"Cessai de cogitar, o abismo não sondeis"
Camilo Pessanha, "Clepsidra"
A "Metafísica da Perplexidade" é um exer-cício de heterodoxia tauísta que encontra na rapi-dez do aforismo a sua representação mais subli-me.
Os aforismos, co-mo elementos metacogni-tivos, são mais sensíveis aos jogos livres das harmonias poéticas. Vivem nesse imenso maré mag-num da linguagem ex-pressiva que, como re-cordava Heidegger, é a casa do Ser.
Decantados até àraiz ontológica, secos ou banalizados, ágeis ou contraditórios, os afo-rismos são arcos do pen-samento prontos a serem distendidos pelo exercício da razão dinâmica.
A transitividade do verbo Ser, na sua podero-sa e sibilina ontologia regional, permite impressio-nar as essências visto que a luz da razão e um dicio-nário de paixões podem ser o quantum satis para projectar toda uma cultura ou uma contra-cultura.
E a literatura é ainda o veículo primordial para a amplificação expressiva das ideias filosófi-cas, quantas vezes aprisionadas em ideologemas nos labirintos concêntricos da escolástica, a an-tiquíssima face das novas retóricas da moder-nidade.
Estas meditações metafísicas, sob a forma aforismática, foram su-geridas por sucessivas leituras, em edições vá-rias, do clássico primei-ro do tauísmo filosófico, o "Tau Te King" de Lao Tse.

A busca do Tau é uma tarefa inacabada, conhecendo os coloridos que as sociedades e as culturas lhe vão dando no curso da História.
O tauísmo é, na sua essência, uma filosofia da vida e, por via disso, um naturalismo primordial. Essa energética da vida transforma-o numa metafísica da perplexidade com uma transcendência poética invulgar, persuasiva ao ponto de o Velho Mestre ser considerado o maior de todos os Sofistas.
O"Tau Te King" é uma obra aforismática de muito pequena dimensão, com pouco mais de 5250 ideogramas, distribuídos por 81 breves capítulos. E dentro da tradição escolar chinesa, a obra é chama-da a desempenhar duas funções distintas: como exemplo de uma filosofia da vida e como exercício de caligrafia, que é uma arte notável. Sublimam-se assim pela arte, a arte caligráfica, todas as crispa-ções inerentes à dificuldade de articulação fenomenológica entre o dizível e o indizível.
No entanto, a economia sincrética do aforismo e a sua ambiguidade axiológica escondem uma meditação original e profunda e uma grande sabedoria da vida e dos homens.
Entendemos, na esteira do pioneirismo de Manuel da Silva Mendes, (que publicou em 1909 "Lao Tze e a Sua Doutrina Segundo o Tao-Te-King", e em 1930 os "Excertos de Filosofia Taoísta", ambos os estudos foram publicados em Macau), que a interpretação e a exegese do tauísmo filosófico terá de passar, para não atraiçoar a sua essência, por uma recriação poético-filosófica jo-gando no equilíbrio entre a ousadia formal e a abs-tracção especulativa.
Esta metafísica da perplexidade é bem con-dizente com a psicologia do verdadeiro espírito da China milenar nos seus mais variados aspectos.
As ideias-força, heterodiegéticas elas própri-as, na perspectiva de Genette, permitem a introdu-ção de novos elementos na linha poético-filosófica originária, enriquecendo-a sem a desvirtuar, não só pela descontinuidade cultural, mas sobretudo pela aproximação à contemporaneidade de algumas temáticas particulares caras à metafísica clássica, seguindo a classificação aristotélica dos lugares, topoi, onde se inscreve o dizer e os interditos proposicionalmente lógicos.
E não raras vezes o poder metafórico insinua e dissimula falsas analogias, por exemplo, entre o Ser na filosofia ocidental, com o Yu-Wu e o Shih-fei na filosofia chinesa, criando as condições artificiais para uma legibilidade outra, podendo passar neste discurso/ percurso o significado de cacografía intencional que Barthes dava à literatura e à literatura de ideias.
Descontando o seu explícito anti-confu-cionismo, estas meditações metafísicas procuram ser uma leitura descousificante do real, colocando--se a ética e a metafísica num plano superior no que concerne às dimensões gnosiológica e política.
Este trabalho, dentro da sua modéstia, pre-tende ser um contributo para o renascimento da sinologia portuguesa.
AFORISMOS
1. O Tau é a Razão Eterna, um discurso inces-santemente prescrutador das dimensões do Ser.
2. A energética da vida funde-se no Wu-Wei, essa espantosa metafísica da perplexidade.

3. O Wu-Wei é um acto volitivo em potência.
4. O Velho Mestre prega a harmonia das opo-sições: a legitimação da linhagem do poder absoluto e a legitimação da linhagem da de-mocracia.
5. A escola tauísta poderia ostentar esta divi-sa: "a viagem de mil léguas começa por um só passo".
6. O ideal do enciclopedismo aforístico está no "Tau Te King".
7. O caminho da perfeição encontra-se na ten-são apolínea e na paixão dionisíaca.
8. A redução eidética do Tau valoriza a sua transcendência poética.
9. Nietzsche encarna o antitauísmo: a violên-cia da nova erística é incompatível com o equilíbrio e com a harmonia essencial ao Tau.
10. O Tau é tão insondável quanto a origem do espaço e do tempo.
11. O homem deve fidelidade à natureza cós-mica e à natureza humana.
12. A falência da razão está no preconceito.
13. O pensamento reminiscente é a pura repre-sentação das obcessões morais da consciên-cia individual.
14. A prática da virtude deve ser o resultado de uma pedagogia da sinergia.
15. A tausofia é a cumplicidade filosófica com o Tau.
16. A tolerância é o tópico cardeal da tausofia.
17. A razão eterna é transracional.
18. A unicidade está para o verbo assim como a verdade para o utilitarismo.
19. A razão é indizível. As razões são discursivas.
20. O conhecimento é a liberdade de querer sa-ber.
21. O critério de verdade é feito de palavras aladas.
22. O tauísmo é fiel ao princípio de que a vida é um relâmpago biológico impressionado pelo devir.
23. O dogma é o cadáver adiado da vitalidade.
24. A vida é uma questão de aprendizagem do tempo.
25. Aprender a viver no tempo, eis porventura a mais difícil das artes.
26. Entre a ideia e a acção há um espaço sub-versivo, o amor.
27. A vida passa ao lado dos pensamentos cris-talizados.
28. Agir não-agindo é resistir às leis da mudan-ça e da opressão.
29. O espírito oriental revela-se na metafísica da perplexidade.


30. A natureza humana está em perpé-tuo devir.
31. A arquitectura da alma revela-se no comportamento.
32. A arte resulta da sensibilidade do Tau.
33. A criação é uma misteriosa monta-nha que ainda não foi possível es-calar.
34. A moral hedonista é uma ficção profissional.
35. A comoção opõe, existencialmen-te, o ser--em-si ao ser-para-si.
36. A imortalidade da alma está na ilu-minação da imensidão.
37. O Tau é um inatismo incognoscível.
38. O ascetismo é o autismo essencial.
39. A diversão pode ser um estado de dúvida da dôr.
40. O génio maligno de Descartes atormenta a cultura contemporâ-nea.
41. A ironia é uma forma incomodativa de conhecer intuiti-vamente.
42. A inquietação da vida resulta do pavor da intencionalidade.
43. A memória não deixa morrer o que morre.
44. A vida é uma intuição da morte.
45. Animus e Anima são a marca da ordem sexual no masculino.
46. Uma estátua simboliza um desejo genético de glória.
47. O demiurgo é uma espécie de mas-sagista de um deus menor.
48. A comunhão com a Natureza é a educação do espírito pela ascese.
49. O devir mascara o Ser de condutor do devir.
50. Uma previsão: a busca de raciona-lização no irracionalismo.
51. A angústia é uma das cores da feli-cidade.
52. A auto-depreciação é a estrada lar-ga que conduz ao angelismo e às crenças.
53. O governo govema-se pela fide-lidade à Ideia.
54. Uma crise significa que nin-guém possui a lanterna de Diógenes.
55. O sumo bem é uma mecânica de odores, um positivismo cor-poral.
56. O intelecto passivo é como que uma clepsidra que marca a du-ração da mística.
57. O tempo é uma oligarquia de símbolos familiares.
58. No seio do colectivismo o cogi-to é a maior e a mais proibida heresia.
59. A gramática da vida é uma con-jugação de contrariedades.
60. O teatro é, desde sempre, o mais exuberante gesto religioso.
61. A ética legitima, por vezes, to-das as bastardias culturais.
62. As cores são das melhores espe-ciarias da vida.
63. A aporia é um ideal sem aplau-sos.
64. O vício resulta do prazer pelo tédio.
65. O homem anda perdido nos iti-nerários da morte.
66. A arte da persuasão é a mais-valia cultural do outro.
67. A solidariedade é uma sugestão humanamente sofismática.
68. A paz só existe num mundo de certezas.
69. O livre-arbítrio é muito mais um lapso de linguagem do que a luz natural.
70. Caminhar, caminhar é o destino do homem.
71. Os anos loucos de atracção pela geometria do infinito iniciaram-se com a magia numérica de Pitágoras.

72. Todas as profecias se cumprem no tempo.
73. O profeta é aquele que fala por entre as bru-mas do tempo.
74. As cores são os sentimentos visuais mais descodificáveis.
75. O homem de cultura é um alfarrabista do sa-ber alheio.
76. A fé naufraga no imenso mare magnum da vida.
77. A arqueologia é um somatório de indefinidas angústias passadas.
78. A história não está só no chão que distraida-mente pisamos.
79. A humildade é a economia social do génio.
80. A fraqueza é uma embarcação que navega vitoriosamente nos mares da força.
81. A dúvida será a maior coroa de glória da inte-ligência.
82. Um livro de ideias não é só uma batalha de palavras.
83. Os deuses são como a fruta cristalizada: o seu poder é medido pelas aparências.
84. O homem é muito mais do que a legenda do pensamento.
85. A razão eterna é a mãe de todas as perfeições.
86. O desgoverno é a liberdade sitiada.
87. Uma cultura vale o que valer o seu arsenal de incertezas e de angústias.
88. A tragédia é uma aguarela povoada de más-caras.
89. A vida é o melhor tratado sobre a imortalida-de da alma.
90. A paixão é uma peregrinação ao alheio.
91. O grande trunfo da escolástica é o sucesso institucional da escola do desânimo.
92. A poética é o melhor estímulo que nos é dado pela química da vida.
93. Morrer é renascer dentro do invólucro mito-lógico.
94. A ética é o mors-amor dos grandes pensa-mentos.
95. O pobre tolo é aquele que só encena o ritual da liturgia do poder.
96. A razão eterna da tausofia fundamenta a ra-zão atomizada dos nossos dias.
97. O homem nasce antes do mito e morre sub-mergido de mitos.
98. O mito é a subversão da lógica tridi-mensional.
99. Uma nuvem de fumo é a ordem das ideias, mas não a ordem de ideias.
100. Antístenes não reconheceria hoje a sua cria-ção, o cinismo.
101. A extroversão parece uma alegoria da agres-sividade.
102. O pânico é um princípio vital da multidão.
103. O mais exigente substancialismo da persona-lidade revela-se na solidão.
104. O racismo é a mais grosseira das reificações.
105. Uma revolução é a desocultação das revoltas em embrião.
106. A moda é o colete cultural da sociedade.
107. Meditar no prazer do sofrimento é abraçar o niilismo.
108. O senso comum alberga a sensualidade sem sensibilidade.
109. A diplomacia é o único lirismo científico que se cultiva nas pausas dos conflitos.
110. A didáctica corporal é praticada pela mais ve-lha profissão do nosso mundo.
111. A inércia significa um movimento incompre-ensível para o sujeito.
112. Saber viver é a quinta-essência do sofismo.
113. A tecnocracia é o temperamento da sociedade homogénea.
BIBLIOGRAFIA
Para um melhor conhecimento das inúmeras edições do "Tau Te King" de Lao Tse, pode consultar-se, com proveito, o Catálogo da Exposição Bibliográfica dedicada a "Lao Zi", uma iniciativa da "ASIANOSTRA, Estudo de Culturas", em colaboração com a Biblioteca Central e com o Instituto Cultural de Macau.
Poul Andersen, "The Method of Holding The Three Ones: a Taoist Manual of Meditation of thefourth centuryA. D.", Curzon Press, London, 1980.
JonathanStar,"TwoSunsRising", BantamBooks, New York,1991.
J. Baird Callicott e Roger Ames, "Nature in Asian Traditions of Thought", State University of New York Press, New York, 1989.
Donald Mackenzie, "Myths andLegends: China andJapan", Bracken Books, London, 1986.
Kakuzo Okakura, "The Ideais of the East", Charles Tuttle Company, Tokyo, fifth printing, 1985.
Toshihiko Izutsu, "Between Image and No-Image", in "ERANOS LECTURES", N. ō 7, dedicado à temática "On Images — Far Eastern Ways of Thinking" ERANOS FOUNDATION/Spring Publications, Texas, 1988.
* Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras do Porto. Professor de Filosofia no Liceu de Macau.
desde a p. 121
até a p.