Antropologia

RITUAIS DA MORTE RITUAIS DA VIDA NA ANTIGA CHINA

Ana Maria Amaro*

"Nascer não é começar,

Morrer não é acabar".

(Lao Tse, v. 5)

Confúcio (552 - 479 a. C.), ao recompilar o pensamen-to dos antigos filósofos e as tra-dições do seu tempo, algumas com raízes no Neolítico chinês, criou uma doutrina orientadora da conduta humana a qual, sem nunca falar nos Deuses nem dar explicação para os fenómenos da vida e da morte, serviu, pe-los seus conceitos metódicos de conduta moral, para a coesão da Família e, a partir dela, para a coesão político-social da pró-pria China.

Três estampas com "Seis exemplos de piedade filial" (Museu do Ermitage). Segundo a doutrina Confuciana, o respeito dos mais velhos na sociedade e na família era erigido em culto. Existia um livro canónico, "Os vinte e quatro modelos de piedade filial", recolha de exemplos históricos edificantes. As imagens, que ilustram esses exemplos com textos explicativos, estão encerradas em medalhões que recortam caracteres chineses alusivos.

Segundo o grande mestre, a sua doutrina era uma unidade que interligava todas as coisas. E a verdade é que, ainda hoje, muito resta do pensamen-to confucionista na vida dos chineses, corrente que regulou, até à implantação da República na China, em 1912, todo o seu comportamento moral e social.

Curiosamente, e por este facto talvez, os anti gos rituais que Confúcio e seus discípulos compilaram a partir das tradições da China Arcai-ca, lograram perdurar ao longo dos milénios. Destes, os mais importantes, e os que ainda hoje mais vinculados se encon-tram entre os Chineses, são, quanto a nós, os rituais da morte, rituais que devem a sua sobrevivência preci-samente ao conceito de imortalidade, de non finis, que encerram.

Para compreender o facto de serem rituais de vida os rituais da morte entre os Chineses, é preciso entender a sua concepção de Vida e o significado do conceito-chave confucionista — o conceito de Yi (義).

Contudo, para se compreender o conceito de Vida, que o próprio Confúcio dizia ignorar, é preci-so conhecer os conceitos de Alma, da antiga filoso-fia chinesa, que chegaram aos nossos dias.

A noção de Alma, para os chineses, não é de forma alguma semelhante à do Ocidente. Não existe, para aqueles, uma essência una e imortal que tem o corpo como morada. Existem, sim, 2 grupos de espí-ritos, de acordo com a dualidade cósmica do Yin--Yang, considerado o princípio do eterno equilíbrio.

Não sendo perfeita a equivalência entre alma (essência superior que anima o corpo) e espírito (energia vital), cada pessoa tem três almas (sam wan三魂 ) e 7 espíritos (chat pak七魄).

As almas são consideradas essências espiritu-ais, celestes, e os espíritos, almas sensitivas, terres-tres. A manifestação física das almas sensitivas, apa-rece sob a forma materializada do corpo. Da reunião deste conjunto dual, (respectivamente Yang-Yin), e ainda da actividade consciente ou vontade, o chama do I ( 意 ), resulta o San ( 神 ), a manifestação do Eu.

Um típico caixão chinês.

Um dos 3 wan, depois da morte, ascende ao mundo do Além, outro fica na terra acompanhando o corpo, e o terceiro fica a residir na estela funerária, que deve ser colocada e venerada no altar ancestral.

Nem todos os autores são unânimes na inter-pretação do conceito de alma tal como o concebiam os antigos chineses.

Para G. Soulié de Morant ("L'Acupuncture chinoise", 1972), o psiquismo humano dos autores chineses pode esquematizar-se como se segue:

O Chen (san em cantonense) — o Eu ( 神 ), é composto por quatro elementos inseparáveis, àcerca dos quais não há coincidência entre os diferentes autores, inclusivamente, autores chineses ( 意 ).

1. O I (ligado à energia da Terra), é composto de imagens do passado e do presente do Universo físico ancestral. Relaciona as experiências do passa-do e da consciência, às acções do presente. É no I que está a memória. Funciona a partir de analogias e deduções.

2. O Che (志) (si em cantonense) é o centro dos actos voluntários.

3. O Roun ( 魂 ) (wan em cantonense), corresponde aos reflexos e às pulsões. É a memória inconsciente. Está ligado à energia dentro da Filoso-fia dos 5 elementos.

4. O Pro ( 魄 ) (pak em cantonense), é o plano motor. O centro das pulsões.

É de notar, analisando os ideogramas que tra-duzem estes 4 elementos do psiquismo humano, que os 2 últimos são formados pelo ideograma Kwâi(鬼) aliado respectivamente a pak ( 白 ) e a wan ( 云 ) que significam, respectivamente, branco e nuvem.

Um funeral chinês na Praia Grande (anos 20).

Depois da morte, um chen ou san, vai renas-cer no Além; sendo um Kwai, aquele que fica a residir na terra e que pode transviar-se e dar origem aos espíritos famintos, tão temidos pelos chineses.

O Kwâi e o san são, assim, as duas essências que se confrontam: o Kwâi, terrestre e maléfico, e o San, celestial e complacente. Simplesmente, este Kwâi é o que resta, depois da morte, de um dos 3 wan dos teóricos das 3 almas e dos 7 espíritos.

O Kwai, numa palavra, é a alma material que volta à terra, uma vez que os Kwâi correspondem a todos os espíritos materiais.

As forças vitais das pessoas que não cum- prem o seu destino, isto é, morrem sem descendên-cia ou interrompem, por morte violenta, o seu ciclo, não podem, também, passar ao Mundo dos Antepas-sados, nem reintegrar-se na matriz familiar. Trans-formam-se em almas exiladas que vivem em condi-ções muito penosas no mundo dos homens — os Kwâi, que tão temidos são em Macau.

A passagem a Ancestral ou Antepassado re-sultante da Morte, obtém-se através dos ritos funerá-rios, que tendem a dar força ao Espírito san para atravessar as pontes de ouro e de prata, e fazer a longa viagem, pelo mundo das trevas, e, finalmente, o apoiam no acto da sua integração, que corresponde a um novo esforço de nascer. Nesse Além, o que partiu (um chinês nunca diz que morreu alguém), ficará a viver, sob a tutela do seu Avô, e a sua integração levará 3 anos, o antigo tempo de luto por pai, período que corresponde àquele que a criança leva a começar a falar e a integrar-se no mundo dos adultos, e também ao tempo que o filho mais velho, seu sucessor na chefia da Família, tem de levar para se integrar no seu novo estatuto.

Encontramos, aqui, dois Ritos de passagem simultâneos, tal como os entende Van Gennep (1909)2, com as suas três fases de separação, margi-nais e de agregação:

1. Separação ou segregação. O moribundo é deitado no chão, em contacto com a mãe-terra, sobre uma esteira, voltado para a porta da rua. É verificada a morte por meio de um pedaço de algodão. É cha-mada a alma, (usando-se o primeiro nome — o nome de criança)3 na esperança de retomo.

Funeral do comendador Lou-Lim-Ioc.

2. Fases liminares ou marginais. Sub-dividi-das em três momentos: o filho mais velho vai com-prar a água a um poço.

2.1. O morto é lavado, vestido e obliteradas as aberturas do corpo com jade, material julgado in-corruptível. A seguir é colocado no caixão feito num tronco de árvore, de preferência antiga.

2.2. Em "câmara ardente" o morto é reveren-ciado pelos familiares e amigos. São-lhe oferecidas peças de pano, alimentos e mandados reproduzir, em papel, a estela funerária, onde a alma irá viver, e os objectos considerados necessários à sua vida no Além.

2.3. Escolhido o local anteriormente por um geomante, são feitos os funerais e queimados todos os papéis votivos que, assim, acompanham o defunto.

Cortejo fúnebre chinês: os "bons diabos" (Macau, 1929).

3. Agregação. O indivíduo renasce no mundo dos Ancestrais, ou Antepassados, e fica a residir en-tre os seus, na estela de madeira que é, finalmente, colocada no altar doméstico.

Tudo está hierarquizado e processa-se de acordo com a etiqueta que vem dos antigos tempos.

O filho mais velho assume a chefia da Família.

Há aqui, como se vê, um reiniciar do ciclo vida/morte e um duplo rito de passagem:

— o que toma o chefe da Família falecido num venerável Antepassado que, no Além, velará pela Fa-mília, se esta o continuar a tratar como dantes;

— o novo estatuto assumido pelo filho mais velho que, por sua vez, ao morrer, dará lugar ao seu primogénito, que cumprirá igualmente os mesmos rituais se quiser que morrer, de facto, não seja aca-bar, mas recomeçar.

É curioso notar que estes rituais fúnebres dos nossos dias, são nítidos vestígios das mais antigas práticas que se conhecem na China e que nos foram legadas pelo Li Ki, ( 禮記 ) o "Livro dos Ritos"4.

Antes de nos debruçarmos sobre a análise des-tes rituais, parece-nos, porém, oportuno esclarecer os conceitos de Li ( 禮 ) e de Yi, ( 義 ) princípios intro-duzidos por Confúcio na civilização chinesa, (cuja autoria, aliás, alguns sinólogos lhe contestam), e sem a compreensão dos quais todo o significado do cerimonial relacionado com a morte nos escapará.

O conceito de Li ultrapassa o de mero ritual porquanto, segundo o próprio mestre afirma, o "Li vem do coração", o que parece significar que os actos de cortesia humana não só se aprendem mas têm de ser espontâneos na sua execução.

Se é difícil definir o conceito de Li, mais difí cil se toma definir o de Yi, e isto porque o Yi se encontra na charneira da visão naturalista e da cons-trução espiritualista5. Os sinólogos ocidentais têm traduzido este conceito por equidade e por simplici-dade funcional, sendo, em nossa opinião, imperfeita qualquer das traduções. O Yi aproxima-se, de certo modo, do conceito de dharma — Cada coisa é, e portanto deve ser, apenas aquilo que é.

Daí a ética confucionista recomendar a pertinência nas relações de cada um, de acordo com o local que ocupa e de acordo com aquilo que devem realizar: "que o soberano seja soberano e o vassalo, vassalo; que o pai seja pai e que o filho seja filho"6, é a máxima chave de organização moral e social que logrou manter em equilíbrio, durante muitos séculos, a sociedade do imenso Império chinês.

Estes lugares ou cargos de cada ser social, têm fundamentos simbólicos.

Bonzos num enterro chinês (Macau, 1929).

O Soberano representa o poder Divino na Terra, porque foram as divindades que lhe deram o poder. Estabelece, pois, a ligação entre o macro e o microcosmos, entre o Mundo real e o Mundo sobre-natural.

O pai, é, por seu turno, o elemento chave na Família; principalmente o pai do pai, na família exten-sa tradicional, porque é o pai o elo de ligação entre a família, no mundo dos vivos, e os antepassados que vivem numa hierarquia, semelhante à terrena, no Mun-do do Além sobre o qual, aliás, Confúcio nunca se pronunciou. É esta ligação vertical que assegura a pe-renidade e a imortalidade em si mesma.

Para explicar esse mundo dos espíritos, ou dos san familiares, foi preciso o apoio das filosofias com corpo religioso: a tauista e a budista que, igual-mente, desde os antigos tempos, mais ou menos se confundem entre o povo chinês.

Para os budistas, o Além é o Nirvana onde nada acaba, a não ser o sofrimento de se viver na Terra, a beatitude do não-ser e da libertação da roda da Metempsicose.

Para os tauistas, o Além é o Tau ( 道 ) — o Princípio e o Fim; o eterno retomo.

A partir destes conceitos, analisemos o actual ritual da morte praticado, ainda, fora da China, pelos chineses conservadores, embora já expurgado de vá-rias cerimónias cujo significado se perdeu. É curioso notar que estes rituais mantêm, ainda, vestígios mui-to nítidos daqueles que se praticavam, pelo menos há cerca de três milénios, na China, durante a dinas-tia Chou ( 周 ) (II -I milénios a. C.)7

Dos rituais relacionados com a Morte, há, na China, a considerar dois grandes grupos:

1. O ritual funerário;

2. As cerimónias em honra dos Antepassados, com veneração das estelas nos templos e utilização de simulacros de moedas para "compra de vida" ou direito de viver e a oferta de alimentos e visita aos túmulos (a chamada veneração das montanhas) em dias aprazados no calendário luni-lunar.

RITUAL FUNERÁRIO

Não há coisa mais importante, para um chinês conservador, do que ser sepultado "como deve ser", isto é, de forma a que os seus familiares, nomeadamente o seu filho mais velho, que o substituirá na chefia da casa, lhe dêem força bastante para alcançar o Mundo espiritual dos Antepassados, onde irá re-nascer e iniciar uma nova experiência. Daí o novo nome que, nessa altura, recebe.

Por outro lado, a pompa funerária é sempre um sinal de prestígio para a Família, e de considera-ção para o filho exemplar, que tão grandes mostras dá da sua piedade, chegando a empenhar-se, por ve-zes, para fazer um funeral condigno ao seu progeni-tor.

Ter um bom caixão, já comprado em vida e ainda com saúde, é, para um chinês, um motivo de paz e de tranquilidade, chegando a guardar tal objec-to no seu próprio quarto, o que nos horrorizaria, a nós Ocidentais. Nisso, para o chinês, não há nada de macabro. É perfeitamente natural. Motivo de des-gosto e de preocupação é não possuir o seu caixão, se possível em boa madeira, talhado num tronco de árvore antiga, e revestido de secções de madeira em lúnula, o que lhe confere uma forma muito caracte-rística.

São sete8, as actuais fases rituais próprias do ritual funerário, as quais podemos incluir nos 3 mo-mentos que Van Gennep considera inerentes aos ri-tos de passagem e que atrás foram referidas.

O PASSAMENTO

Quando um chinês está próximo da morte, a Família reunida, coloca-o no chão, junto à porta da casa, sobre uma esteira, com os pés voltados para a saída.

Com fios de seda, recolhe-se-lhe o "último hálito": verificando-se o passamento, quando os fios deixam de tremer.

O filho vai, então, "comprar a água" a um poço próximo, lançando, naquele, uma pequena mo-eda destinada ao dragão guardião da nascente. Pro-cede-se, a seguir, à lavagem do morto.

Na China do Sul, é lavado primeiro o rosto, depois o corpo, contrariamente ao que sucede em vári-as províncias do Norte. A seguir veste-se o cadáver com várias cabaias sem botões9. Estas numerosas cabaias são o enxoval que levará para o outro mundo. Dantes, a mortalha era diferente, bem como o catafalco. Porém, tudo se simplificou com o tempo.

Em cima: Celebrações do Ano Novo Lunar (estampa popular, Museu do Ermitage). Pátio interior de rica vivenda chinesa. Ao centro, o pavilhão principal onde se encontra o altar dos antepassados, a que o filho mais velho devia prestar culto no dia de Ano Novo.
Em baixo: Celebrações do Ano Novo Chinês (Museu do Ermitage). As crianças fazem estalar panchões enquanto, à direita, se presta culto e fazem oferendas aos antepassados.

Para não alongarmos este trabalho, referir-nos-emos, apenas, ao que se passa nos nossos dias, aliás já em vias de se perder.

O caixão é colocado no meio da sala princi-pal, que se reveste de panejamentos brancos, a cor lutuosa, que corresponde ao leste, o lugar da vida, de onde sopra a renovadora brisa Primaveril. To-dos os familiares, segundo a sua proximidade de pa-rentesco, bem estabelecida na China10, envergam, então, fatos simples, em ramé ou burel chinês, co-bertos de tecido grosso de canhâmo, bem' como barretinas de modelo antigo, no que respeita aos fi-lhos varões e grandes capuzes no caso das filhas. As noras colocam na cabeça grandes lenços alaranjados com decorações vermelhas que fazem parte do seu próprio enxoval de casamento.

Simples faixas brancas na cintura e na cabeça, é o traje lutuoso dos netos e parentes próximos. Al-guns ostentam uma pincelada vermelha aplicada no tecido para evidenciar parentesco mais próximo.

A cor branca lutuosa tem, na China, um signi-ficado simbólico: representa um estado de passa-gem, qualquer coisa de vazio, de provisório, que vai ser preenchido, contrariamente à cor negra que evo-ca uma perda definitiva, uma queda sem retomo no Não-Ser (Bonnard e Dru, 1986).

Mulheres de um lado e homens do outro, se-gundo uma ordem estabelecida, ajoelhados em estei-ras, os filhos e as noras devem bater 3 vezes com a cabeça no chão em profundo Kau tau, reverência que antes era devida ao próprio Imperador.

O caixão fica exposto na casa familiar ou num quarto existente para esse fim, pelo menos du-rante 3 dias.

Entretanto, chegam os parentes afastados, os amigos, os conhecidos, com ofertas de tecidos para cabaias, mantas, porcos assados, frutos e outros ali-mentos. Curvam-se por três vezes em reverência pe-rante o caixão, seguidos pelos familiares e ao som dos seus lamentos bem como dos das carpideiras profissionais, contratadas para a ocasião.

Os recém-vindos recebem um lenço, um doce e um envelope com lai-si, para afastar a má influên-cia que, porventura, o contacto com semelhante cena de dor lhes possa provocar. Aliás, o doce, por homofonia do seu nome, t'im, com continuidade, é um voto simbólico de longa vida.

Após o passamento, a família manda prepa-rar, em papel e bambu, a estela funerária, e também reproduzir os utensílios de que o falecido mais gos-tava, incluindo malas com roupas, acessórios, casas apalaçadas com mobiliário e criadagem, pontes de prata e de ouro, triciclos (ou, dantes, cadeirinhas) e, modernamente, automóveis, barcos e até um avião, para facilitar a sua travessia para o Além.

O primeiro sinal de luto que o mundo exterior tem de que faleceu alguém, é a colocação, à porta principal da casa familiar, de duas lanternas ou ba-lões azuis e brancos, em sinal de luto e de uma placa armada em bambu, em forma de montanha, com fai-xas brancas e azuis ganga.

Se o morto é um venerável ancião, pelo que o seu passamento é motivo de alegria e não de tristeza, os balões são pincelados de vermelho e a cobertura, mais ou menos rica, do caixão, é em cetim desta mesma cor, bordado com motivos emblemáticos de longa vida, como garças, pinheiros e grandes pêsse-gos, a par de emblemas de felicidade, tais como dra-gões e morcegos estilizados. No caso de se tratar de Famílias abastadas, esta cobertura é em forma de pagode, geralmente com 3 andares, reminiscência da tenda mortuária, que se armava, já, na recuada di-nastia Chau (II milénio a. C.) 11.

O caixão não sai nunca pela porta da casa, mas sim por uma janela ou porta lateral ou por uma escada de bambu exterior, no caso de a Família mo-rar num prédio de andares. Isto para não molestar os vizinhos e para que a alma do morto perca a noção da porta de entrada da sua residência, deixando a Família em paz.

Na rua, formam-se longas procissões. Adian-te, segue uma das figuras mais espectaculares de chi-chat (nome do artesanato de papel relacionado com os rituais funerários). É o Deus do Inferno que abre caminho e afugenta todos os elementos perturbadores da alma do falecido que possam surgir no trajecto. Atrás, vai o neto mais velho, levando ao ombro um bambu de folha fina (Kun lâm chôk), que se crê ter o poder de afastar as almas penadas, tal como os bambus velhos as atraem. Enquanto cami-nha, vai espalhando mãos-cheias de sapecas em pa-pel de cinco cores (rodelas de papel recortado nas 5 cores do arco-íris, correspondendo às 5 cores dos pontos cardeais, que na China incluem o centro).

Estas moedas são destinadas aos tão temidos kwai que, assim, não perturbarão o falecido na sua longa caminhada.

Os filhos costumam empunhar, também, du-rante o préstito fúnebre, uma haste fina de bambu, forrada de papel branco, enrolada e franjada, que representa o antigo bordão a que estes se apoiavam, durante os funerais paternos, para atestar a sua gran-de piedade filial, traduzida pelo longo jejum obriga-tório, durante a exposição do corpo do pai em câmara ardente, desde o dia do falecimento até ao dia do funeral, o que às vezes demorava várias semanas.

Atrás deste neto ou sobrinho neto, é transpor-tado por cules um longo pano branco ou azul ou vermelho, conforme a idade do falecido, onde o seu nome, títulos e biografia são sumarizados, em ins-crição de papel dourado. Logo atrás, vão os andores floridos, repletos de frutos e outros alimentos, dis-postos em pirâmide, além dum primeiro conjunto musical, cujos componentes envergam longas cabaias brancas e chapéus de palha de abas largas, nalguns casos decoradas com flores de papel.

Logo a seguir, um grupo de bonzos, de capas amarelas ou vermelhas e cabeça rapada (o que torna às vezes difícil distinguir-se se são sacerdotes se sa-cerdotisas), murmuram orações. Os sons de bátegas e címbalos aliam-se aos das suonas e flautas, em grande estridência, sem melodia aparente.

"As cinco relações entre as pessoas" — pintura alegórica do princípio da submissão doutrinado por Confúcio, que inclui a piedade filial. "Em que consiste a piedade filial"? perguntou um dia Mengzi. -- "Na não-resistência", respondeu o mestre.

A estela em papel onde a alma do falecido foi recolhida, e onde foram inscritos o seu nome e títulos honoríficos, segue numa cadeirinha verde ou azul, levada aos ombros de 4 homens, e prote gida pelo genro que empunha, para isso, um gran-de guarda-sol em papel oleado, vestígio dos anti-gos para-sóis de distinção. Esta estela é, depois, queimada, bem como todos os artefactos de chi-chat e é nessa altura que a alma ascende ao Além. A terceira das almas, que não acompanha o corpo, ficará, então, a residir na tabuleta de madeira, a leng kai, então já pronta, e que no regresso a casa irá ser colocada no altar doméstico.

Seguem, ainda, no préstito mais andores e padiolas, carregados de vitualhas, como porco assa-do, patos e galinhas, ovos de pata cozidos, carangue-jos12, bolos, laranjas e outros frutos. Logo atrás vêm mais músicos. E a seguir, dois grandes gongos, de timbre lúgubre e lutuoso, percutidos com intervalos certos. É sobretudo o soar destes gongos que indica, no meio da confusão das outras músicas, que se trata de um funeral13.

Uma inovação das últimas décadas consiste em encorporar-se no cortejo uma banda de música de estrutura europeia, a qual, quando sabe, toca a Marcha Fúnebre de Chopin.

Costuma figurar, ainda, uma outra cadeirinha, verde, com enfeites de cordão preto e folhas de pa-pel, que transporta o retrato do falecido. Só depois segue o ataúde. Coberto de ricas sedas, em forma de pára-sol, ou torre de pagode, com um, dois, três e mais andares. Conforme a categoria que a família pretende, ou possa, conceder ao defunto, é o caixão transportado aos ombros de 20, 40 e às vezes 120 homens, todos envergando calças compridas e ca-baias curtas, geralmente azuis, e grandes chapéus de palha decorados com flores de papel. Imediatamente a seguir, vai o primogénito, o novo chefe da família, amparado por dois servos, chorando, com a mucosa nasal caindo até ao chão.

Em certos casos, precedendo o caixão, vem a família do defunto, vestida de luto rigoroso, resguar-dada dos olhares da multidão dentro de quatro pai-néis de pano branco, suportados por altas varas de bambu. Noutros casos, a família caminha atrás do primogénito, em fila indiana e obedecendo a rigoro-sa precedência hierárquica: primeiro os outros fi-lhos, segundo as idades, depois os irmãos, os sobri-nhos, a viúva, as filhas, os netos, e finalmente as esposas destes. Juntamente com a família, vão ainda as carpideiras profissionais. Todos estes devem cho-rar e lamentar-se ao longo do caminho e seguir am-parados por criados e amigos ou pessoas contratadas para a ocasião.

Os amigos do morto seguem no fim do corte-jo, aos dois e três, sem que a sua posição obedeça a qualquer protocolo.

Chegando o caixão ao cemitério, ou ao pavi-lhão dos ofícios fúnebres, (onde ia ser inumado, outrora, numa colina escolhida de acordo com o seu fong soi), queimam-se pivetes e papéis dourados, que representam simbolicamente dinheiro e vales no Reino do Além, mil vezes mais do que o seu valor terreno. Queimam-se, ainda, objectos de chi-chat, representando as preferências do falecido, assim como, simbolicamente, alguns dos presentes dos amigos. Procede-se, então, ao enterramento, ou fica o corpo à espera de transporte para o local definitivo de enterramento noutra região do país, ou aguardan-do o "dictum" do astrólogo.

No regresso a casa, é o filho mais velho quem traz a tabuleta ancestral de seu pai, em madeira, ta-buleta que se destina a ser colocada no altar familiar. A seu lado vem o genro do falecido que no cortejo ia de chapéu-de-sol aberto, a proteger a tabuleta do so-gro. Desta vez, vem igualmente de chapéu-de-sol aberto, mas para proteger, reverentemente, o novo chefe de Família.

Com este cortejo findam as cerimónias do fu-neral. Contudo, as cerimónias destinadas ao encorajamento da Alma a renascer no Além, prosse-guem, de 7 em 7 dias, por 3 vezes, continuando por outras quatro datas em que os bonzos fazem novas rezas na residência do falecido, acompanhadas de música e de queima de objectos de papel. Depois do 21.ō dia, coloca-se então uma pedra sobre a campa, com a identidade do falecido, ou arranja-se o túmulo em semi-círculo, à maneira chinesa.

Chegado que seja o 49.ō dia depois da morte (repare-se que todos estes números são múltiplos de 7), o filho mais velho queima pivetes e, perante toda a família ajoelhada e a bater cabeça, coloca a tabule-ta funerária do seu falecido pai na câmara ancestral ou no altar familiar.

Nesse dia, parentes e amigos do defunto ofere-cem, aos seus filhos, bolos simbólicos de longa vida.

O luto, na China, durava, dantes, por morte de pai, três anos, pois se considerava que durante igual período tinham andado os filhos mais ao colo dos pais do que por si mesmos.

Em sinal de reverência, também durante esse período nada se deve alterar da ordem que o pai, em vida, conservou na casa.

Estes três anos, segundo alguns sinólogos, correspondem ao antigo ritual da passagem a que os filhos mais velhos eram obrigados, vivendo em ten- das e em rigorosa abstinência, antes de assumirem o seu novo papel na chefia da Família.

Igualmente, no Além, o falecido, nesse mes-mo período, é sujeito, também, ao seu retiro de pas-sagem, que o transforma em Antepassado ou san, venerável no altar da família como espírito tutelar.

Embora se verifique progressiva tendência para se apagar este uso na sociedade moderna, a verdade é que ainda se encontram nas salas das casas de muitas famílias chinesas tabuletas destas, que os próprios emigrados levam consigo quando se deslocam.

No Ano Novo e nos dias dos aniversários da morte de um dos Antepassados, acendem-se velas, queima-se incenso e chamavam-se, dantes, os bonzos para rezar preces, ou pedia-se-lhes que o fi-zessem nos templos, convidando o defunto, (ora vi-vendo no Além onde renasceu), e também os próxi-mos antepassados da família, para virem reunir-se com ela e participarem na celebração festiva. Na mesa do jantar era colocada uma tijela de arroz e os pauzinhos destinados aos que haviam partido, além de outros destinados a cada um dos membros ausen-tes da Família.

É que Confúcio dissera: "trata o morto como tratas o vivo". E os chineses prolongavam os seus afectos e as suas atenções, dirigindo-se-lhes através dos pedaços de madeira onde haviam sido registados os seus nomes.

Este costume explica, em parte, as raízes pa-triarcais da sociedade chinesa. É aos varões que cumpre assegurar a sobrevivência do nome e do an-tigo clã original.

Para que a cerimónia de veneração seja efi-caz, deve ser prestada pelo filho ou neto mais velho, e era por isso que, sempre que uma família chinesa não tivesse um filho varão, costumava adoptar um, se possível parente próximo, para que pudessem dar continuidade aos seus membros no mundo dos san.

AS TABULETAS ANCESTRAIS

Admite-se que o uso das tabuletas ancestrais date, pelo menos, da dinastia Chau (1050 - 249 a. C.).

Para que um espírito passe a habitar estas tão simples moradas de madeira, não é suficiente gravar nelas O respectivo nome. O ritual para esta cerimónia foi descrito no livro Tso-chuan, e consiste em exorcizar o espírito do falecido e a inscre-ver na tabuleta, além do seu nome, o ideograma chu( 殂 ).

Este ideograma que significa dono ou senhor (em tradução livre), deve ser gravado por uma pes-soa muito próxima do defunto, e de impecável virtu-de. No momento de o inscrever, o celebrante deve respirar sobre a ponta do pincel, antes de aplicar o primeiro traço. No instante exacto em que aplica o pincel sobre a madeira, deve conter a respiração, e concentrar-se na imagem mental do defunto, como se a alma daquele se concentrasse, realmente, nesse ponto da madeira.

Os chineses consideram o ponto cardeal leste como a direcção relacionada com a vida, uma vez que é o ponto onde o Sol renasce cada dia. Ao ponto leste corresponde o elemento madeira, porque é do leste que surge a brisa primaveril que faz renascer as plantas mortas ou sofredoras durante o inverno.

Daí, ao que parece, a escolha da madeira para as tabuletas ancestrais, segundo alguns especialistas chineses.

Esta veneração dos ancestrais, embora Confúcio fosse um forte opositor das práticas da idolatria, representava o amor filial, um dos funda-mentos da sua doutrina, aplicada à sociedade patriar-cal do seu tempo.

Aliás, o valor religioso, que no Ocidente é costume atribuir-se a esta prática, não é tão real como pode parecer a um analista pouco conhecedor da filosofia e da religião chinesas. Esta veneração era mais funcional do que religiosa, uma vez que o seu principal objectivo era manter a ligação da Fa-mília com os Antepassados que haviam sofrido o último rito de passagem, para que estes protegessem o agregado familiar com o seu prestígio de espíritos.

Nos altares domésticos, a colocação das estelas em madeira dos ascendentes agnáticos e das suas res-pectivas mulheres, não se faz ao acaso. São colocadas em filas correspondentes aos elementos falecidos de cada geração. Cada nova tabuleta vai ocupar, porém, a fila dos avós e nunca a dos seus pais.

É a isto que se chama a ordem chau-mou( 昭穆 ), palavras que significam, respectivamente ilustres e respeitáveis. Em esquema, as posições re-lativas das estelas ou tabuletas ancestrais, num altar doméstico, é a seguinte:


     1. º ANCESTRAL E TODOS OS
            ASCENDENTES
       DA 5. ª GERAÇÃO
             五帝
TRISAVÔ高祖        BISAVÔ 曾祖
AVÔ    祖父        PAI      父

           EGO我
ZHAO昭               MU 穆 
(Chau)              (Mou)

ORDEM CHAU/MOU

o ego irá ocupar, por seu turno, a fila chau e o seu filho primogénito, mais tarde, a fila mou, e assim sucessivamente14.

Esta colocação ritual parece apontar para uma linhagem patrilinear, dividida em duas secções. Há as-sim, uma linhagem de 5 elementos, do trisavô ao filho (ego), com o qual termina cada ciclo linear. Granet, Kroeber, Morgan, Feng e L. Strauss foram autores que se ocuparam, em pormenor, do estudo muito comple-xo, da estrutura de parentesco e dos graus de luto entre os chineses, bem como da interpretação desta ordem chau/mou.

Para L. Strauss (1976) o filho do filho do filho do filho, reproduz a mesma metade patrilinear do que o pai do pai do pai do pai, o que corresponde, afinal às 5 gerações representadas no quadro anterior.

Nalgumas famílias, as tabuletas deixaram de ser individuais, passando a colectividades, devido às transformações culturais registadas na China, a partir do fim do século XIX, o que teve por fim facilitar o culto, quando a Família que se mantivera ligada duran-te várias gerações foi obrigada a separar-se.

O"CHENG MENG" E O" O "APROVISIONAMENTO DO PRINCÍPIO MASCULINO"

Os rituais de veneração dos antepassados em datas bem determinadas pelo Calendário luni-solar, para além do culto doméstico indispensável em todas as festividades processam-se na 3. ª e na 4. ª Luas. São conhecidas, respectivamente, por Cheng Meng, ou Pura Claridade, no dia 4 ou 5 da 3. ª Lua, e Aprovisionamento do Princípio Masculino no dia 9 da 9. ª Lua. A primeira destas datas é, sem dúvida, a mais impor-tante, e aquela a que, embora brevemente, passaremos a referir-nos.

O Cheng Meng (淸明), ou Festividade da Pura Claridade, em tradução literal, é um dia que a tradição consagrou à veneração dos Antepassados e, daí, à visi-ta obrigatória aos cemitérios, com todo um cortejo de cerimónias, que vêm dos antigos tempos14. Cada esta-ção do ano comporta seis períodos distintos. O Cheng Meng recai, precisamente, no 5. º período da Primave-ra, recaindo no dia 4 ou 5 de Abril do Calendário Gregoriano (dia 4 ou 5 da 3. ª Lua do Calendário luni-solar).

Antes da dinastia T'ang (618 - 907 d. C. ), os chineses visitavam os sepulcros dos seus Antepassa-dos, frequentemente nas colinas, para lhes oferecerem incenso, dinheiro, vestuário e papel, além de alimentos cozinhados, no dia conhecido por Dia da Comida Fria, isto é, cerca de 48 horas antes do actual Cheng Meng e 105 dias depois do solstício de Inverno do ano anterior. Durante este dia, só se podiam ingerir alimen-tos frios, pois era defeso acender-se o lume.

Este costume vinha da alta Antiguidade e pare-ce relacionar-se com a velha Cosmogonia, segundo a qual, nos fins da Primavera, surgiam no Céu duas es-trelas correspondentes aos princípios elementares ma-deira e fogo. Temendo-se que o princípio fogo dessaestrela se tomasse mais "forte" e queimasse toda a madeira, provocando o desiquilíbrio cósmico, adop-tou-se a prática de não se acender fogo na terra. O primeiro fogo era aceso, ritualmente, no dia de Cheng Meng. Daí o nome de Pura Claridade dado a este dia.

Nalguns pontos da China, foi uso, durante mui-to tempo, lançarem-se durante o Cheng Meng, cascas de ovos cozidos sobre as campas, comendo-se, então, os ovos, com igual sentido de renovação. Estes ovos eram, dantes, decorados com pinturas feitas com sucos vegetais de Rubia e Garanza que ficavam manchadas nas claras, endurecidas por anterior cozedura.

Daí o aparecimento, nos mercados, de cascas de ovos pintadas, que passaram a constituir, já na Chi-na Maoísta, elementos de artesanato, de baixo preço, para os turistas. O ovo significa simbolicarnente que o velho abriu o caminho ao novo, isto é a ideia de reno-vação.

Em 1935, era ainda muito popular na China a visita aos cemitérios, costume ao qual o Governo repu-blicano deu o nome de varrer os túmulos, para o paralelizar com o Dia de Finados do Ocidente, embora este viesse já da dinastia T'ang15.

Na dinastia T'ang, no dia de Cheng Meng ou dia do reacender do fogo, os imperadores ofereciam tochas de ulmeiro, ou de salgueiro, aos seus funcionários favoritos, para acenderem, de novo, o fogo nas suas casas.

Na dinastia Sung, estas tochas vegetais foram substituídas por tochas de sebo. Nesta data, com a qual, no Sul da China, se relacionam várias lendas, todos, desde o Imperador aos mais modestos campo-neses, apostavam nas lutas de galos. Era um dia de liberdade relativa também para as mulheres, que podi-am sair da sua reclusão para venerarem os seus Ante-passados.

Entre estas práticas, podem estabelecer-se vári-as relações importantes: por um lado, o ritual do fogo e o vestígio do seu culto, ao aproximar-se o solstício de Verão; o culto da terra na altura da maturação das sementes; e por outro, o culto das localidades e das suas divindades tutelares, bem como dos Antepassa-dos mortos e inumados na terra, práticas, aliás, co-muns a todos os teísmos agrários.

Curioso é de notar, também, a relação do galo e dos seus combatentes, com a chegada do Verão e com o simbolismo que o galo teve no Ocidente, na Roma antiga e nos cultos paleo-cristãos relacionados com a ressurreição e com a derrota da Morte.

O Cheng Meng anuncia igualmente o início do Verão, o que vem em apoio da nossa hipótese de que ele seja o vestígio de rituais muito antigos, relaciona-dos com o culto do fogo e com a celebração do solstício de Verão, tal como o é entre nós o costume lúdico de saltar fogueiras pelos Santos Populares. Um vestígio também do culto do Sol que amadurece as colheitas e do culto da terra onde a semente, que man-tém a vida, germina. O Sol, fonte de vida, aparece-nos, assim, relacionado com o culto dos mortos, tal como nos cultos paleo-cristãos do Ocidente, subjacente à ideia de imortalidade, de contínuo renovar da luz e das trevas.

A segunda das festividades em que se vene-ram os antepassados é, como se disse, conhecida por Aprovisionamento do Princípio Positivo ou Masculino, o qual, dentro do conceito de Dualidade Cósmica, corresponde também ao Sol, e parece ser o que resta de um velho culto relacionado com o final do ano agrícola e com o anúncio do Inverno, tal como o Cheng Meng parece corresponder ao anúncio de Verão.

Nesta data, era costume lançarem-se no ar pa-pagaios de seda e de papel, à maneira de bodes expiatórios. Admite-se que o principal objectivo desta festividade fosse reter, pela via dos rituais, a energia solar declinante, para se poder atravessar a estação morta e renovar-se a Natureza, na Primavera seguinte, altura marcada pela festividade do Ano Novo luni--solar.

Estas duas festividades em que se cultivam os Antepassados corresponde, pois, como se pode facil-mente deduzir, à alternância anual e cíclica da vida e da morte da Natureza.

Estas práticas antigas foram caindo gradual-mente em desuso, logrando, no entanto, maior sobrevi-vência nas províncias do Sul (Cantão e Fuquien), de-pois da implantação da República. É em Macau e nou-tros territórios fora da China, onde as comunidades chinesas mantêm mais fortes os seus elos de etnicidade, que as práticas dos velhos rituais continua-ram a observar-se, pelo menos, até aos anos 79/80.

A veneração dos Antepassados deve ser feita pelos filhos ou netos varões, o que está de acordo com o carácter patriarcal da sociedade chinesa. Os varões seguem a linhagem familiar e a eles cabe a responsabi-lidade de perdurar o clã.

Quando estas cerimónias se não realizam, (tan-to aquelas a que deve proceder-se durante os funerais, como as que são dedicadas, durante o ano, aos Ante-passados de cada Família), os espíritos que vivem no Além, uma vez abandonados pelos seus familiares, perdem a paz. Deixam de ter vestuário, dinheiro e ali-mentos, que ninguém lhes oferece transformados no fumo dos papéis votivos incinerados, que acompanha o incenso queimado até ao seu destino, e tomam-se mendigos.

Estes são os kwai, tão temidos em Macau, os espíritos errantes ou fantasmas vingativos, que regres-sam ao mundo dos vivos, sedentos de vingança pelos seus sofrimentos.

É por isso que a maioria dos espíritos erradios é de mulheres solteiras, ou casadas em momento de par-to. Uma mulher que morra solteira, não pode ser inclu-ída na tabuleta da sua própria família, ao passo que a mulher casada pode ser venerada pelos filhos das concubinas do seu marido, ou pelos sobrinhos deste (filhos do irmão), que também podem prestar-lhe culto no Além. Em casos extremos (favoráveis principal-mente às mulheres), para que possam ser veneradas pela família dos maridos, uma vez que são excluídas das suas próprias, devido ao carácter patriarcal e patrilocal próprio da família chinesa, recorre-se a casa-mentos póstumos. Pode, assim, casar-se uma rapariga falecida, registada na respectiva sua tabuleta, com um homem vivo ou com um homem falecido, também solteiro.

Se há quem atribua a estas práticas um carácter supersticioso, a verdade é que elas são o testemunho iniludível da crença na Imortalidade e na vida no Além.

Aliás, todas as religiões devem o fervor dos seus adeptos às respostas que procuram dar-lhes àcerca da morte como um ndo-fim. A morte é, pois, a nosso ver, o mais poderoso motor de todos os rituais.

CONCLUSÃO

O ritual da morte, na China, pode analisar-se no plano horizontal e no plano vertical.

No plano horizontal, compreende-se que a an-tiga família chinesa, vivendo em comunidade (famí-lia extensa) abordasse a morte de um parente com rituais semelhantes aos que cumpriam quando ele era vivo. É que a partida para o Além não é interpretada como um corte definitivo com o mundo dos vivos.

E é aí que a relação vertical se manifesta, sob a forma de conexão da Família com o espírito dos Ante-passados, através do seu culto, hiato religioso que o Tauísmo preencheu.

A família piedosa repetia a sua ligação com a origem mística, o Tau, pelo culto dos seus Antepassa-dos que haviam logrado o seu retomo. O Tau é um Não-Ser, não vazio mas pleno de energia genética.

Lao Tze deixou bem expressa esta ideia no Tau Te King:

"Não Ser e Ser, saindo de uma mesma união,

Só se diferenciam pelos seus nomes"

GLOSSÁRIO

LÍNGUA OFICIAL CANTONENSE

LÍNGUA

OFICIAL   CANTONENSE

lang=EN-US style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Yi 義 ">

Yi

lang=EN-US>      

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="I ">

I    

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

- Pertinência

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

Pin Yin 鄙意

lang=EN-US style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Yi I ">

Yi I 

- Vontade, desejo, alma responsável,

por extensãoo Eu.

x:str="Gui 鬼 ">

Gui

lang=EN-US>     

Kwâi

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

- Alma sensitiva (depois da morte), dos

mortos; o que regressa;

 

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

 

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

espectro; espírito insatisfeito;

influência oculta nefasta; por extensão: mau espírito; dinamismo.

lang=EN-US style='font-size:12.0pt'>

x:str="Po 魄 ">

Po

lang=EN-US>      

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Pak ">

Pak  

- Almas

sensitivas;terrestres;manifestação física de alma

sensitiva;aparência,C11forma.

x:str="Hun 魂 ">

Hun

lang=EN-US>     

x:str="Wan ">

Wan  

- Almas espirituais celestes; princípio

vital; pensamento; faculdade.

x:str="Tao 道 ">

Tao

lang=EN-US>     

x:str="Tou ">

Tou  

- Via; caminho; absoluto.

lang=EN-US style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Ji (Ki) 記 ">

Ji (Ki)

lang=EN-US> 

lang=EN-US style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Kei ">

Kei  

- Lembrar-se; lembrança; inscrever

livro; registo (livro clássico chinês).

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Shen 神 ">

Shen

lang=EN-US>   

style="mso-spacerun: yes"> 

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="San ">

San  

- Espírito de origem transcendente ou

seres humanos divinisados.

x:str="Yang 陽 ">

Yang

lang=EN-US>    

lang=EN-US style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Yang ">

Yang 

- Princípio masculino; o Sol; a

claridade (...); o calor.

x:str="Yin 陰 ">

Yin

lang=EN-US>     

x:str="Yâm ">

Yâm

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

- Princípio feminino; a Lua; a sombra;

o frio (...).

x:str="Zong 宗 ">

Zong

lang=EN-US>    

lang=EN-US style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Song ">

Song 

- Templo dos Antepassados; linhagem;

Antepassados.

x:str="Tang 堂 ">

Tang

lang=EN-US>    

lang=EN-US style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Tong ">

Tong 

- Sala principal; pátio do tribunal dos

mandarins; palácio; grande construção; templo.

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Po 白 ">

Po

lang=EN-US>      

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Pak ">

Pak  

- Branco; claro.

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Li 禮 ">

Li

lang=EN-US>      

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Li ">

Li   

- Rito; cerimónias; civilidade;

culturas; presente (por delicadeza).

x:str="Hun 雲(云) ">

Hun

lang=EN-US>()

style="mso-spacerun: yes"> 

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Wan ">

Wan  

- Nuvem; dizer; declarar; qualquer coisa

que se sabe.

x:str="Shi 屍 ">

Shi

lang=EN-US>     

x:str="Si ">

Si   

- Nome póstumo dado a um defunto.

lang=EN-US style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

x:str="Shi 仙 ">

Shi

lang=EN-US>     

x:str="Si ">

Si   

- Cadáver; representante do defunto nas

cerimónias fúnebres.

x:str="Sin 仙 ">

Sin

lang=EN-US>     

x:str="Sin ">

Sin  

x:str="- Génio; imortal tauista. ">

- Génio; imortal tauista.

style="mso-spacerun:

yes">                                                                                                                                                   

 

BIBLIOGRAFIA

Biot, E. - Tcheou-Li ou Ritos dos Tcheou. tradução de E. Biot, Paris, 1851.

Bonnard, M. e Dru, Elizabeth Le. Les Rictuels de Mort dans la Chine Ancienne, Dinastie des Tcheu 700 - 200 av. J. C., Dervy Livres, Paris, 1986.

Couvreur, S. I Li- Cerimonial. Tradução de S. Imprimerie de la Mission Catholique de Ho-kien fou, 1851.

Li Ki, Tradução de S. Couvreur, Imprimerie de la Mission Catholique de Ho-kien fou, 1913.

Fong Yeon-Ian. Précis d' histoire de laPhilosophie chinoise. Payot, 1952.

Gennep, M. Van. Les Rites de passage. Paris, 1909.

Gernet, Jacques. Chine et Christianisme, action et reaction. Gallimard, Paris, 1982.

Gernet, Jacques- (la) vie quotidienne en Chine à la vielle de l'invasion mongole 1250 - 1276, Hachette, Paris, 1959, 2. ḁ ed.,1978.

Gomes, Luís Gonzaga. Festividades chinesas. Ed. "Notí-cias de Macau".

Granet, Marcel. La pensée chinoise. Ed. Albin Michel, Paris, 1970.

La civilization chinoise. Ed. Albin Michel, Paris, 1979.

Groot, J. J. M. de. The religious system of China. Ed. E. J. Brill, Leyden, 1892 -1910.

Hou Ching Lang. Monnaies d'offrandes et la notion de trésorerie dans la religion chinoise, vol. I, Mem. de l'Institut des Hautes Études Chinoises, Collège de France, 1975.

Laurent, Davi. La Pratique de la Psychologie en Médecine Traditionnelle Chinoise. Guy Trédaniel. Éd. de la Maisnie, 1978.

Maspero, Henri. Le Taoisme et les religions chinoises. Ed. Gallimard, Paris, 1971.

Mauss, Marcel. Oeuvres, 1. Les fonctions sociales[...], les Éd. de Minuit, Paris, 1968.

Schipper, Christoffer. Le corps taoiste. L'éspace intérieur 25. Éd. Feyard, Paris, 1982.

NOTAS

Yang-Yin -princípio positivo/negativo, de cujo equilíbrio resulta a harmonia universal. O Yang (yeong emcantonense) corresponde ao princípio positivo masculino, à luz, ao calor, ao Sol e ao Imperador. O Yin (yam em cantonense) corrresponde ao princípio negativo, ou feminino, à sombra, à frescura, à Lua e à Imperatriz.

2 M. Van Gennep, Les Rites de Passage, Paris, 1909. Tam-bém se traduz por princípio vital, pensamento, inteligência e faculdades mentais.

3 Um chinês recebe, ao longo da vida, vários nomes que sublinham os ritos de passagem. O primeiro, o nome de criança, é o que consta dos balões funerários, e o último, o que, dantes, era inscrito na estela funerária.

4 O Livro dos Ritos, que foi compilado por Confúcio e pelos seus discípulos, é considerado um livro de registo dos preceitos de etiqueta. O sinólogo Rev. P.e Dr. Joaquim Guerra considera o Livro dos Ritos um repositório de regras de conduta, e de relações inter-individuais.

Ideias que só com Platão surgiram no Ocidente, em relação ao Universo.

6 O valor desta máxima reside na estrutura gramatical da língua chinesa, na qual a mesma palavra pode ter o valor de substantivo, ou de verbo, consoante o seu lugar na frase.

7 O Ritual dos Chau (1050? a. C. - 771 a. C.), que alguns sinólogos consideram apócrifo, regista cerimónias, pelo menos, anteriores a V a. C..

8 Sete é, aliás, o número relacionado com a morte entre os chineses, que preparam 7 pratos para o banquete ritual dos funerais, e crêem que a Alma retoma às casas familiares, sete vezes com intervalos de sete dias, antes de se fixar no Além.

9 Às vezes, as roupas mortuárias eram presas por meio de peças de jade ligadas por cordões de seda, nunca se usando botões.

10 Estas relações foram, aliás, estabelecidas em função do tempo de luto, perfeitamente sistematizado no Livro dos Ritos (segunda metade do 1. ō milénio a. C.).

11 A cobertura em forma de pagode é um vestígio das antigas coberturas duplas em forma de tenda, com que se armavam os catafalcos dos nobres na dinastia Chau (700 - 200 a. C.).

12 O caranguejo é analogado, na China do Sul, com a alma de um defunto.

13 Cf. Levy Strauss (1976), op. cit..

14 Sendo os cemitérios, nos antigos tempos, nas colinas, nos lugares de bomfong soi, (風水) esta celebração é o chama-do pai san (拜山), veneração dos Antepassados (nas mon-tanhas) às vezes erradamente interpretada no Ocidente por veneração dos espíritos.

15 Dantes, as flores eram exclusivamente oferecidas às divinda-des e ao Imperador como Filho do Céu, daí, só muito tardia-mente terem sido incluídas no ofertório ritual do Cheng Meng.

* Doutorada pela F. C. S. H. da Universidade Nova de Lisboa; Professora do Instituto de Ciências Sociais e Políticas (De-partamento de Antropologia). Membro de várias instituições internacionais, v. g. a Intemational Association of Antropology.

desde a p. 47
até a p.