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COUTO VIANA ENTRE A SAUDADE DO PASSADO E A SAUDADE DO FUTURO

João Bigotte Chorão*

Lia um destes dias Mircea Elíade — um autor que traz sempre alguma luz à nossa noite — quando, a propósito de "simbolismo aquático", vi referido Camões, a "primeira 'aparição criadora' do oceano Atlântico nas lite-raturas europeias". Lembrei-me então que Elíade confessara a Claude-Henri Rocquet que o seu interesse pelo Ori-ente datava da juventude e da "desco-berta" de Camões. O poeta, clássico pelas fontes da sua cultura e a estrutura do seu Poema, era um homem moder-no pela visão ecuménica, pelo eclectismo do saber livresco e conheci-mento através da experiência. Peregri-no de vários continentes e oceanos, Camões lançou uma ponte do Ocidente ao Oriente, na convicção soberana de que os povos ganham em conhecer-se e de que não há culturas "superiores" e culturas "inferiores", porque todas se interpenetram e complementam. Não têm as chamadas culturas "arcaicas" ou "primitivas" nada a ensinar às que te-mos por mais "civilizadas"? Foi isto que o jovem Elíade descobriu em Camões e que na maturidade, como hermeneuta das ideias e das crenças re-ligiosas, havia de desenvolver em li-vros de vasto saber e renome. Foi esta atitude moderna, e na verdade precur-sora, que o jovem Elíade admirou em Camões, que lhe revelou um mundo desconhecido, em que ele depois não se sentiria estrangeiro. Devia tanto a Camões este romeno da diáspora, que, vinha já a tarde descendo sobre a sua vida, ainda lamentava não ter podido realizar o velho sonho de consagrar um livro ao poeta português e universal. Ah! que saudade temos do que podia ter sido e não foi — desse livro que não pudemos ler e nos daria decerto um Camões diferente: um Camões não convencional, não académico, não uni-versitário, não erudito, não retórico, um Camões vivo e moderno como um marco na encruzilhada dos séculos e na viragem das ideias.

Nisto ia eu pensando enquanto lia, já não Mircea Elíade, mas António Manuel Couto Viana e a sua última colectânea poética, de título camo-niano: Até ao Longínquo China Nave-gou... Este poeta de raíz e fidelidade minhota, transplantado para a capital, sentir-se-ia em um primeiro momento como desenraizado, até se aclimatar e descobrir, como um novo Cesário, a magia e a melancolia de Lisboa; este poeta de exaltação e indignação nacio-nal, este poeta insular, e ibérico, e eu-ropeu, e africano, este poeta das sete partidas e da pátria chica, ei-lo deman-dando enfim o Oriente, refazendo os passos, na memória sempre viva e sa-grada, de Camões.

Em tão longínquas paragens, dói-lhe a saudade do passado e a sau-dade do futuro, o passado que já fo-mos, o futuro que não seremos. O pre-sente, esse não existe, areia que se es-coa tão fluida e silenciosamente que, não sendo já passado, ainda não é tam-bém futuro. É a húmida monotonia de um viver sem horizontes, são as lân-guidas, lentas horas que se evolam como o fumo de cachimbos opiados, que alguns poemas de Couto Viana evocam. Mas essa monotonia é inter-rompida, para o forasteiro, pelo pito-resco da cidade antiga e da cidade an-fíbia, pela colorida ebulição do merca-do e dos festejos populares do ano do dragão, pela oculta emoção do jogo e do vício, pelo que há de labiríntico nesse mundo e de enigmático na alma oriental. Monotonia que é também so-bressaltada por algum tufão que passa tão rapidamente como desaba sobre terras assim expostas à violência da Natureza.

A tudo o olhar de Couto Viana é sensível, tudo ele regista com curio-sidade e pormenor. O poeta que pare-cia fechado no seu mundo íntimo, como que alheado da dor alheia, co-meça a abrir os olhos para o mundo exterior, apura os ouvidos para o grito dos que protestam mesmo que só pelo silêncio. O poeta individualista sofre o drama colectivo, mergulha na "raíz da lágrima" derramada pela "pátria exausta", chegada que foi ao "ponto de não regresso", e exprime o que ou-tros não sabem, não podem ou não querem dizer.

Arrancado à intimidade do seu mundo pelo furor e o ruído da Histó-ria, Couto Viana olha cada vez mais o mundo à sua volta. O mundo exterior, com o seu rosto humano ou a sua más-cara teatral, prende a atenção do poeta que é também homem de teatro, como tal fascinado pelo espectáculo, pela tragédia ou a farsa representada no palco mais exigente ou mais improvi-sado. O poeta exercita a sua vocação visual com um realismo tal que "ve-mos" o Oriente desocultar-se ao nosso olhar surpreso.

A um poeta de vocação sobre-tudo saudosista o espectáculo de ruí-nas fala-lhe do passado e de uma gran-deza que passa porque tudo passa: a fama, a mocidade, a esperança, a mes-ma vida. As civilizações como os ho-mens são mortais, eis o que me parece ouvir na poesia de Couto Viana, ainda quando o frémito da epopeia a percor-re, ainda quando uma viva curiosidade a anima. Aos poetas é dado como que o pressentimento do desastre no cora-ção mesmo da euforia, um gosto a cin-za no luxo e na luxúria do Carnaval. Di doman non ci è certezza, "de ama-nhã nada se sabe", como suspirava no apogeu da Renascença florentina aquele Lourenço de Médicis desapare-cido faz agora cinco séculos.

Com a consciência do desas-tre, Couto Viana regista para o futuro o que recolhe da sua peregrinação pelo passado. Como num adeus, viaja por lugares onde há vestígios de velhas di-nastias — Ming, Ching — e de pega-das portuguesas. São palácios, são templos, são fortalezas, são campos santos como memória do passado, e é um nome, em Malaca uma fala — o papiá Kristão — como uma derradeira presença portuguesa, mais resistente que a pedra, mais valiosa que o oiro. A língua é o último laço, o último ves-tígio, a última expressão da nossa identidade. Quando tudo está prometi-do ao pó do nada, a voz dos poetas é a própria voz do inconsciente colectivo — história e mito, saudade e esperan-ça, império (terreno) destruído, impé-rio (celeste) a construir. Numa hora crepuscular, constitui-se Couto Viana nosso guia em terras onde nasce o Sol. Depois de No Oriente do Oriente, ad-mirável roteiro lírico de Macau, de-pois da plaquette, que é como um gri-to de protesto, Não Há Outro Mais Leal, este Até ao Longínquo China Navegou... continua a peregrinação por terras orientais, alargando-a à Chi-na, à Formosa, a Sião, à Malásia — peregrinação que o gosto só do exotismo não justifica, mas o gosto por uma história que, para o autor, é uma história exemplar.

Se certos poetas dão ao leitor a sensação penosa de que está a ler sem-pre o mesmo poema, glosado, glosado ad nauseam, porque pouco é o que eles têm a dizer, ou de que está a ler pala-vras desgarradas, um discurso sem nexo, sintomático de desagregação mental, a poesia de Couto Viana não se toma repetitiva nem despida de conteú-do. Embora fiel a um entendimento clássico da poesia, é um poeta que se renova, ao menos tematicamente. O li-rismo adolescente e melindroso, o inici-al solipsismo abre-se a uma poesia mais convivente e fraterna, quando ad-quire a súbita consciência de que per-tence a uma geração que, se fugiu à guerra, não escapou ao naufrágio co-lectivo. Depois de uma melodia mais suavemente intimista, uma voz mais sibilina ou oracular, como um augúrio definis patriae. O sentimento de deca-dência procede também do desgaste da idade, quando a palavra — e, mais do que a palavra, a realidade — "ve-lhice" ou a condição de "velho" surge quase obsessiva na sua poesia. Como para aliviar esse peso ou fugir de si, o poeta viaja. E a sua poesia faz-se então mais visual e o seu verso, ele o diz, "didáctico".

Os poemas de Macau, todos os poemas do Oriente (como, aliás, os poemas lisboetas de Café de Su-búrbio) ilustram essa, para assim di-zer, maior objectividade do último Couto Viana. Lírico embora, um ro-teiro é sempre um roteiro. Cidades, ruas, jardins, santuários, pessoas, costumes, tudo aí vemos como nas sequências de um filme ou uma co-lecção de postais ilustrados. Mas, ainda que precisas, quase fotográfi-cas, as imagens, elas são sempre sub-jectivas porque filtradas pela sensibi-lidade do espectador. E é a repercus-são íntima do que os olhos vêem que distingue o poeta ou o redactor de um diário do repórter, por brilhante que este seja.

Tal como No Oriente do Ori-ente, com a prosa lírica do roteiro de Macau, em Até ao Longínquo China Navegou... é também na prosa poéti-ca de "Um sabor a saudade" que o autor tem, a meu ver, o seu mais alto momento. Este, como aquele texto, penetra, sinuoso como um rio, o labi-rinto da cidade percorrendo ora "as ruidosas pálpebras metálicas" das lojas a "espreguiçarem às portas o atractivo da mercadoria" ora, num hotel antigo, o "aparato decadente e baço aguardando a recepção de fan-tasmas". Contra o "presente feroz", há todo "um passado que se defende no abrigo do coração".

Nesse adeus que o poeta se dá onde foi Portugal, o derradeiro poema é de evocação de Camões, e do seu canto, e do "naufrágio miserando" onde perece Dinamene. Naufraga o barco, morre a amada, mas alguma coisa sobrevive às tempestades, à his-tória, aos homens, ao tempo, à dor: o Poema que é, mais do que a celebra-ção retórica da antiga fama, a inextinguível fonte em que, atraves-sando o deserto, a nossa sede bebe a esperança do futuro.

* Lic. em Direito (Univ. Coimbra). Es-critor, ensaísta e crítico literário.

desde a p. 223
até a p.