Artes

NOTAS ACERCA DE UMA SÉRIE TEMÁTICA

Anabela Canas*

Os limites, a des-continuidade entre um ser e o universo circundante, e os outros, é o que conti-nuo a pintar. Não basta o quadro como limite entre a ficção e o mundo de que é retirada.

Há linhas que re-dundantemente encerram as figuras, e manchas soltas que representam a abstracção do mundo face à solidez da figura, ou vice-versa, tanto faz. O que é importante são as diferenças radicais de linguagem na represen-tação, para exprimir o que há de impossível e inconcilável. O que as coisas têm de inacessível umas às outras. Essas linhas que encerram as fi-guras não representam nada de palpável. São um instrumento funcional da linguagem, a visualização do obstáculo. A haver alguma rela-ção é simbólica.

Como a cadeira, que tem o mesmo papel de encerrar o universo do ser solitário (ou no solitá rio). De o acompanhar e situar, nos limites próxi-mos dos do corpo. Uma cadeira pouco mais é em termos físicos do que o corpo. Pouco mais espa-ço ganha ao universo ou lhe retira. Pouco expan-de o espaço do corpo. Mas pode funcionar também como fronteira simbólica.

Ainda acerca da cadeira. Esta é um pouco como as roupas, como as cascas, as casas, qual-quer tipo de abrigo. Mas mais cruel. Mais indo-minável. Mais próxima e limitativa. Mais rígida. Quando o corpo está longe da cadeira, ela repre-senta a sociedade, o público. As pessoas que ob-servam. Como objecto ela tem uma deontologia própria.

Quando o corpo se senta, pode subverter um pouco as regras. Ela protege-o mas enquadrando-o nos seus limites. A cadeira é também o assento/ lugar donde não podemos e/ou não queremos sair.

Na pintura, as atitudes do corpo, mesmo em situações/cenas identificáveis com a vida, só pelo anedótico revelam o essencial.

Recomeçando — Represento e selecciono atitudes físicas do corpo, que aparentam figurar em situações. As situações são o sentido anedótico, o cenário de ficção que ilustra e ajuda a compor o corpo, o suportam e o situam no espaço. Não po-dem ou não devem ser lidas literalmente mas como mero teatro que ajuda a composição. A atitude do corpo lê-se como atitude psicológica e mais pro-fundamente quanto a afastarmos da situação apa-rentemente representada. É também uma forma de transferir o patético para as situações, para a ficção do quadro, resguardando o ser que se expõe.

É da solidão da alma que se trata. Não da solidão do corpo, ou da solidão da ausência de gente. Mas da intransponibilidade dessa solidão, que coincidentemente se encerra no corpo como metáfora, e na alma como espaço inatingível. O corpo é usado como meio de comunicação na pin-tura. É uma visualização possí-vel. Uma metáfora.

Neste universo de redun-dâncias, a redução dos meios ao menor número possível, a repe-tição minimalista dos padrões físicos algo anacrónicos, ou dos de composição algo abstractos, torna todas as pinturas variações subtis umas das outras. As figu-ras variam como que pela passa-gem do tempo, com o conse-quente desgaste, ganham sabe-doria ou inocência, profundida-de ou leveza.

Os elementos figurativos, as manchas de composição, ou os elementos da linguagem, (as linhas por exemplo), todos eles delimitam, por diferentes vias, territórios. É nesse sentido que se pode falar de minimalismo formal para exprimir o minimalismo temático.

Estas estruturas nascem do conhecimento posterior à pintura. Porque inspiração, há-a relativamente ao acto de pintar. Não à concepção. Inspiração ou disposição para medir forças, di-alogar, gerar actos criativos. E do acto de pintar, puro, inocente à partida, não imbuído de um sentido, que não o do próprio acto, gera-se pintura. Um processo complexo que transcende o quadro, a série, e o próprio tempo da pintura. Gera-se um processo de conhecimento mútuo que flui do quadro e vice-versa. Esse pro-cesso não se delimita ou conclui, como qualquer acto de comunicação.

* Pintora. Professora de Desenho do Complexo Escolar de Macau.

desde a p. 173
até a p.