Artes

CARLOS MARREIROS, O MEU AMIGO

Jiang Defu*

Desta vez, foi na minha cidade, Xangai, que me encontrei com Carlos Matreiros.

Cumprimen-tou-me, muito ama-velmente, dizendo de imediato: "É fantásti-ca a sua caligrafia. Até o seu desenho parece caligrafia". Ele referia-se à homena-gem que eu lhe dediquei em Macau, no seu bonito álbum chinês, cheio de ou-tras homenagens dedicadas pelos amigos seus de diversos paí-ses, portanto escritas a caneta de tinta permanente, de maneira horizontal, e quase todas em inglês, francês, português ou espanhol. E a minha, com simples pinceladas, era um pequeno qua-dro chinês. Para preencher o espaço que achava enor-me, caligrafei alguns caracteres ao estilo Kuancao. Es-tava satisfeito com esta obra, pois julgo estar dentro das regras. Os pintores chineses preferem pintar de acordo com as regras "entre as semelhanças e as dife-renças", a que a minha obra também se pren-deu. Felizmente, estes pormenores não esca-paramaoolhare à sen-sibilidadedeum apre-ciador estrangeiro.

"Mil Montanhas". Acrílico sobre madeira, Ø 120cm, 1993.

Aos olhos do europeu, a escrita ca-ligráfica da China é tão imperceptível como a escrita dos Deuses, quer dizer, ela tem quatro moda-lidades primaciais que são Zeng, Zhuan, Xing, Cao e uma multiplicidade de estilos. Eis uma arte específica da China só acessível para aqueles que tenham mergulhado muito nos mares des-ta cultura milenar. No entanto, foi com grande surpre-sa que verifiquei que as obras de Carlos Marreiros — bem características e vanguardistas, exibidas no Palá-cio das Belas Artes de Xangai — estavam cobertas de caracteres chineses. Estes eram multicolores e com uma interligação orgânica muito espontânea que pro-vocaram em mim emoções muito especiais e um im-pacto na minha sensibilidade. Isto levou-me a uma viagem de meditação profunda. No debate sobre as obras de Carlos Marreiros, muitos colegas meus puse-ram-lhe a seguinte pergunta: "Por que é que o seu exercício letrista na pintura não é sin-táctico?" "Por-que ele só tem valor icónico." — respondeu Carlos Marreiros. "Então você entende estes caracteres chine-ses?" — insistiu outro. "Não entendo. Trata-se de um mero aproveitamento da força, ritmo e elegância que eles podem significar" — concluiu.

Não obstante, Carlos Marreiros não se limita a copiar estes caracteres na sua superficialidade, mas sim, refaz fortemente uma linguagem pictórica, atra-vés da ordenação harmónica de traços e formas que fazem lembrar as rochas da montanha e a ressaca do mar. Não exagero se disser que a sua caligrafia no estilo Xincao consegue sugestionar a beleza das he-ras trepando paredes rugosas.

A sua linguagem pictórica, resultante do encon-tro de valores de duas culturas, oriental e ocidental, não encontrou barreiras de ordem geográfica. Não posso deixar de lembrar aqui, a minha visita a Macau em 1991 — integrado numa exposição, juntamente com Li Re e Song Mang, a convite do Instituto Cultu-ral de Macau. A natural rotina de cortesia, levou-nos a visitar Carlos Marreiros, então Presidente do ICM. Conversámos com a ajuda de dois intérpretes, um de cantonês e outro de português. Foi neste momento que sentimos a grande distância que separa as duas cultu-ras. Porém, o que nos consolou foi o facto de termos falado uma linguagem pictórica que, sendo universal, apagou as distâncias e fez-nos amigos.

Em cima: "Urbano I, Macau", Da série "Leques". Acrílico sobre madeira, Ø 120cm, 1993.
Á esquerda: "A Chegada (dos Portugueses), Da série "Leques". Acrílico sobre madeira, Ø 120cm, 1993.

Poder-se-á dizer que antes da era dos desco-brimentos, já diversas nações tinham começado a se procurarem, umas às outras, tal era a ânsia de trans-por os limites, como os contemporâneos procuram hoje descobrir a existência dos extraterrestres. Devi-do a esta procura nasceu Colombo, Femão de Maga-lhães e Zheng Ho, pionei-ros da criação da civilização moderna. No nosso tempo, esta procura ainda não pa-rou, antes pelo contrário, a sua continuação tem um ritmo mais acelerado e um nível cultural mais elevado. Consciente disso, Carlos Marreiros afirmou: "Para o desenvolvimento da cul-tura, o intercâmbio é o seu veículo privilegiado. Ir contra este intercâmbio é o mesmo que ir contra a cultura." Como um peregrino do Ocidente, ele bebe fundo as essências da cultura oriental, não só nas suas semelhanças, mas também nas suas diferenças. Isto também aconteceu na história com Marco Polo e Mateus Ricci. "Eles contribuíram muito para a China, ou melhor, para a cultura universal." — es-creveu o mestre-escritor Lu Xun. A fusão de cultu-ras distintas, de uma forma complementar, por ve-zes, é um acto de criação: a vida e a história, revela-ram que, no processo de estabelecimento de uma concepção plástica vanguardista da China, tinha havido uma contribuição de fundo do "vento da ocidentalização". Foi precisamente este vento que nos trouxe os artistas Xun Pei Hong, Ling Fong Mia e Liu Hai Xu, este último ainda vivo, heróis da nos-sa cultura nacional. Re-corde-se que a implantação da concepção plástica ocidental na China percorreu um caminho difí-cil, ao longo de séculos. É disso exemplo o caso do pintor J. Castiglione, que era visto com des-prezo pelos mandarins do palácio e, ao mesmo tem-po, venerado por Kang Iu-vai, vanguarda da revolu-ção democrática da China. Fosse como fosse, sem a influência ocidental, não seria possível imaginar até onde aguentaria a civilização milenar da China. Por outro lado, sabemos como a nossa cultura exerce influência na cultura ocidental e neste âmbito é exemplar o caso de Carlos Marreiros.

É certo que Carlos Marreiros incorpora o seu sentir oriental nas suas obras, por exemplo, os qua-dros Brincos da Imperatriz, Brincos de Pui I, Rio Amarelo, Xian e vários San Sui, através das quais ele expressa o seu amor profundo à terra onde nasceu. Efectivamente, ele lança as raízes do seu neo-orientalismo na seara ocidental mas, simultaneamente, engloba os valo-res filosóficos da contemporaneidade que presta muita importância ao sub-consciente e ao espontaneísmo pri-mitivo. A partir destes horizontes, Carlos Marreiros afronta-nos com as manchas do espontaneísmo e o correr do subconsciente interpre-tando, a um ritmo automatista, o percurso que vem do interior para o exterior, em busca de uma lingua-gem na qual se desnuda a natural sensualidade. Por outro lado ele faz exercícios sobre a tela, com a sua filha pequena, a fim de experimentar uma instantaneidade pueril que não é o mesmo que apriorismo. "A pintura tem a sua vida própria que tento gerir" disse ele. O que disse é também o tema mais discutido em termos da filosofia das artes. Em-bora Pollock tenha afirmado com razão que a ques-tão essencial da pintura moderna é delimitar as fron-teiras, na prática, qualquer modalidade de arte vive do sentimento que a sua terra lhe confere e da reno-vação do legado tradicional. Neste contexto, Carlos Marreiros encarna a sua concepção com figurações sugestivas e exuberantes, sem repetir exaustivamen-te a filosofia, modernista. Com o aproveitamento gradual e efeitos especiais, causados pela técnica e pelos materiais orientais, como papel de arroz, pin-cel chinês e tinta-da-china, Carlos Marreiros trans-mite uma emoção de identidade muito individual. Um dos seus San Sui, coleccionado por Mio Pang Fei, é o testemunho disso.

À direita: "O Leque do Velho", Da série "Leques". Acrílico sobre madeira, Ø 120cm, 1993.

Recentemente, o tema de conversa do dia-a--dia, entre os meus colegas, passou a ser sobre a situa-ção em que se encontra a pintura contemporânea do Ocidente. É preocupante, quer no Ocidente quer na China, a perspectiva que o modernismo trilhou, duran-te cem anos, com tantas glórias, e que agora se estagna em decadência. Com perplexidade, muitas pessoas põem em causa o valor da pintura contemporânea, de acordo com uma simples conclusão: "É lixo a pintura moderna." Claro que, a pintura, seja qual for a sua modalidade, se exceder os seus próprios valores, per-derá na realidade a vida. Para desafiar esta realidade, Car- los Marreiros proclamou: "Vamos procurar que o mundo veja o nosso neo-orientalismo". Eis o desejo comum de muitos pintores da Ásia. Carlos Marreiros, como desenhador das artes plásticas do Ocidente, dis-se que mesmo em Paris, cidade com bom ambiente artístico, já não é tão fácil encontrar obras de qualida-de. Nas galerias só se vêem casualmente a qualidade e o talento, em quantidade ao contrário da mediocridade comercial e da repetição que ocupam a maioria das obras. Para tal, há um ditado chinês: "Misturam-se pérolas verdadeiras com olhos de peixe". Em compa-ração com o Ocidente, a Ásia está ainda na fase pré-modemista, estando o seu espírito de criação, às vezes, ainda preso pela inércia tradicionalista. No entanto, com o caminho já percorrido e a madrugada premonitória a chegar à civilização moderna do Orien-te, a pouco e pouco se vislumbram novos horizontes. A condição desta melhoria consiste em romper com a mentalidade conservadora e monodireccional, marcan-do, provavelmente, o nosso tempo com uma política aberta a todas as expressões. Neste contexto, Carlos Marreiros, apegado a esta ideia-força e indiferente à tibieza dos outros, já começou a lutar por essa causa. A pintura do próximo século deve destituir os seus processos seguidistas, quer do Oriente quer do Oci-dente, e sair definitivamente da sua estaticidade.

Na sequência do grande sucesso obtido pela ex-posição de pintura de Carlos Marreiros e Mio Pang Fei realizada no Palácio de Belas Artes de Xangai, a Uni-versidade de Xangai nomeou-os Professores Convida-dos da sua Academia Nacional de Belas Artes. Na cerimónia solene de doutoramento, Carlos Marreiros proferiu uma palestra sob o título "200 anos da Pintura de Macau", que nos fez conhecer um pouco sobre a cultura frutuosa de Macau, até então ignorada por nós. O que nos surpreendeu foi que Macau tem produzido uma série de pintores espantosos. George Chinnery, um pintor inglês oitocentista que percorreu o mundo e finalmente se radicou em Macau, moldava as suas obras num estilo subtil e clássico, atingindo uma pure-za e perfeição admiráveis. O seu melhor discípulo chi-nês, Lam Qua, era dotado de um talento natural e do-minava uma técnica singular. Ele foi o primeiro chinês que aprendeu a pintar à ocidental e fundou em Cantão um estúdio, conhecido internacionalmente por vender quadros com paisagens românticas de Macau, do estilo "China Trade". Marciano Baptista, e já no nosso sécu lo, o arquitecto russo George Smirnoff, traduziram as suas inspirações arcanas em aguarelas serenas e ele-gantes. E no presente, Luís Demeé, Kwok Se, Concei-ção Júnior, Kwok Woon, Ung Vai Meng, cada um ocupa um lugar com a sua peculiaridade. Sobretudo, Mio Pang Fei, pintor muito admirado por Carlos Mar-reiros, conseguiu sincronizar a força intimista e o po-der evocativo com os fôlegos artísticos das dinastias Tang e Song, sem descurar a intensidade do expres-sionismo alemão e do Antoni Tápies. Mio, com o seu talento amadurecido, já ganhou fama internacional.

Como artista contemporâneo e merce do seu culto e amor profundo por Macau, Carlos Marreiros dedicava-se a várias actividades criadoras. "Macau, ci-dade de cultura, tem um poeta por metro quadrado, além de ser magnífico cenário para a música, dança, teatro, ópera, fotografia e para as manifestações genuí-nas da cultura." Isto justifica que a cultura de Macau já tenha saído da sua letargia e está em vias de um desen-volvimento próspero, pelo que Carlos Marreiros traba-lha com entusiasmo. Ele foi e é um defensor incansá-vel da preservação do património arquitectónico, para que este continuasse a coexistir com a história e os edifícios recém-construídos, mantendo assim o con-traste da cidade. É isto a identidade singular que Ma-cau pode representar e demonstrar ao mundo. Carlos Marreiros foi ainda o principal fundador do Círculo dos Amigos da Cultura de Macau, que integra muitos pintores promissores do Território e que começou a dar nas vistas na Ásia. Tendo em conta a promoção da imagem e apresentação das potencialidades artísticas de Macau, este organismo já realizou exposições no Japão, Taiwan, Singapura, Índia, Malásia, Coreia e Hong Kong, fortalecendo os laços culturais com o mundo exterior e trazendo frescura para uma nova mentalidade.

Carlos Marreiros gosta de dizer citando os mestres geomantes: "Macau é Terra de Flor de Lótus". Como é sentimental esta metáfora! Na China, a flor de lótus simboliza felicidade, harmonia e pure-za. Com este amor pela flor de lótus, ele concilia a sua esfusiante alegria com o instinto de criar. Pode dizer-se que ele, o meu amigo português, é mesmo uma flor de lótus, que se enraíza na terra oriental e espalha o seu aroma de arte.

Xangai, Fevereiro de 1993

*Pintor e ex-Professor de Arte das Universidades de Xangai e Haerbin. Tem vasta obra publicada, onde se destacam: Os Pintores Contemporâneos Chineses, Dang Qichang e o seu Pensamento sobre Pintura Erudita e Civilização e Fraqueza.

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até a p.