Crónica Macaense

A ESCOLA DE LÍNGUA SÍNICA NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES LUSO-CHINESAS

Celina Veiga de Oliveira*

Na dinâmica da expansão portuguesa na Ásia, Malaca constituiu sempre uma fronteira. Para cá do Estreito, a realidade adquiriu, diariamente, outros contornos e outras ambiências. Esta diferença vivencial manifestou-se, também, no plano da co-municação, mesmo ao nível mais elementar, o da compreensão linguística.

No Oceano Índico, o árabe e mesmo o hebraico, constituíram, frequentemente, a língua franca do comércio e da diplomacia. No Extremo Oriente, como na América, os Portugueses depara-ram com culturas encerradas nas próprias línguas, sem que existissem nessas paragens idiomas veicu-lares reciprocamente conhecidos.

Embora malaios e sino-malaios tivessem sido, as mais das vezes, mediadores linguísticos, a solução não só não era quotidianamente praticável como ofere-cia riscos no trato dos assuntos mais delicados, pois cada mediador podia constituir fonte de insinuação de intrigas ou de fuga de informações sigilosas.

Foi, sobretudo, neste domínio das relações di-plomáticas que a necessidade de formar intérpretes lo-cais se revelou indispensável. As relações com as au-toridades mandarínicas e com a Corte do Celeste Im-pério eram exigidas pelo complexo estatuto diplomáti-co de Macau, que se balanceava entre poderes concor-rentes, cada qual falando a sua língua e utilizando um formalismo e uma etiqueta rigorosamente fixados.

Era necessário auxiliar Portugal, dando apoio às delegações do Estado Português no quadro das relações diplomáticas ou para-diplomáticas que mantinha com o Estado Chinês; por outro lado, tor-nava-se imperioso criar condições para um diálogo mais consciente entre as autoridades portuguesas de Macau e as autoridades imperiais da China, tanto provinciais como distritais.

Aqui, a figura do "jurubaça" desempenhou um papel central; sem esquecer, na esfera do conhecimen-to dos ritos e formulários de Corte, o papel dos Jesuí-tas promovidos a letrados imperiais em Pequim.

Já no plano das relações internas da Adminis-tração Portuguesa com a comunidade local, os pro-blemas postos pelo bilinguismo eram muito atenua-dos pela dualidade de estatutos pessoais. Estando os chineses sujeitos à tutela do Mandarim vizinho, os seus contactos jurídico-administrativos com as auto-ridades portuguesas eram praticamente inexistentes. Se a necessidade de comunicação entre as duas co-munidades existia, ela situava-se, sobretudo, no pla-no dos negócios entre particulares; mas este decorria a latere da Administração.

Em 1849, aquando do governo de Ferreira do Amaral, o estatuto político de Macau sofre, como é sabido, uma profunda alteração, pondo-se fim ao siste-ma de soberania repartida e estendendo-se a jurisdição portuguesa a toda a população do Território.

No plano da comunicação político-adminis-trativa, isto colocou um novo e agudo problema: o de assegurar, na vida administrativa e judicial quoti- diana, o diálogo entre a Administração Portuguesa e a população de dialecto cantonense. Sem esquecer, adicionalmente, a questão da comunicação, com as autoridades do Império.

Concretizando um pouco melhor, a novidade da situação, a partir de 1849, consistiu no facto de que se realizou, então, a integração política de uma comu-nidade que permanecia dual nas suas manifestações culturais e, sobretudo, linguísticas. No entanto, esta integração foi feita em termos tais que à comunidade chinesa continuou a ser reconhecida a vigência dos seus costumes e práticas jurídicas.

Embora sob a forma de um tribunal especial, a partir de 1877, a Administração Portuguesa tomou a seu cargo a resolução dos diferendos que os mem-bros da comunidade chinesa decidissem apresentar-lhe. Para além do que, como é natural, assumiu o direito de punir os chineses que infringissem as leis penais portuguesas.

Esta situação deu origem, como se disse, a um problema com uma nova acuidade: o da comuni-cação, nos planos político, administrativo e judicial, entre a população chinesa e a Administração Portu-guesa, tanto mais que esta, obedecendo a uma ten-dência que se manifestava em todas as políticas co-loniais europeias, ampliava, progressivamente, o seu âmbito de intervenção.

Assim, logo em 1865, atendendo à situação da cidade de Macau, às "frequentes relações que as suas auctoridades têem com as do imperio chinez" e à "es-pecialidade da sua população", o Ministro encarrega-do dos "negocios da marinha e ultramar", Marquês de Sá da Bandeira, decretou a criação "de um corpo de interpretes de língua sinica, apto para o exercicio das funções que lhe forem incumbidas".

Este corpo era composto de um intérprete de 1. ḁ classe, um de 2. ḁ classe e "dois alumnos interpretes". Os alunos receberiam um subsídio mensal não inferior a 20$000 réis, nem superior a 30$000 réis para cada um, devendo, em contrapartida, "praticar na procuratura ou na secretaria do governo de Macau". A existência de alunos integrados no corpo de intér-pretes evidencia que este já continha o embrião de uma escola de tradutores.

Mas uma "escola de habilitação para inter-pretes sinologos e para o estudo de lingua sinica, escripta e dialecto cantonense", destinada aos funci-onários públicos de Macau que pretendam obter a referida habilitação, só será formalmente criada pelo Decreto orçamental de 22 de Julho de 1905, embora seja duvidoso que este Decreto tenha produzido re-sultados palpáveis. Com efeito, em 1914, já em ple-na vigência da primeira República Portuguesa, um decreto do então Ministro das Colónias volta a esta-belecer a criação da Escola, falando de novo, em termos de futuro, que "para habilitar jovens para intérpretes-tradutores de língua sínica", (...) "have-rá anexa à Repartição de Expediente Sínico, uma escola de língua sínica que funcionará numa das salas da mesma Repartição" (art. º 19. º).

A partir dessa data, é seguro que a Escola existiu de facto, nela funcionando o curso de intér-prete-tradutor de 2. ḁ classe, com a duração de cinco anos, e o de intérprete-tradutor de 1. ḁ classe, com a duração de três anos.

O objectivo primacial do curso de intérprete tradutor de 2. ḁ classe era a aprendizagem-base da língua sínica, escrita e falada, e de alguns conheci-mentos "acessórios" de geografia, história, política e etiqueta chinesas, bastantes para constituírem os ali-cerces de ingresso no curso de intérprete tradutor de 1. ḁ classe.

No que toca aos conteúdos programáticos deste curso, merece referência a atenção dada à cultura filo-sófica chinesa, sendo avaliados os conhecimentos dos alunos sobre o pensamento confuciano (os "Quatro Li-vros") e pós-confuciano (nomeadamente Mencius). Atenção era dada também a um outro elemento, tradicionalmente decisivo nas relações luso-chinesas — a etiqueta e os ritos oficialmente em uso na China —, e ainda ao estudo dos chamados "Tratados Iní-quos", celebrados entre a China e as potências ociden-tais após a Guerra do Ópio, sem esquecer, naturalmen-te, o tratado Luso-Chinês de 1887. O que denota que o ensino ministrado continuava a visar a formação de quadros, utilizáveis no plano das relações diplomáti-cas, como o demonstra aliás o próprio Regulamento da Repartição do Expediente Sínico, onde a Escola se inseria, que explicitava claramente como um dos seus fins, a necessidade de "fornecer intérpretes tradutores de lingua sínica à legação de Portugal em Pequim e aos consulados portugueses de Cantão e Xangai". (art. º2. º, n. º2).

Realidade que acompanha a vida da Escola des- de o seu início é a escassez endémica de alunos, os quais, exceptuado o ano de 1925 com 7 matrículas, não ultrapassam a média de 4 alunos por ano.

De entre estes, o mais emblemático, conhecido pela sua dedicação ao estudo da cultura chinesa, tradu-tor de fontes inacessíveis a investigadores não bilingues, foi Luiz Gonzaga Gomes.

Curiosamente, porém, Luis Gonzaga Gomes nunca foi um aluno brilhante. Concluído o curso de intérprete-tradutor de 2. ḁ classe, Gonzaga Gomes matricula-se, no ano lectivo de 1930/31, no curso de intérprete-tradutor de 1. ḁ classe, obtendo, nos dois primeiros anos, a classificação final de suficiente. No terceiro e último ano, porém, com provas defici-entes em língua sínica falada e escrita, é reprovado pelo júri de exames. No entanto, esta reprovação não se chega a consumar, dado o parecer emitido pelo Consultor Jurídico do Governo, solicitado a interpre-tar o Regulamento da Escola, que considerava dever o júri alterar a sua posição "no sentido de entrar, no cômputo de classificação da média final, as classifi-cações do aluno em Francês e Inglês", muito embo-ra estas disciplinas fossem consideradas acessórias no elenco curricular do Curso. Não foi, porém, um processo pacífico: Jack Braga, um dos vogais do júri, declarou "que lhe parecia que o Regulamento exigia ao examinando o conhecimento, perfeito da Língua Sínica, mas aceitava a interpretação dada pelas Estações Superiores ao referido Regulamen-to"; outro membro do júri, António Ferreira Batalha, deixou bem claro que "em sua consciência, e porque examinara o aluno, entendia dever reprová-lo, em face das provas prestadas, porque é de opinião de que o conhecimento de língua sínica éé condição primordial de habilitação técnica dos intérpretes-tradutores. Todavia, como funcionário público dis-ciplinado, acatava a ordem superior." Em consequência, Luiz Gonzaga Gomes seria aprovado com a classificação final de suficiente.

Não obstante, o estudo rigoroso e metódico, o empenhamento pessoal e esforçado e o perseverante autodidactismo de Luiz Gonzaga Gomes permitir-lhe-iam exceder, em muito, os objectivos que esta Escola de formação lhe propunha. Ele viria a ser, não simplesmente o intérprete-tradutor, mas o sinólogo, decifrador e revelador de algum do misté-rio da sensibilidade chinesa, e o estudioso de fontes essenciais para um entendimento mais completo do processo histórico de Macau, como se pode ver atra-vés do carácter diversificado das suas múltiplas pu-blicações.

A aposta num ensino visando a formação de quadros de apoio às missões diplomáticas portuguesas — para além, obviamente, do "auxílio a todas as re-partições públicas da provincia nas suas relações com os chineses" — deve ter sido um dos factores que explicam o perfil da evolução da Escola nos anos se-guintes à guerra.

De facto, as convulsões políticas dos anos qua-renta e, ulteriormente, o não reconhecimento da Repú-blica Popular da China, diminuem bastante a impor-tância das relações com a China e, por isso, tomam menos promissor o futuro dos tradutores e, sobretudo, o dos letrados nisso especializados.

E assim, a partir de 1944, a Escola deixa de atrair alunos, nem sequer conseguindo recrutar os cerca de 4 alunos que constituíam a já referida ma-trícula anual média desde o início do século, assis-tindo-se ao facto surpreendente de durante 17 anos (!), não ter havido qualquer matrícula.

Tal situação só vem a alterar-se na década de 70, quando se assiste a uma retoma de frequência da Escola, a qual readquiriu o peso inicial, tendo passado, em 1976, a denominar-se Escola Técnica.

Mas é com a reforma de 1986 que esta insti-tuição concita a procura social e profissional que hoje conhece.

Este auge de frequência da Escola relaciona-se, evidentemente, com acrescidas oportunidades de em-prego para cidadãos bilingues, normais na época em que o Território vive, para além de uma nova dinâmica económica, uma restauração das relações diplomáticas com a China, e um período de transição em que o dualismo cultural e linguístico aparece expressamente garantido na Declaração Conjunta Luso-Chinesa.

Mas a reforma da Escola em 1986 encontrou uma moldura feliz como resposta a esta necessidade de contribuir para a salvaguarda da identidade cultural biface de Macau. É de salientar, neste sentido, o reforço do peso curricular de disciplinas de recorte marca-damente cultural, como a História de Portugal, a Histó-ria da China e a História de Macau, susceptíveis de fornecer aos alunos o contexto civilizacional que supor-ta toda a prática de comunicação entre os povos.

* Licenciada em História pela Universidade de Coimbra; Professora de "História de Macau". Investigadora.

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