnolia liliflora Desr.

(Fam.: Magnoliaceae)

Flores de magnólia - dispersam o vento e o frio, devido às suas propriedades específicas.

As flores são colhidas ainda em botão, secas ao sol e depois prensadas.

O sabor é picante e a natureza tépida.

A sua eficácia resulta de penetrar nos meridianos dos pulmões e do estômago.

Modo de acção: dispersa o vento e o frio e desobstrui as fossas nasais.

San cóc (神曲)- Massa medica fermentata

Polifármaco já descrito num artigo anterior (**). É também considerado um bom eupéptico, cujo sabor é picante e doce e a natureza tépida.

Actua sobre os meridianos do baço-pâncreas e do estômago.

Modo de acção: tonifica o baço-pâncreas e o estômago, activa a circulação da energia e favorece a digestão.

Atractylis ovata Thunb.

(Fam.: Asteraceae)

A parte usada é o rizoma, que se vende depois de seco em peças ramificadas de 7cm de comprimento por 2cm de diâmetro.

O sabor é doce e amargo e a natureza tépida.

É usado como tónico e actua sobre os meridianos do baço-pâncreas e do estômago.

Modo de acção: tonifica o baço-pâncreas, tonifica o sopro vital, desseca a humidade, favorece a eliminação de urinas e reduz a sudação.

Siler divaricatum Benth. et Hook.

(Fam.: Umbeliferae)

As raízes são usadas em medicina, depois de secas. A sua natureza é tépida e o sabor é doce e aromático.

Actuam como antipirético e analgésico.

Actuam, também sobre o sopro vital e a circulação do sangue.

Conclusões: Esta receita parece-nos uma receita tipicamente chinesa de tipo par, constituída por três fármacos eupépticos, dois activadores da circulação da energia, um dispersante do vento, um tónico e um analgésico.

Quase todos os simples actuam sobre os meridianos do baço-pâncreas e do estômago, como convém a uma mezinha destinada a facilitar a digestão ou a tratar incómodos do tubo digestivo.

É de recordar, ainda, que os sabores doce e picante (iâm-iéong) induzem à eliminação do iéong, correspondendo o picante à sudação e o doce à dissipação.

O suposto Chá Patrício contra flato (acumulação de gases)ou dor de estômago

Tapuses de figo caqui

Cálices de dióspiros (Diospyros kaki L.)

(Fam.: Ebenaceae)

Activam a circulação da energia.

Os cálices dos frutos secos ao sol, podem ser utilizados sem qualquer preparação.

Os sabor é amargo e a natureza neutra.

Fac-simile da provável receita do Chá Patrício, denominada, neste apontamento, "Flato ou dôr de estomago" (reprodução de uma folha de um caderno de receitas do Séc. XIX, pertencente a D. Hermínia Figueiredo e herdada por D. Maria de Lurdes Pacheco Borges).

Actuam sobre o meridiano do estômago.

Modo de acção: faz parar os soluços e actua como amaricante.

Jujubas vermelhas

Frutos de Zizyphus jujuba Mill.

(Fam.: Rhamnaceae)

As sementes actuam como tranquilizantes e os frutos como tónicos da energia vital.

As sementes secas, devem partir-se quando se preparam em decocção.

O sabor é ácido e doce, e a natureza neutra.

Actuam sobre os meridianos do coração e do fígado.

Modo de acção: tonificam o coração e o fígado, acalmam o espírito e têm acção anti-sudorífica.

Os frutos secos ao sol, são doces e neutros.

Actuam sobre os meridianos do baço-pâncreas e do estômago.

Modo de acção: tonificam o baço-pâncreas e o estômago, acalmam o espírito, tonificam o sangue e harmonizam o efeito dos remédios no seu conjunto.

Longanes secos

Substituem por vezes, em Macau, as sementes de lichia (Litchi sinensis Sonn.)

(Fam.: Sapindaceae)

A amêndoa do fruto, seca ao sol, deve partir-se antes de ser usada ou torrada.

O sabor é picante e a natureza tépida.

Actua sobre os meridianos do fígado e do estômago.

Modo de acção: Activa a circulação da energia (sopro vital), dispersa o frio, acalma a dor e desfaz as estagnações.

Os frutos de longane [Euphoria longan (Lour.) Steud.] têm no entanto as suas propriedades específicas, muito diversas das sementes das lichias.

A parte empregada é a polpa do fruto seco, cujo sabor é doce e a natureza tépida.

Actua sobre os meridianos do coração e do baço-pâncreas.

Modo de acção: tonifica o coração, o baço-pâncreas e o sangue e acalma o espírito.

Tal como as raspas de chifre de veado, o fruto de longane é considerado um bom tranquilizante.

Feijão preto

Sementes de soja preparadas

(Glycine hispida (L.) Vilm.)

(Fam.: Fabaceae)

Têm a propriedade de dispersar o calor e o vento.

O sabor é picante-doce e ligeiramente amargo, se forem preparadas por fermentação com folhas de amoreira e de artemísia; a natureza é ligeiramente fria, se forem preparadas com Perilla frutescens e Ephedra sinica, em cujo caldo são cozidas antes de fermentarem, sendo depois secas ao sol. Neste segundo caso são picantes e ligeiramente tépidas.

Actuam sobre os meridianos dos pulmões e do estômago.

Modo de acção: libertam o vento exterior ou o calor e actuam como tranquilizantes.

Alcaçuz

(Rehmania glutinosa Libosch.)

(Fam.: Scrophulariaceae)

Os caules são cozidos em banho-maria com vinho e casca de laranja. Depois, são secos ao sol até ficarem negros exteriormente e ligeiramente gelatinosos no interior.

O sabor é doce e a natureza ligeiramente tépida.

Actuam sobre os meridianos do coração e dos rins.

Modo de acção: tonifica o coração e reforça o iâm.

Hortelã

(Mentha sp.)

(Fam.: Labiateae)

Os caules e as folhas são um fármaco que dispersa o calor e o vento.

O sabor é picante e a natureza fresca.

Actuam sobre os meridianos do fígado e dos pulmões.

Modo de acção: dispersa o calor e o vento, purifica os olhos e a cabeça e favorece os exantemas.

Casca seca de laranja

Pericarpo de citrinos

Citrus sp. (Fam.: Rutaceae)

C. reticulata Blanco (considerada a mais actuante).

Glycine hispida Vilm.

O pericarpo é seco ao sol e usado sem preparação prévia ou levemente torrado. Os mais antigos são os mais eficazes, como já se disse.

Este fármaco pertence ao grupo dos que activam a circulação da energia.

O sabor é amargo e picante e a natureza tépida.

Actua sobre os meridianos do baço-pâncreas e dos pulmões.

Modo de acção: activa a circulação da energia, tonifica o baço-pâncreas, elimina as mucosidades, sustém as náuseas e reduz a sudação.

Conclusões: Esta receita parece-nos mais indicada à luz da matéria médica chinesa para o tratamento de constipações, do que propriamente para o tratamento de males de estômago. É uma receita de tipo ímpar, na qual intervém uma maioria de estimulantes da energia e da circulação, em número de 4, dois dispersantes do calor e do vento e um tónico do sangue.

Talvez esta composição seja uma criação de médicos pouco familiarizados com a medicina chinesa clássica, uma verdadeira receita popular. E porque não uma verdadeira criação macaense?

Receitas que foram acarinhadas pelos macaenses durante muito tempo, receitas suas, parte integrante da sua cultura específica, o Chá do Dr. Pitter e o Chá Patrício pareciam condenados a cair no olvido, acompanhando muitas outras receitas que provavelmente se perderam, como em Macau tantas coisas maravilhosas se têm perdido, esmagadas pelo poder fascinador do capital. Ressalvamos, porém, mais uma vez, que a autenticidade da receita do chá Patrício e até a identificação do seu autor são, por nós, apresentadas sob reservas.

A nossa intenção é, porém, salvar todos os farrapos dourados daquela cultura tipicamente macaense, que conhecemos ainda nos anos 60/70 e que se desmoronou já, a nosso ver para sempre, condenada com indiferença a ser esquecida.

NOTAS

** In "Três Mezinhas Populares de Macau", Ana Maria Amaro, n° 2 de RC.

(1) J. Caetano Soares - Macau e a Assistência - Panorama médico-social, Edição da Agência Geral das Colónias, Lisboa, 1950, p.454.

(2) Esta espécie (Olea fragrans L.) não é a camélia, como diz o Dr. Caetano Soares, mas sim o chamado quifá ou queifá dos chinas, cujas flores são muito aromáticas.

(3) Papéis do espólio de João Feliciano Marques Pereira - Colecção de Manuscritos da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.

(4) D. Maria do Carmo Salatwichy Pitter era a filha mais nova do segundo casamento do Dr. Vicente de Paulo S. Pitter. Nasceu em 25 de Janeiro de 1869 e faleceu solteira em 9 de Outubro de 1940. Foi esta senhora quem herdou a receita do chá sin-cap e a legou a sua sobrinha D. Maria Tereza Pitter, filha do seu irmão mais velho, fruto do primeiro matrimónio de seu pai. D. Maria Tereza, foi quem nos cedeu o original da receita que aqui registamos, por intermédio da Dra Graciete Batalha.

(5) Ou 1903? Mal legível na fotocópia que nos foi enviada.

(6) Em 1.7.1791, num requerimento ao Senado para «fazer huma Taverna na praya Manduco para dar de comer a lotação de qualquer Fragata que chegue a esta Cide (...)", consta o nome de Pedro Saloto Bicho, casado e morador em Macau, que assinou de cruz por ser analfabeto. (Pe Manuel Teixeira - A Medicina em Macau, vol. III, Macau, Imprensa Nacional, 1976, p.170).

(7) Informações prestadas por Monsenhor Manuel Teixeira.

BIBLIOGRAFIA PRINCIPAL

DALGADO, D. G. - Glossário Luso-Asiático, Coimbra, 1919 (2 vols.).

GUILLAUME, G. e Mach-Chieu - Pharmacopée et Medecinetraditionnelle Chinoise - Plantes occidentales, "Ed. Presence", Saint-Vicent-sur-Jabron, Sisteron, 1987.

KEYS, J. D. - Chinese Herbs (...), Swindon Book Company Ltd., Hong Kong,1976.

MING Wong - La Médecine chinoise par les plantes, Ed. Tchou, Paris, 1976.

READ, B. E. - Chinese Medicinal Plants from the Pen Ts'ao Kang (...), Tai Pei,1982.

ROI, J. - Traité des Plantes Medicinales chinoises, Ed. Paul le Chevalier, Paris, 1955.

TEIXEIRA, Padre Manuel - A Medicina em Macau, Vol. III, Macau, Imprensa Nacional, 1970.

ZUANG Zhao, XIANG Li, NING Han - Chinese Medicinal Herbs of Hong Kong, Hong Kong, 1978-1980.

*Profa da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa; antropóloga e investigadora; autora de vários livros sobre temas da Etnografia macaense.

desde a p. 25
até a p.