Artes

ANABELA CANAS A SOLIDÃO, A MULHER E OS SEUS OBJECTOS

Luís Sá Cunha

Enquanto esperávamos a abertura da galeria, íamos relanceando as pinturas de Anabela Canas avistáveis atra-vés das vidraças.

E uma reminiscência nos ia ocorrendo: eram capas de re-vistas dos anos 20, ilustrações da "Contemporânea", o rosto da "Leviana" de António Ferro, tantas gravuras de tantas revis-tas das primeiras décadas do Século... E a surpresa quando, na ronda da exposição e focando particularmente as le-gendas, deparávamos com títulos como "Berlim anos 30", "Berlim anos 30...".

O tema evidente de Anabela Canas nesta sé-rie é a Solidão, uma solidão que se sugere ainda mais solitária porque solidão da Mulher. Passiva, ou adjectiva, mais naturalmente apela a Mulher, dize-mos o princípio feminino, a outra presença ou com-panhia substantivas. Logo aqui, essa lunaridade aproxima a mulher do simbolismo aquoso, argênteo dos espelhos. O universo da pintura de Anabela Ca-nas é nocturno, passivo e lunar - eminentemente feminino ou Yin, portanto.

Não é assim, por acaso, que a pintora tenha ido rebuscar instintivamente uma tradição para o seu actual momento ou movimento, e o tenha en-contrado no período datado dos princípios deste Sé culo. Porque é aí que a Mu-lher, encarnação do princípio da revolta, foi protagonista da maior guerra deste Século, e foi pela primeira vez na His-tória debater-se nas trinchei-ras da solidão.

As mulheres que a pin-tura de Anabela Canas revis-ita são como essas velhas es-tampas, as solitárias dos cafés de Toulouse-Lautrec e dos expressionistas alemães, da amargura absíntica, socorri-das desse símbolo do solip-sismo que é o cigarro, oficiantes do meticuloso ritu-al da "maquillage" - que sendo reclamo publicitário de atenção, sempre aí se repete em alívio do tédio das horas. Na "maquillage", ilude a mulher uma permanente renovação que é apelo inconsciente à companhia.

Para a mulher comum, a solidão começa com a recusa, frustação ou alheamento da maternidade.

São estas as mulheres esboçadas, praticamen-te só esboçadas, na arte dos anos 20 e 30, vítimas da primeira era industrial e do anonimato das grandes metrópoles urbanas - a solidão anónima que recla-ma de outra solidão anónima.

Do lar, a mulher transfere-se (e transfere-o) para o café. Expulsa, liberta-se da clausura do gineceu mas tem que ir reconstituí-lo em "privaci- ade" pública. Aí, é ela, uma cadeira, uma mesa, um espelho. Fundamentalmente, quase o mesmo pa-trimónio próprio e habitual, com a diferença do exí-lio e da exibição.

Não se encontra até este período, nos adere-ços mais próprios das mulheres, esse objecto que passou a ser a partir daí, e cada vez mais nos nossos dias, um prolongamento de personalidade feminina - a mala.

Para a mulher, a mala passa a ser a pequena carga da liberdade adquirida. Permite-lhe a perma-nente transposição da antiga alcova, o armar e im-provisar de repente o teatro secreto do seu antigo gineceu, o reconstituir de gestos das suas eternas vivências e vocações. Uma tabaqueira e um isquei-ro, uma foto, a canetinha e um bloco de papel, os essenciais instrumentos da "maquilhage": o "baton", a "rouge", um espelhinho. Relacionalmen-te, são a Beleza e a Epistolografia duas grandes vo-cações da Mulher comum.

Não será assim por acaso que nesta série de Anabela Canas, a mulher se rodeia simbolicamente de três objectos: a cadeira, a mala e o espelho. Objectos que podem nem sempre estar figurados, mas têm pressuposta presença como reconsti-tutivos do universo feminino ou como símbolos ou termos dialécticos uns dos outros. O espelho há-de lá estar, como ausência ou como outra mulher, porque sempre a mulher se servirá da mulher como espelho.

O que Anabela Canas intenta (e consegue) é trabalhadamente estabelecer fronteiras e limites, simbolizar a descontinuidade entre o ser e o univer-so circundante, até ao tutano de uma realidade que se expressa nos próprios modos do corpo. Daí, a quase omnipresença da cadeira.

A cadeira, cátedra, é o mais humanizavél, imprescindível e ao mesmo tempo o mais dispensá-vel dos adereços mobiliários, ou moventes. É o úni-co que se substitui à própria configuração anatómi-ca do homem, aos seus membros inferiores. E os membros inferiores não têm existência. Isto no-lo ensina a antiga sabedoria anatómica, que dividia o corpo humano em três partes ou zonas, onde três diferentes orgãos polarizavam as moções de três di-ferentes princípios superiores: a zona inferior (ínfera ou inferna), do sexo, a zona média ou media-dora do coração (alma) e a zona superna, racional ou espiritual, da cabeça.

Na cadeira, o homem senta-se, ou recorrendo à etimologia, tem uma sede. Nela pode ter o homem distinção catedrática, no que ela institui ou ordena de autoridade e dignidade.

O homem que a tome, pode tomar o poder ou predispôr-se aos labirintos da especulação, infernal ou supernal.

Fixa, ela é apenas uma lugar de reflexão oci-osa, e o ócio é a vocação do homem que, pensativo, aspira a ser pensante.

Só, uma cadeira é a espera ou a presença virtual de um corpo. Esta carga hierática confere à cadeira uma aura cuja densidade conhecem os encenadores de teatro. É esta dimensão teatral que é recuperada para os espaços de Anabela Canas, que dela se serve para o alinhamento de uma fron-teira simbólica definidora de quem vê e quem é visto. É-se actor ou espectador enquanto se ocupa, ou não, a cadeira. Inserida no âmago da própria pintura, esta lógica diacrónica abre o princípio de outra especulação. Há vários jogos de espelhos, ou especulações, nesta série de pinturas, e isso as sal-va de um encerramento estéril, como princípios de viagem de que também a mala pode ser um primei-ro elemento simbólico. Até a cadeira, lugar de lazer reflexivo, aí pode funcionar como centro ob-servador de múltiplas e multiplicadas imagens, isto é, como fâmula do espelho no cenário do "boudoir".

A mulher pressupõe sempre um espelho, que lhe é fonte de um equilíbrio superior ao do homem, mais abandonado às taras da introspectividade soli-tária do eu imperioso; o convívio permanente com o espelho, vem-lhe da necessidade de uma vigilância objectiva de si mesma, de se rever noutras imagens. São femininas, a harmonia e a simetria que a mulher superiormente ritualiza na dança. Melhor do que a viciosidade ociosa será sempre a perseguição de be-leza inesgotável num qualquer labirinto narcísico, de que a relação de mulher com o espelho é o pri-meiro símbolo eloquente.

Alargamo-nos nestas considerações sobre o espelho, movidos pela bondade de um convite a que Anabela Canas viaje mais. Porque lhe bastará inflectir um espelho para rasgar a claridade de um outro caminho, e são surpreendentes e infinitas as vias dos espelhos.

Essencialmente, a solidão radica na incapaci-dade de especulação.

Ensina-nos a semântica que especular vem de espelho (speculum) e que considerar é abarcar com os olhos as estrelas (sidus) do céu sidério.

Para a solidão, não há fuga possível, e sabe o homem que se encontra irremediavelmente só pe-rante o universo. Qualquer prova de iniciação ou salvação tem que ser vencida na solidão. Ai! do que fica às portas do próprio deserto ou abismo, pávido com aventurar-se ou perder-se. Solidão infeliz, tam-bém, a do que, tomado do terror que lhe inspira o conhecimento de si próprio, retém do espelho ape-nas o simbolismo numinoso, ou nele mergulha ao encontro de sucessivos vazios.

"O miroir!

Eaufroide par l'énnui dans ton cadre gelée

Que de fois et pendant des heures, desolée

De songes et cherchant mes souvenirs qui sont

Comme desfeuilles sous te glace au trou profond,

Je n 'apparus en toi comme une ombre lointaine,

Mais honeur! des soirs, dans ta sevère fontaine

J'ai de mon rêve épars connue le nudité!"

(Mallarmé).

Quem quiser vencer a própria solidão terá que utilizar o espelho como instrumento de iluminação.

Um dia, durante um passeio pela Baixa de Coimbra com Almada Negreiros, dizia-me ele com aquela maneira incisiva de sublinhar as coisas que enviava à nossa retenção: "Sabe o que é a saúde? A saúde é a capacidade de estar só". Ele queria signi-ficar aquela capacidade de ascensão ao intelecto ac-tivo, que haveria de sentenciar naquela outra norma de destino: "estar sozinho em casa a dar à manivela do Mundo". Só o pensamento vence a solidão, na-quela operação especulativa, invocativa ou orante, que tem o poder mágico de convocar outras compa-nhias ou presenças superiores, outros Anjos ou Mestres.

Aqui o coração se confunde, como símbolo, com o pensamento ou o espírito, única entidade que imparável ou inesgotavelmente trabalha, motor per-manente e criador dos movimentos e formas do uni- verso, e transpessoal porque existente na infinitude subjectiva dos seres.

De especulação em especulação iluminante, pode o homem tomar posse dos centros do mundo, e conquistará a companhia total no cerne da mais absoluta solidão.

Isto o que nos ocorreu a propósito desta série temática de pinturas. E porque nelas reside uma alma e um princípio de inquietação, gostámos da pintura de Anabela Canas.

desde a p. 169
até a p.