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VERSOS DE BRISA PORTUGUESA ESCRITOS NUMA FLOR DE LÓTUS

Natália Correia*

Quem foi esta surpreendente poetisa que no Extremo Oriente, em Macau, ocultou da devassa da fama as espécies exóticas da sua singular poesia?

Em poucas palavras, pois que a outros deixo o engenho de bi-ografar que não possuo, dou notícia no essencial de elementos que me foram fornecidos pelo filho da poe-tisa, Coronel Mariano Alberto Acciaioli Tamagnini Barbosa e que recolho do livro do Padre Manuel Teixeira, Galeria de Mulheres Ilus-tres em Macau, edição do Centro de Informação e Turismo, Macau, Im-prensa Nacional, 1974.

Filha do Juiz Manuel de Bar-ros da Fonseca e de Lia Magalhães Colaço, Maria Ana de Magalhães Colaço Acciaioli nasceu em 3 de Julho de 1900 em Torres Vedras. Muito jovem encontra-se em Macau casada com o Governador Artur Tamagnini Barbosa que a desposou em segundas núpcias. Aqui viveu 7 anos grangeando grande prestígio quer pela irradiação do seu espírito, que brilhava à flor da delicada for mosura que os seus retratos nos mostram, quer pelo talento literário com que semeou por jornais e revis-tas uma assinalável colaboração em verso e prosa, quer ainda pelo seu empenho em obras sociais e protec-ção com que encorajava as artes e letras. Meteórica foi a passagem pela vida desta invulgar estrela da constelação do nosso lirismo orientalista. À beira de completar 33 anos, o parto do seu quinto filho punha, em Lisboa, a 5 de Julho de 1933, um fim cruelmente prematuro na sua existência.

Regista o seu biógrafo Padre Manuel Teixeira que o desapareci-mento de Maria Ana abriu uma feri-da incurável na saudade do marido que, vindo governar Macau pela ter-ceira vez, em breve (1940) falecia no seu posto, vergado à dor de a ter perdido e ao peso das vigílias e ho-ras críticas que teve de enfrentar na governação ao tempo em que a 2ḁ Guerra Mundial convulsionava a história da humanidade.

Atraente criatura compósita de emoção e brisa, a sua poesia flo-resce da estranha osmose da comoção feminil da alma lusa e desse Oriente que guarda o arcano do mistério do supramundo no mundo.

"Ela foi uma parnasiana, sim, justificadamente e conscientemente parnasiana". Isto escreveu Amândio César numa das raras homenagens da posteridade à primeira mulher de le-tras portuguesa que publicou um livro de poemas de temática extremo-ori-ental concretamente respirada na at-mosfera em que viveu. Divergindo do exclusivismo desse carimbo estampa-do na poemática de Maria Ana, ocor-re-me antes registar o talento da ubi-quidade com que, mantendo na mora-da parnasiana das Musas um lugar lí-rico incontestável, igualmente o con-quistou num Simbolismo aliás consanguíneo do Parnasianismo, marcadamente nos preciosismos da gama exótica do Oriente de que se recamou a imagética simbolista.

Contudo, a singularidade da poesia de Maria Ana A. Tamagnini apresenta-se noutros níveis que subs-tancialmente se manifestam em três facetas.

Na primeira, ela contrapõe um Orientalismo efectivamente vivido e sentido a esse Orientalismo sem Ori-ente que se aviva na tertúlia Coimbrã, sobretudo com as Salomés e as Belkisses de um Eugénio de Castro e os Idílios Chineses de Luís Guima-rães Filho, bem mais luso que brasi-leiro já que os panoramas do Simbo-lismo brasileiro o excluem, não por demérito mas com toda a evidência por o integrarem no Simbolismo por-tuguês.

Bebido numa corrente que, re-agindo em França contra o Romantis-mo socialmente apologético dessa ca-mada mitológica do Século XIX que Vroclav Czerni denomina Le Titanisme du XIX Siècle (a revolta de Prometeu), esse orientalismo livresco socorria-se dos mitos e das crenças mais exóticas cujas fontes os poetas e escritores franceses iam demandar no Oriente. É na fermentação deste am-biente que Théophile Gautier, andarilhando da Rússia a Cons-tantinopla, recolhe do imaginário ori-ental a estética que faz dele o percursor dos Parnasianos. E, em conformidade, dá à sua filha Louise--Judith Gautier, bem próxima dos portugueses como autora de Les Amours de Camoens et de Catherine d'Athaide (1827), um mestre chinês para a iniciar nas ideias e costumes do Extremo Oriente. Desta instrução, re-sultou vir ela a traduzir O Livro de Jade, uma colectânea da poesia chi-nesa que António Feijó, magister dos nossos Parnasianos, reelaborou no Cancioneiro Chinês, título que dá à sua tradução do Livro de Jade.

Excêntrica a este painel de um Orientalismo parnasiano-simbolista de fabrico livresco é a poesia Extre-mo Oriental de Maria Ana Acciaioli Tamagnini que apresenta a novidade da vivência desse exótico no espaço próprio das suas motivações temá-ticas.

Com o fecho desta faceta da diferenciação da poetisa no patrimó-nio do Orientalismo sem Oriente do nosso Simbolismo pamasiano-simbo-lista, entro no segundo nível da singu-laridade da autora de Lin-Tchi-Fá.

Está dito e acertadamente que o ocidental dificilmente penetra na alma do Oriente. O acerto desta visão é indiscutível. Mas importa re-alçar que o é devido à venda do racionalismo derivado do princípio solar exacerbadamente individua-lizante que impera no Ocidente. Já a intuição penetrante, ou melhor a ín-dole comunial da mulher (o Yin) predispõe-a a captar o sentido da lunaridade que banha a poesia chi-nesa. Tal é o caso da poetisa inter-pretado nesta perspectiva por outras palavras, as do poeta santomense Herculano Levy (Diário de Lisboa (13 - 7 - 1925): "Esta senhora, de alma lusitana, dir-se-ia, só por ter passado em terras de mandarins, que descende, pela subtil intoxica-ção do Oriente no seu espírito e pelo requinte da sua bizarria e luxu-riante imaginação, de uma das Cem Famílias que honraram e honram toda a aristocracia do Celeste Impé-rio". Desconte-se o rebuscado do es-tilo engalanado com a imagem data-da das Cem Famílias e fixe-se a pertinência de fundo da análise que, para ser mais idónea, devia pôr co-munhão em vez de intoxicação.

E pela via destas últimas ob-servações chego a outro distintivo do Orientalismo da poemática da autora de Lin-Tchi-Fá, que é aliás um corolário do que precedentemente foquei. Neste seu livro, Maria Ana Acciaioli Tamagnini contraprova, ao tempo, o exíguo e esparso pecúlio de um lirismo extremo-oriental de auto-ria de poetas portugueses radicados, ou de passagem nessa para nós mítica paragem da China Meridional.

Vejamos. A referência a real-çar é, evidentemente, Camilo Pessa-nha. Figura maior do Simbolismo que, como registei, absorveu, por via literária a poética do Orien-talismo, seria de esperar vê-la plas-mada na sua poesia tanto mais que o Oriente foi para ele uma experiência vital decisiva. Ora a verdade é que, excluindo o seu volume de estudos sobre a China, pois é a poesia como evidência de uma sensibilidade en-volvida no sortilégio do Oriente que me inspira estas divagações intro-dutórias, só uma ou outra pincelada chinesa denotam discretamente na Clepsidra a influência do exotismo ambiental na inspiração do poeta. Discordando da tese que atribui essa omissão a um Orientalismo não de-corativo mas interior e subtil, forço-samente sublinho que, da interio-ridade de estados de alma que se subtraem ao espaço e ao tempo é feita a lírica de Camilo Pessanha. Daí esse desprendimento na sua po-esia da circunstância da cena orien-tal, já que a sua pátria é um país perdido que a sua "alma lânguida e inerme" procura no paraíso artificial do ópio. Eis um tema onírico e paté-tico em que, com o poema Casas de Ópio, a poetisa atinge um dos pon-tos mais altos do seu lirismo lunar. Nessa peça digna de figurar numa antologia do Simbolismo, a imagética inscreve-se, por vezes, num discurso surrealista pelo realce que a poetisa dá às figuras sobrena-turais que dão hospedagem aos opiados nessas casas do sonho:

Nos kakimonos, de papel pintado,

Os dragões saltam, riem as carran-

cas,

E entre as nuvens do fundo

acobreado

Os deuses montam em cegonhas

brancas.

Nestes, como em muitos ou-tros versos, a autora de Flor de Lótus dá asas à sua natureza feminina atraí-da pelo Yin, aderindo, por isso mes-mo, à mitologia de uma civilização que se rege por padrões lunares. Con-fessa-o ela própria na epígrafe com que abre o poema Ao Som do Gongo. O gongo que afasta o perigo do eclip-se, o dragão irado "que tenta à força devorar a lua".

Mas sendo o Yin a Lua, esta escorre como a água que gera a ferti-lidade. Daí sobressair no seu lirismo uma acentuada relação feminina água, luar e flor:

E, à luz branca do luar,

As tuas mãos transparentes

Colheram um nenúfar,

A flor das águas dormentes.

Chega a hora crepuscular em que a Lua nasce por detrás dos mon-tes e, já no lago, os lótus são pérolas sombrias.

É retomada a temática do re-pouso lacustre. O lago Nan-Hu apa-rece-lhe como um grande e lindo ne-núfar onde a Lua mostra as formas divinas.

Mas na abertura e no fecho do seu livro é a própria Maria Ana que nos dá o código para desocultarmos as sementes da mito-logia chinesa do princípio feminino que faz florir a sua poesia. Logo no primeiro poema lê-se:

Ah! Se eu pudesse como outrora ao

luar,

Por esses lagos nos jardins

dispersos,

Ir as folhas de lótus apanhar

Para sobre elas escrever meus ver-

sos...

Confirmada no curso poético que se segue, a comunhão da sensi-bilidade da poetisa com os ritmos naturais em que a Lua tem os seus modelos, o que ela exprime na metá-fora dos versos escritos nas folhas do lótus, no poema terminal, Lin-Tchi-Fá — Flor de Lótus em portu-guês — que dá o título ao livro, a sua autora solta a mitologia do Yin que lhe tutela o delicado estro. As flores de lótus, flores da noite, ini-migas do Sol (o Yang, contraposição masculina do Yin) são princesas que nelas estão encantadas. Se um deus ou um feiticeiro ou um santo lhes quebrasse o encanto os lagos morre-riam de dor inanimados. Só os cis-nes (figuras solares) exultariam de vaidade. Mas, saudosa, a Lua chora-ria e os poetas nunca mais cantariam a poesia das noites orientais.

Quando Lin-Tchi-Fá foi pu-blicado pela primeira e até agora única vez, em 1925, a crítica aco-lheu-o com entusiasmos que em breve se esfumaram dando lugar a um esquecimento que grosseira-mente tem silenciado o nome da au-tora destas valiosas poesias extre-mo-orientais. Nessas críticas Maria Ana Acciaioli Tamagnini viu os seus poemas serem galardoados com uma primazia de subjectividade e autenticidade ori-ental em relação ao Cancioneiro Chinês traduzido por Feijó (Hercu-lano Levy, Diário de Lisboa, 13 - 7 - 1925). Noutra crítica, publicada n'O Século (24 - 6 - 25) conjecturalmente escrita por Henri-que Trindade Coelho que dirigia esse jornal, amontoam-se os encómios que em demasia exaltam o pictural e o luxuriante de um des-critivo que ela ultrapassa vivencialmente nesses poemas que põe a deslizar no seu barco de ver-sos por águas prateadas em que os salgueirais e as montanhas azuladas se reflectem.

Esta travagem discreta no lavor artístico e luxo vocabular do Orientalismo pamasiano-simbolista em que epocalmente a sua poesia se insere, com a unicidade de o ter be-bido na fonte, gerou em algumas lei-turas a descabida ideia de lhe atribuirem uma influência de Cami-lo Pessanha. Ignaro equívoco que escamoteia ou ignora ser a Musa deste poeta, em que o Orientalismo minimamente está presente, uma lusíada finesse romântica filtrada por Verlaine.

Mas das contradições da críti-ca fica o fascínio que nela exerceram estes poemas lidimamente extremo-orientais pela primeira vez publicados em livro por uma mulher que, pela magia da afinidade da sua sensível es-sência feminina com a lunaridade da poesia chinesa, surge como uma rara aparição no panorama orientalista do nosso lirismo.

Mal haja a misoginia que vol-te a sepultar a sua memória nas trevas do olvido.

* Poetisa, um dos maiores poetas de Língua Portuguesa (+ em 1993). Auto-ra de peças dramáticas, ensaísta, jorna-lista, interventora política, tendo sido Deputada à Assembleia da República.

desde a p. 220
até a p.