Crónica-Macaense

Beatriz Basto da Silva
Reticências

Ilustracoes de Kwok Wun © Copyright

"Vão demolir esta casa

Mas meu quarto vai ficar

Não como forma imperfeita neste mundo de aparências:

Vai ficar na eternidade,

Com seus livros, com seus quadros, intacto,

suspenso no ar!"

Uma vida, estes já dezasseis anos em Macau. E parece que cheguei ontem! Que diferença entre o "antes" e o "depois" deste período, tão rico de vivências, tão surpreendente aos meus olhos europeus.

Os primeiros contactos foram de confusão e estranheza: multidão de rostos, língua e comportamento diferentes e até a atmosfera quente e húmida dos finais de Maio, tudo me pareceu agredir os 24 anos de lusitanidade assumida que trazia comigo. Pensei intimamente: "isto vai ser chegar e virar, como é que eu me aguentarei por aqui dois anos?!" Estávamos em 1970!

Depois da morosa travessia de 3 horas no ferry Tai-Shan, fui "larga-da" em Macau e conduzida para a mansão da família Basto, a que, por casamento em Portugal, pertencia recentemente. Tios, primos, cunhados, tudo me rodeou fes-tivamente. Mas os meus olhos pousaram noutros que elegeram: meigos, seguros, inteligentes-os do Avô, chefe incontestável do clã!

O tempo foi passando. A casa, o trabalho, o hábito, foram-me ajudando a instalar.

Vinha como professora de His-toria para o Liceu. Descobri que os meus alunos pouco sabiam da sua cidade, mesmo os mais adiantados, e resolvi logo programar umas pas-seatas a pé, para aproveitarmos, eles e eu, dos benefícios que se colhem sempre que se vagueia sem destino por uma cidade antiga.

E Macau tinha de facto, naqueles tempos, esse encanto de conservar inúmeros vestígios do pas-sado. A atender a Manuel da Silva Mendes, o grande mecenas do Museu Luís de Camões, as carac-terísticas arquitectónicas foram ainda mais ricas no passado. Diz ele, num periódico local, em 1929:

"(...)O que estava, o que tem sido destruído, era caracteris-ticamente português e era caracteris-ticamente chinês. Tínhamos uma cidade digna de ser vista, de ser visi-tada. Hoje temos uma cidade a que foi tirado quase todo o seu pitoresco, desnudada de atractivos, incarac-terística, informe. (...) » Tinha razão com certeza, basta ver gravuras antigas para acreditar que a tinha. Mas ainda sobrou matéria de deslum-bramento que eu pude saborear quando cheguei. Os alunos, meus companheiros de aventura, faziam perguntas como se olhassem as coisas pela primeira vez, embora muitos deles tivessem nascido e crescido aqui mesmo. Circulavam usualmente por três ou quatro ruas principais, sem nunca terem re-parado que as habitações tinham um 1o andar, frisos bonitos nas janelas ou sobre as varandas, telhados com arrebiques caprichosos e artísticos.

A tonalidade quase geral das velhas casas, o amarelo-ocre, parecia prolongar-se em poeira dourada e irreal, quando o sol do en-tardecer acariciava oblíquo as vielas mais estreitas, antes de se instalarem as sombras do fim do dia.

A magia ia-nos possuindo: A zona do Lilau, com sua nascente de água encantada - quem beber dela fica "preso" a Macau!- o ritmo calmo das fachadas pela cidade fora, mar-cando quarteirões residenciais, arejados e protegidos da excessiva luminosidadde pela sequência or-denada das gelosias; a calçada "à portuguesa"; a surpresa de um poço comunitário, para onde convergem ruelas de nomes ingénuos e frescos, escritos em azulejos nas esquinas: Becos do Lenço, do Leque, Pátios da Dissimulação, da Eterna Felicidade, Travessas do Bule, do Gancho, Calçadas do Marfim, do Em-baixador, Rua da Barca da Lenha!

Livro único da diplomacia mundial, onde quem escreve é o homem-comum, em cada dia, não com palavras mas com acontecimentos, Macau representa o exemplo mais fecundo daquilo que se pode considerar, no mundo português, complementaridade espontânea de valores.

Mas porquê, "setora"? Porquê esses nomes, porquê tudo isto? Por-quê?

Como lhes agradeço os por-quês! Obrigaram-me a obedecer atentamente, a estudar! Por amor dos meus alunos comecei a amar Macau, a querer conhecer melhor a sua gente, a sua História, teia delicada e flexível que vem resistindo ao nem sempre fácil diálogo do Ocidente com o Oriente. "Livro" único da di-plomacia mundial, onde quem es-creve é o homem-comum, em cada dia, não com palavras mas com acontecimentos, Macau representa o exemplo mais fecundo daquilo que se pode considerar, no mundo portu-guês, complementaridade espon-tânea de valores.

Armando Martins Janeira afirma a sua crença no equilíbrio que a serenidade oriental pode trazer à agitação do Ocidente, em benefício da paz mundial, se nesse contacto for privilegiada não a política do poder mas a solidariedade cultural.

Neste ponto vou por mim mesma. Acho que a experiência pressupõe a identidade de cada um e nada mais seguro do que ela para chegar à verdade das coisas.

Atenta ao que já pude recolher, quer-me parecer que posso descobrir os benefícios transmitidos à minha vida pelo diálogo que venho estabelecendo entre mim e eu própria em Macau: o que fui, o que conservo, o que rejeitei, o que ad-quiri, o que sou. Prezo hoje muito mais tudo o que nos envolve, porque fica e falará de nós, como colectivi-dade, do que as emergências sociais e passageiras da vida de cada um. Sei combater a ansiedade e conquis-tar, como numa cela dentro de mim, a tranquilidade de espírito. Habituei--me a saber esperar, com teimosia silenciosa e um sorriso nos lábios, embora muitas vezes me esqueça deste comportamento adquirido e mergulhe nas raízes latinas da forma mais inesperada!

Adaptei-me à ideia de que há naturezas completamente diferentes da nossa, desprendendo de si reac-ções desconhecidas e surpreen-dentes, numa sequência e com-binação sem fim. O povo chinês é permanentemente imprevisível. Viver ao seu lado é fascinante. Mas ê preciso saber viver! Quantas vezes, ao longo destes anos, fui descansar do meu "exercício diplomático" junto do Avô! Ele próprio ex-diplomata na China, agora habitando num bairro antigo aconchegado entre árvores de grande porte, dispunha da melhor memória viva que se co- nhecia na cidade. Muitas pessoas o procuravam para ouvir as reminiscências que a sua mão cansada e trémula já não podia registar. Mas a voz, a vivacidade de espírito, a ironia fina que tantas vezes os lábios calavam mas os olhos traíam, justificavam bem uma visita.

Eu aguardava sempre o entardecer para o encontrar, quando a brisa refrescava as arcadas amplas da sacada.

Havia vários rituais a cumprir a essa hora: guardar a gaiola do passarinho, regar as plantas, encomendar uma limonada, não perturbar a entrada das andorinhas que faziam ninho no globo da luz. Aliás a luz raramente se acendia. Deixava-se prolongar, propositadamente, a delícia do escurecer, quando a inebriante sinfonia de perfumes se acentuava ao nascer quente da noite.

As cadeiras de verga rangiam e o Avô, perdido nas suas cogitações, feria o silêncio como quem acaba um pensamento:

... "naqueles tempos..."Presa quase tão maravilhosa e simplesmente como na minha infância, quando alguém me começava "Era um vez..."ali ficava eu a beber as suas palavras, o seu poder de evocação, tão expressivo que as cenas descritas me pareciam vivas. Os ladridos do Tejo, brincando no jardim com os meus filhos, chegavam vagamente até nós. Na sala, trincando pevides de melancia e cavaqueando, o resto da família aguardava o jantar. E naquele bocadinho, nós os dois na varanda, que recordações! A cidade ganhava alma e eu cada vez a compreendia e amava mais:

Desenho de Gvilherme Ung Wai Meng © Copyright

Prezo hoje muito maistudo o que nos envolve, porque fica e falará de nóscomo colectividade, do que as emergências individuais e passageiras da vida de cada um.

"Aquele casarão na curva para o Monte, escondido entre cameleiras e magnólias... - dizia o Avô- vivia lá um velho amigo meu... sabe?... ham ... olhe, o F... é neto dele... a mãe era lindíssima... o pai, oficial distinto... matou-se, enfim, uma história muito triste..."

E eu, como nas poesias de Lopes Vieira sobre as Cenas Infantis de Schumann, insistia"Conte... conte ... conte!"

Conduzida mansamente, a imaginação corporizava cenas jamais vistas e outras que vão escasseando: o tempo dos jerinxás, os cules-de longo rabicho, os ambulantes oferecendo pão quentinho com manteiga aos bandos de crianças a caminho da escola, achares de papaia e nabo agridoce espetadinhos em bambu, rebuçados de caramelo acabado de fazer num caldeirão portátil, sopa de fitas e frituras sem esquecer a canja anunciada com voz rouca de pregão centenário, à noite, de porta em porta.

E a par destas pequenas delícias, o outro lado da vida: epidemias, promiscuidade, a acção abnegada de certo médico, a relutância sobre vacinas, as visitas e a assistência a cargo dos missionários, em permanente risco de contágio e esquecimento de si próprios, a dor e a desolação que a morte imprimia a tais épocas, tudo narrava o Avô.

Eu comecei a sentir que, depois de tão coloridas "aguarelas" precisava de vasculhar documentos e fundamentar melhor as notícias.

A História de Macau, desperta em mim pelo maravilhoso, como nas óperas de Wagner, criou exigências científicas. Em breve me vi como responsável do Arquivo Histórico, rodeada de páginas e páginas de passado que pareciam olhar-me em desafio. Aceitar e fazer aquele trabalho foi das coisas mais bonitas da minha vida. Passei a sentir Macau de outra maneira. A respeitar o seu contorno físico, a sua silhueta recortada, as manchas de verdura servindo de pedestal ao farol da Guia. A compreender, por sobreposição dos documentos à realidade, a estratégia das fortalezas, a irradiação urbana em volta das igrejas e conventos tal como nos velhos burgos medievais da Europa.

Macau parecia-me cada dia mais familiar, revelando-se um cantinho com alma, uma alma grande como os portugueses tão bem sabem ter, aberta aos ventos do Oriente e do Ocidente, acolhedora, com um feitiço semelhante. ao que ameaçou Ulisses, atenuando as saudades da Pátria. Ou seria a bica do Lilau, cuja água bebi, que começara a fazer os seus efeitos?

Será que consigo explicar este amor tão complexo e inesperado a uma terra que nada tinha de comum com as minhas raízes coimbrãs, cais da minha mocidade, donde parti di-lacerando amarras de ilusão num di-lema de vou? fico? que a costela a-tlântica resolveu a favor da aven-tura?

Macau foi e será para mim o que guardei no meu coração. E ainda bem que a marca existe, indelével, quando fecho os olhos. Porque -quando os abro - que vejo? Onde está, lembro-me de parafrasear Manuel Bandeira, não o "Recife da minha infância"mas a Macau que eu conheci?

Os olhos enchem-se-me de lágrimas e, por momentos, julgo que nao vejo por causa da emoção. Mas não! Há tanta coisa que vai de-saparecendo, que é varrida pelas máquinas do que o Homem de Hoje chama, ufano, o progresso do século! Tanta carga envolvente que educava os "filhos da terra", que lhes dava uma sequência existencial intuitiva e que desapareceu em nome de van- guardismos tantas vezes padroni- zados e empobrecedores!

Põe-se um problema de iden-tidade às gentes de Macau que, olhando à sua volta, já não reco-nhecem a sua terra. E, pior do que isso, que se deixam alienar, em-baladas por hipotéticas vantagens de comodidade de que pensam vir a usufruir, quando afinal as acabam de perder. A curto prazo sobrevirá uma crise psicológica gerada pela falta de espaço vital, pelas cons-truçons-colmeias que cansam, onde se multiplica o ruído, onde ninguém conhece nem ajuda ninguém. As crianças querem largueza própria para crescer mas, para usufruírem dela, terão que sair de casa, onde a educação deveria ser feita e o amor prodigalizado, e ir para os jardins públicos, muitas vezes sozinhas e sujeitas a tantos perigos! Pais e filhos conhecerão-já estão conhecendo-mais a angústia do que a harmonia.

Será que para falarmos e provarmos a nossapresença de 4 séculosna China, vamos ter quedesfolhar páginasamarelecidas, projectardiapositivos do que "foi", apagando nós próprios as marcas que deixámos, comose isso facilitasse a retirada?

EMacau, onde as Ilhas são um escoamento ainda por explorar, Macau que até agora prezou o equilíbrio da população, está a deixar-se arrastar pelos ventos insalubres. Ultimamente são inú- meras as vozes que se levantam na imprensa e nas conversas ocasionais, aqui e ali, chamando con-tra a destruição da cidade, no que tem de característico. É que é pre-ciso evitar a todo o custo o desabafo posterior e inútil de que "de facto, foi pena". A minha casa, sólida cons- trução de há 40 anos, tem um telheirinho rústico a cobrir a entrada, um pouco à Raúl Lino. Na coluna de pedra que ajuda a definir o acesso, está gravado o nome do construtor, Sin Chung Kwan. É portanto uma "peça" assinada. De nada lhe vale. Já está vendida e vai dar lugar a um prédio de "n" andares. A casa do meu Avô, assim como tedo o exemplar único de bairro residencial que co-nheci em plena exuberância, é hoje um quarteirão de terreno seco onde, à força do ensurdecedor martelo--pilão e provocando abalos telúricos em toda a vizinhança, se vão er-guendo as fundações de um silo para automóveis.

A atestar o património antigo temos numerosos catálogos de ex-posições e albuns fotográficos que guardam a imagem do paraíso per-dido. Será que para falarmos e pro-varmos a nossa presença de 4 sécu-los na China vamos ter que des-folhar páginas amarelecidas, pro-jectar diapositivos do que foi, apagando nós próprios as marcas que deixámos como se isso facilitasse a retirada?

Aqui, deste quarto onde es-crevo, destas paredes que sei que vão cair, sinto ruir mais além, como num sonho dantesco, as escadarias, os beirais, o palacete antigo na es-quina do Jardim, tudo entre um pó denso, crescente, que o sol poente pinta de dourado.

Não, não quero abrir os olhos, que a poesia me ajude a superar este momento.

Manuel Bandeira, de novo:

Vão demolir esta casa

Mas meu quarto vai ficar

Não como forma imperfeita

neste mundo de aparências:

Vai ficar na eternidade,

Com seus livros. com seus

quadros, intacto, suspenso no ar!

LUIS GONZAGA GOMES- num canto, como os observadores; convictamente sentado (uma posição de vida?); idade: quando se tem a força das arvores. Cinzento, entre cinzasiuma luz de "abat-jour", um intimismo que não quere devassas (um distanciamento?, uma timidez?, a misantropia que se abre à vida que estua, sanguínea, da janela?). No retraimento do sofá, o ousio da perna desferida à boca de cena: assim o olhar arroncador, concentrado, empregado (uma subtil sugestão de ironia?). Como os olhos, os ouvidos tão despertos: um fluido musical perpassa o silêncio e atravessa, a branda movência da arvore, mítica palmeira ou flébula de inspirações... Mas o rigorismo Intelectual, o pensamento que busca o amparo da régua para se vazar na quadrícula concisa. Uma predisposição de acolhimento e conversa. A respiração de uma sobriedade culta e elegante. Um retrato de corpoeairna: "O contador de histórias"- de Carios Marreiros (acrílico e grafite em tela, 124 X 124cms; Macau, 1986). L. S. C.

desde a p. 86
até a p.