Artes

CARLOS MARREIROS NO REVER DA IMAGEM

Josué da Silva*

Rainer Maria Rilke em "Cartas a um jovem poeta": "O criador (entendendo-se aqui o criador como autor de objectos de leitura possível) deve ser todo um universo para si pró-prio, tudo encontrar em si pró-prio e nessa parcela da Nature-za com que se identificou."

A metáfora pode-se aplicar a Carlos Marreiros, pela vee-mência que o domina e ele domi-na. Pela forma como obtém do universo que o cerca tudo o que carece para ritualizar o processo criativo. Vejamos como o identi-fica uma sensorialidade impo-sitiva que o leva, ao mesmo tem-po, a ser arquitecto, pintor e poeta. Não há aqui qual-quer estímulo de isenção. Não se foge a uma forma de arte inventando em nós outra forma de arte. Quando um pintor e, ao mesmo tempo, um criador de poesia (não dizemos um poeta, apenas, porque todo o artista tem que ter essa condição iniciática, no entanto só afirmada no primeiro traço glorificante do poema) ele procura na associação sindromática ou apelativa a ideologia duma representação estigmatizada pelo que a Lógica de Port--Royal considerou "a invisível linguagem cujo colorido não será mais do que afigura visível — a da escrita".

"San Sui, III"Técnica mista, 122x195cm, 1991.

DESCRITIVO SOBRE O ABSTRACTO

Recordemos os longín-quos antepassados que deixa-ram a sua voz inscrita nas ca-vernas das idades primárias. Ao olharmos para um quadro de Marreiros, seja ele dos mais recentes ou dos mais an-tigos, encontramos a mesma forma de transmissão: a des-crição no texto, ilegível atra-vés do qual atingimos a "visi-bilidade" (a leitura) de Louis Marin entre dois significantes que se pertencem distinguin-do-se. E por aqui voltaríamos ainda à Lógica de Port-Royal para afirmar que o desenho (o traço pictório) é "a espiritualização da palavra escrita", ocultando-a ou expondo-a numa verbalidade que se remata "na linguagem da queda duma materialidade cuja inscrição se oferece ao olhar", textualizando-se.

Quero adiantar desde já, visto que o que acabo de escrever pode fazer supor outro tipo de afirmação, que a pintura de Carlos Marreiros não nos oferece uma leitura fácil. Quem se colocar nesta posição avaliativa perante qualquer das suas telas, comete um erro grave, sobretudo no que se refere àquelas obras onde o pintor começa a atingir uma maturidade (perí-odo assinalado entre 1988 e 1993) que lhe permite que, no gesto de reinscrição corporal, o grafo interpe-le o signo decretando a "obediência" do texto que se transforma em quadro. Mas para se atingir um certo grau interpretativo, temos de ser, do mesmo modo que diante dum Paul Klee, mais do que simples es-pectadores: há que penetrar a intensidade da compo-sição, revelar-lhe a sensualidade da cor, denunciar—lhe o artifício das linhas de fuga, numa palavra, des-fazer-lhe a textura e rememorá-lo depois em cada um dos seus fragmentos ideográficos. Se assim lida, a pintura de Carlos Marreiros recusa o sinónimo de fi-gurativa, para se combinar numa demonstração plena do descritivo no coração do abstracto. Para o obser-vador, explicar este ponto não é difícil, desde que essa explicação se realize sobre o longo estrato da estória da Arte. Por isso falei dos pictóricos primiti-vos. São eles que me dão a chave para a inteligibilidade da obra de Marreiros. Pelo que os aproxima — a dialéctica estrutural do traço enquanto signo de linguagem "oral" — e pelo que os distancia— a perfectibilidade ganha no espaço e no tempo que nega a similitude do contemporâneo.

"San Sui". 1986. Acrílico sobre cartão, Ao, 1986.

A VERTIGEM DAS GRANDES SUPERFÍCIES

Se nos debruçarmos atentamente sobre os três períodos da tentativa pictórica de Carlos Marreiros, ve-rificamos que à medida que se vai intensificando a qua-lidade das suas representações, ele exige a si próprio uma maior amplitude espacial. Parece não ter importân-cia, o pormenor, mas tem. Refira-se como se inicia em dimensões que vão entre os 16 e os 30 centímetros de papel cartolina ou madeira, para, ao longo do tempo, chegar à necessidade (imperativa) dos 200 e dos 400 centímetros. Este redimensionamento não é um mero acaso. É uma chamada. De súbito ou não, mas houve um momento em que Carlos Marreiros sentiu, como tantos outros grandes artistas plásticos, que só nas gran-des superfícies (ou pelo menos muitas vezes só nas grandes superfícies) lhe seria possível transformar na alma do traço e da cor a reflexão que termina (ou reco-meça?) com o quadro.

Ao contemplarmos bem o percurso de Marreiros e o conteúdo de cada uma das suas obras, concluiremos que esta vertigem possui, toda ela, a forma e a grandeza duma terrível interioridade — onde o sonho se dilata e sobrepõe ao homem e o arrasta para o abismo do infinito universal, telúrico e sidério, remanescente duma saudade em que o ser humano, mais do que humano, era um ser livre. Aten-te-se bem em quadros como "Mil montanhas", "A queda de um anjo" ou mesmo o que parece possuir (parece, somente) uma dada conexão temporal, ou seja, a "A chegada". E obteremos a resposta ou res-postas a esta interrogação que irrompe, de quando em quando, do mais profundo de nós mesmos: como sur-ge o homem na Arte, que nível de intranquilidade (ou de integridade) anímica o perturba ou o destina a tor-nar-se o acto criador?

FENÓMENO OU NÃO

Disponho-me a correr um risco: o do confronto com algumas doutas opiniões já vindas a público sobre Carlos Marreiros, a maioria das quais, sinceramente, me parecem tão apenas dísticos impressionistas que não explicam coisa nenhuma acerca duma obra que, a mim, me coloca a pergunta se não estou diante de um daque-les fenómenos que de muitos muitos anos vêm visitar os ho-rizontes do magistério dos deu-ses representado pelos que da Arte o alcançam mais pelo in-tuitivo que pelo conhecimento científico.

Seja, porém, como for, fenómeno ou ainda não, este ar-quitecto da pintura, este poeta da cor e do significante, este portu-guês nascido a Oriente, deriva, em minha modesta opinião, uma marca de grau e sinal superior na glória estética deste fim de Im-pério. Com a perenidade que ca-be a todas as obras que constitu-em acervo e exemplo de ultrapas-sagem da pequenez humana para o estágio duma grandeza mais do que universal, planetária.

Note-se que eu não entro nessa facilidade de expressões que pretendem qualificar a alma da pintura de Carlos Marreiros, ao falar-se do conteúdo dos seus quadros: Pessanha, caracteres chine-ses, Outonos desvanecidos. Por uma razão simplicíssima: É que o verdadeiro conteúdo da obra de Carlos Marreiros está no seu significado de franja e fronteira entre o corpo e o seu rasto, da raiz gestual que alimenta e radica na árvore da vida.

E já agora, uma outra descoberta na minha leitu-ra. A chamada transculturação de Carlos Marreiros, sendo inegável pelo que dele se entrecruza e perpetua no encontro secular de que é filho, não será apenas uma virtude circunstancial, porque é o lado mais patente do universalismo da sua obra.

Talvez digam que nesta avaliação eu estou a ser prejudicado pela imagem que da sua poesia me ficou. Não importa, porque nele, preclaramente, a poesia e a pintura não se distinguem: a dicotomia não existe e o que existe é uma substância una, que nos permitiu a possibilidade desta grande alegria interior que é contem-plarmos, na exposição dos seus quadros-poema, o ine-quívoco universo duma criatividade que se exibe conquis-tando de mão segura o próximo horizonte. E isto, muito importante, dialogando intensamente com todos nós.

"San Sui. II" (Tríptico) Técnica mista, 205x195cm. 1990.

* Jornalista. Escritor, com romances e novelas publicados.

desde a p. 165
até a p.