Artes e Letras

Um manuscrito inédito e alguns desenhos do Conde de Ficalho
(la. versão de um conto)

Nuno de Sampayo

Creio tratar-se da primeira vez que a letra do autor de "Garcia da Orta e o seu tempo" é mostrada à curiosidade dos leitores e à investigação da Grafo-logia; também suponho geralmente ig norada a habilidade de desenhador de um homem tão cumulado de talentos: primeo botânico português do século XIX; um dos nossos mais importantesnarradores-contistas; um dos nossos principais narradores biográficos.

Ficalho manteve oculta a sua queda para o bosquejo; o lápis significou menos para ele do que o violino para Ingrès. Mas estas seareiras ou mondadeiras do Alentejo, coroadas com a infusa da água, têm finura e intensidade expressiva; pensa-se nas argelinas de Delacroix. Lineares e embuçadas, retornam da cisterna no cálido a-brandar de um furioso apogeu de verão. Aliás, no manuscrito Ficalho escreve: "os lenços cruzados tapando a boca, lembravam o véu berbere do deserto." (1) O conde deve ter visto esboços do grande pintor de batalhas tumultuosas e românti -cas; ou tratar-se-à do fruto agradável de um acaso? Não posso afirmar. Observarei apenas que desenhava bem.

Sob os vossos olhos, pois, o manuscrito de "Os Cravos", quinto dos seis contos recolhidos no volume "Uma Eleição Perdida". As alterações operadas na história e no estilo são extensas. Pode falar-se em dois esforços distintos: foram apenas mantidos um fio narrativo e algumas imagens; também permanecem umas quantas sensações. O autógrafo revela uma escrita larga e corrida; a separar as linhas o desafogo que per-mite a adição ou simplifica a rasura. Não foram, porém, introduzidos cortes ou acrescidas frases: Ficalho preferiu reescrever completamente. O conto traz a data de 1885; o livro apareceu em 1888. O texto final consumou-se, portanto, neste hiato de três anos. É dedicado "ao meu amigo o visconde de Seisal". Também se ignorava.

Quem foi o conde de Ficalho? No seu tempo um dos mais ilustres portugueses vivos. Só recentemente, todavia, voltou ao grande público, mercê de duas reedições. Sobre a nomeada que teve em vida sobreviera a rigidez do silêncio; Imprensa Nacional-Casa da Moeda se ficou a dever o resgate de uma das mais singulares e poderosas figuras do oitocentismo português. O triunfo de "Garcia da Orta e o seu Tempo"de-monstra a oportunidade da reedição e o serviço prestado: este trabalho histórico-biográfico man-teve-se algumas semanas à cabeça dos livros mais vendidos. A par dos monumentos que se vão desmoronando, havia merecimentos que se esbatiam imerecidamente: um deles era o conde de Ficalho.(2)

Uns traços, somente, a apresentá-lo aos que o não conhecem e a recordá-lo aos que o admiram. Entre 1837-1903, Francisco Manuel de Mello Breynner, conde de Ficalho, viveu sessenta e seis anos de uma vida repleta de predicados. Dobrou a grande nobreza da linhagem com a grande nobreza do esforço: foi, como vimos, o maior botânico do seu tempo.

Era sério e era douto; nos seus estudos his-tóricos há advertência. Governou no Paço como Mordomo-Mor; leccionou na Universidade como catedrático; arbitrou na Academia das Ciências como Presidente. Demonstrou, fundamental-mente, a necessidade e a actualidade da nobreza assumida como serviço e reassumida pela ilus-tração.

O conde de Ficalho encarregou-se do preâmbulo e comentário do "Colóquio das Drogas e dos Simples", do famoso médico do século XVI; desse empenho de investigação minuciosa e de erudição interessante nasceu "Garci da Orta e o seu Tempo". O estudo his-tórico-biográfico tem idoneidade; a prosa em que o vasou cabimento. O léxico é rico; a frase no-bremente austera. O mesmo se dirá da "Viagem de Pero da Covilh

O concurso de Ficalho no estudo de ilustres portugueses da Renascença como este viageiro e aquele facultativo, pode considerar-se exemplar. Mas até à reimpressão de "Garcia da Orta e o seu Tempo"esquecera-se que ele é talvez o primeiro historiador-biógrafo do nosso oitocentismo - e isto não obstante Oliveira Martins...

Em 1880, no terceiro centenário de Camões, publicou Flora d'Os Lusíadas" - obra-prima da monografia, trabalho de especialista, onde a mo-derna Botânica não introduz adições nem refere lapsos.

Eis-nos chegados aos contos. "Os Cravos", cuja eventual primeira redacção aqui se revela, é - como se notou -o quinto espécime da recolha de seis intitulada "Uma Eleição Perdida". Editada em 1888 pela livraria Férin, penou no obtuso pur-gatório dos livros esgotados, apesar de uma das narrativas, "A Caçada do Malhadeiro", figurar nas antologias esclarecidas; a sua reedição em 1982 pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, foi muito notada: público, crítica, todos se curvaram.

O conde de Ficalho é um narrador poderoso. O verismo estava-lhe no carácter; a for-mação positivista do botânico ajudava. A narração, movimentada, tem a versatilidade do cinema; a intensidade dramática alterna com a exuberância sensorial; o realismo estira-se na sua planície e o poético eleva-se no seu cômoro. Visualização, observação e memória harmonizam-se como em todos os autênticos ficcionistas. Apenas de imaginação - ao contrário de Eça - Ficalho é um pouco seco.

O conde pousou no famoso retrato dos "Vencidos da Vida": na primeira fila, tranquila e poderosamente sentado, afigura-se o decano do grupo; na realidade Ramalho tinha mais três anos. Nesta magnífica geração de 70 não o cotam entre os magníficos - gala que se usa vestir a Eça de Queirós, a Oliveira Martins e ao cronista das "Far-pas". (3)

O conde de Ficalho não é um inventor de estilo como o romancista de "A Cidade e as Serras" nem um historiador-filósofo como o autor de "Portugal Contemporâneo" mas não merece a prateleira na biblioteca de silêncio onde se empoeiram justamente tantos letrados insípidos e distintos do século XIX. Narrador interessante e prosador categórico conforme se viu; conforme também se viu, grande historiador-biógrafo.

Resta fazer o confronto cordial de "D. João I" e de "Nun'Álvares" com "Garciada Orta" e "Pêro da Covilhã". Oliveira Martins, seguramente mais artista, não manifesta este es-crúpulo biográfico, esta idoneidade histórica. É um colorista imaginoso; no claro-escuro de Ficalho historiador-biógrafo combinam-se uma severidade quase calvinista e a intensa gravidade dos retratos de Velasquez. À maneira do pintor de Filipe IV, mais um verista do que um realista.

A apresentação do autógrafo e dos esboços foi-se alongando. Ela informa, contudo, acerca do método de composição e de exigência re-lativamente ao escrito. Verifica-se que Ficalho alterava drasticamente no tema como na forma -para conseguir melhor.

Condensar significa refinar: a arte deve ser directa e o mais simples possível.

O conde de Ficalho simplificava com re-quinte.

"O Conde pousou no famoso retrato dos "Vencidos da Vida": na primeira fila, tranquila e poderosamente sentado, afigura-se o

(1)Na versão final a imagem é substituída por uma notação mais viva: "Subiam num passo firme, envol-vidas nos grandes xailes escuros de lã, com os lenços de chita traçados na boca, naquele abafo tão singular e tão característico do nosso povo do meio - dia."

(2)O conde de Ficalho é, justamente, o que pode chamar-se um talento erudito ou uma erudição talen-tosa. Espécie corrente na Europa saxónica e ger-mânica, rara nos países latinos.

(3)Na geração de 70, como no retrato dos Vencidos, Guerra Junqueiro está um pouco de viés. Grande lírico n' "Os Simples" e n"A Pátria"essa lateralidade explica-se por ele ser mais um homem da Pro-clamação da República do que da Monarquia Constitucional, mais de 1910 do que de 1870.

desde a p. 71
até a p.