Ensaios

Pontos de encontro do Homem português e do Homem chinês

B. Videira Pires, S. J.

Tchak Seng Ló-Hón-"caçador de estrelas"(Barro de Sek Wán)

(...)"o português é possivelmente o carácter menos metafísico e mais lírico da Europa e, por isso, o que se acha vivencialmente mais próximo do chinês. Já o vimos no aspecto dos provérbios e aforismos populares. O parnasianismo descritivo e o amor da natureza ou bucolismo, o gosto pela história, a vitalidade rítmica da sua arte-des forço ou compensação das repressões do rígido sistema familiar - o modo rural da vida considerado como ideal pelo tauismo, opacifismo até à indeferença pela política (atitude social que, frequentemente, se torna necessária, em virtude da ausência de protecção legal e do egoísmo dos grandes), a simplicidade de hábitos, a frugalidade e sobriedade para conservar a saúde física e moral, o cepticismo perante os entusiasmos e idealismos radicais e revolucionários da juventude inexperiente, o tradicionalismo, eis outras tantas semelhanças entre a natureza humana e o temperamento do chinês e os do português".

O jesuíta português Pe. Luís Fróis escreveu e imprimiu, «em Canzusa (Katsusa), aos 14 de Junho de 1585», um "Tratado em que se contêm muito susinta e abreviadamente algumas con-tradisões e diferenças de custumes antre a gente de Europa e esta provincia de Japão", obra que Josef Franz Schütte, S. J., descobriu, publicou, de novo, e traduziu para o alemão, em 1955. (1).

Desejaria fazer o trabalho contrário, em re-lação a Portugal e à China, buscando os pontos de encontro, semelhança e afinidade, entre as duas civilizações, de preferência aos que nos dividem, separam e possivelmente antagonizem.

Somente por meio desta atitude de abertura, diálogo e boa-vontade poderemos, de facto, chegar a uma síntese harmoniosa de compreen-são, estima e convivência, a uma autêntica acul-turação humana.

Em primeiro lugar, qual o significado ge-nuíno de "raça amarela", com que, estereo- tipada e tradicionalmente, nos documentos oficiais de identificação (bilhetes de identidade e passaportes), nos compêndios de história e geo-grafia, etc., se caracterizam os chineses?

Três galos, entre peónias e malmequeres - Prato da época Kien Lông.

Os primeiros portugueses que os viram e trataram acharam-nos e descreveram-nos "gente branca", tanto ou ainda mais do que nós. (2). De-senvolvamos este assunto:

Huang-ti ou Imperador Amarelo fundou a sua capital em Yu Hsiung, no distrito de Hsin Cheng da província de Honan, que se situa na orla da zona do "loess" ou humus amarelo, de cuja região o monarca derivou o próprio nome. Aquele distrito, pois, considera-se o local de origem da tribo amarela.

Na remota antiguidade, a raiar ainda com a lenda, a China dividia-se em três esferas de in-fluência política: o oriente, que a tribo T'ai dominava; o sul, chefiado pela tribo Yen; e o noroeste pela tribo amarela. Esta, pelos seus empreendimentos culturais (entre os quais figuraa descoberta antiquíssima dos caracteres da escrita) e militares, transformou as outras tribos e sub-raças numa grande nação.

"Raça amarela", assim, deriva da cor do território que é o berço da civilização pro-priamente chinesa e tinha as margens do Rio Amarelo (Huang Hó). Não vem da real côr da pele dos seus habitantes. A raça branca não se pode, por isso, por causa da tez, contrapor à chamada "raça amarela". (3).

O termo "raça", aliás, não é susceptível de definição rigorosa, aplicando-se apenas a clas-sificações de tão tremenda generalidade como "negra", "branca", "amarela" e "vermelha". O con-ceito de raça pura, com elementos fixos de es-trutura e pigmentação, está, há muito tempo, re-futado.

Excluindo os povos nórdicos da Europa, os chineses, japoneses e coreanos têm mesmo a epiderme mais alva do que os chamados "bran-cos", sobretudo os portugueses. Esse carácter, pois, não nos diferencia, nem muito menos nos divide. Os traços somáticos de raiz mongolóide apresentam-se mais amarelos ou tisnados que os dos indo-europeus ou germânicos, mas o tipo Han das origens, que predomina na maioria das províncias da própria China actual, é branco.

De resto, subindo a um nível mais alto, "a raça, enquanto representa a continuidade de um tipo físico, equivale a um grupo natural que pode nada ter de comum e, em geral, nada tem com o povo, a nacionalidade, a linguagem ou os cos-tumes, correspondentes a grupos puramente ar-tificiais, sem vínculos antropológicos, e uni-camente devidos à história de que são os pro-dutos. Assim, não há raça bretã, mas povo bretão, não há raça francesa mas nação francesa, não há raça ariana, mas línguas arianas, não há raça latina, mas civilização latina". Não há raça chinesa, podíamos acrescentar, mas civilização chinesa.(4).

Não se podem sacrificar o espírito à matéria, os valores psíquicos ao determinismo dos factores biológicos, os fenómenos animais (como a raça) ao que é especificamente humano: a cultura. A chave do problema das civilizações não é a biologia, mas a história.

"(Os provérbios portugueses)revelam concordâncias impressionantes com os da China. Há apenas um elemento pitagórico-budista que nós não temos: o da transmigração das almas".

Énos provérbios populares que melhor se revelam o humanismo iluminado (sabedo-ria) e a moral de um Povo. Ora o falecido Chantre da Sé Catedral de Macau, António André Ngan, demonstrou, numa compilação felicíssima, a concordância ideológica e até muitas vezes metafórica entre a maioria dos provérbios por-tugueses e chineses. Nunca sublinharemos de-masiado a importância desta descoberta. (5).

Com efeito, "sabedoria ou sapiência é a per-feição do conhecimento, que consiste em com-preender a verdade divina e as demais enquanto a esta ordenadas" (Sto. Tomás de Aquino). Por outras palavras, sapiência é a consciência prática do primado dos valores espirituais e morais e a vivência, portanto, do sentido global da vida. Por-que o homem, como todo o ser criado, somente se compreende na sua relação ao Absoluto. É o que os japoneses chamam "amaeru", isto é, a sen-sação radical de comunicabilidade com outrem, de ser amado e gostar de viver na dependência do amor da mãe, da família, da sociedade, enfim de Deus-Pai, "de Quem provém todo o dom per-feito". E o acto de Deus é um eterno presente.

Na história da noção de sabedoria, acen-tuam-se progressivamente os aspectos técnico, de "savoir faire" ou habilidade, teórico (que cor-responde, segundo Pitágoras, à filosofia), teórico--prático (Aristóteles e os Vedas da Índia), moral (Estoicismo, Egipto, Babilónia, Descartes, Leib-nitz, Espinosa, Kant e Hegel) e religioso (Filão, Plotino e Kirkegaard). As expressões literárias mais comuns do lado prático (valor moral e bom senso) do termo "Sabedoria" foram, em quase todos os povos, os provérbios e os aforismos (às vezes, na sua forma mais extensa de apólogos), que em Portugal, como dissemos atrás, revelam concordâncias impressionatess com os da China. Há apenas um elemento pitagórico-budista que nós não temos: o da transmigração das almas.

Keyserling procurou harmonizar as tradições oriental e ocidental da ideia de Sabedoria, criticando os exageros da cultura téc-nico-intelectualista do Ocidente, em que quase se perde o sentido da totalidade da vida. Caiu, porém, no erro de atribuir a Sabedoria à magia e ao teosofismo, que não representam mais do que as suas degenerações ou corrupções.

Segundo a psicologia moderna, o modo de pensar e viver do Oriente baseia-se na reali-dade psíquica, isto é, na psiqué como a principal e única condição de existência, que se considera um facto mais psicológico e temperamental do que um resultado de raciocínio filosófico, É este um ponto-de-vista ou um estado-de-consciência introvertido.

Introversão e extroversão, com efeito, são atitudes temperamentais ou mesmo de cons-tituição dos indivíduos, que nunca se adoptam in-tencionalmente, em circunstâncias normais.

Ora aintroversão "é o estilo do Oriente". Freud pensou, por isso, que ele ia contra o sentir comunitário e a filosofia do Nacional Socialismo e condenou-a. Sabemos, porém, que é um mito apriorístico a superioridade da raça ariano-ger-mânica. Por outro lado, o pessimismo de Schopenhauer - fundado numa falsa inter-pretação do Budismo - é uma das deformações deste tipo psicológico (predominância da "anima" ou elemento feminino).

Todavia, a mente introvertida tem um grande poder de auto-libertação. Facilmente es-quece agravos e dorme melhor sobre os momen-tos deprimentes.

Há estados mentais que transcendem a consciência, mas não há estados conscientes que não se refiram a um sujeito (a um eu). Somente por meios indirectos (sonhos, hipnose, etc.), o eu se dá conta dos movimentos do inconsciente. Essa compensação do inconsciente situa-se, como indicámos, além do controle ordinário do homem.

A mente do Oriente não é tão egocêntrica como a do Ocidente.

A cultura do Oriente tende para ser existen-cial, sem divisões artificiais e abstractas. A poesia, a pintura, a cerimónia do chá da escola budista Zen, os arranjos de flores, as plantas miniaturais, a ginástica respiratória, a arte marcial (kông-fu), etc., insistem na atitude vertical da mente (pene-tração do objecto, união com ele, esquecimento do eu, atenção nem ao passado nem ao futuro mas só ao momento presente). O pensamento ocidental, por outro lado, até ao existencialismo e à filosofia do rea! (Kirkegaard, Gabriel Marcel e outros), dum modo geral preocupa-se com o ser essencial e silogístico, e menospreza a intuição e o misticismo.

"O oriente minimiza o mundo da consciência reflexa, o Ocidente o mundo do super-ego (a Mente Universal, o sub-consciente colectivo).

O resultado é cada qual (Oriente e Ocidente) no seu extremismo, perder metade do Universo e do Homem".

Estes dois pontos-de-vista, embora contrários (ou de polos opostos, positivo e negativo), têm cada qual a sua justificação. Ambos são unilaterais e não tomam em conta os factos que não se en-caixam na própria atitude. O Oriente minimiza o mundo da consciência reflexa, o Ocidente o mundo do super-ego (a Mente Universal, o sub-consciente colectivo). O resultado é que cada qual (Oriente e Ocidente), no seu extremismo, perde metade do Universo e do Homem. O in-consciente também nos pertence e constitui uma reserva formidável da vida.

No Ocidente, há a mania da objectividade, das "ideias claras e distintas" à Descartes, dos dualismos gregos (matéria e forma, corpo e es-pírito, natural e sobrenatural, essência e existên-cia, etc.), do ascetismo do cientista ou do corre-tor-de-bolsa, que alija fora ou pelo menos passa por alto a beleza e a universalidade da vida, em virtude do amor cego ao seu ideal ou antes ins-tinto. O Oriente não faz dicotomia da realidade, não cria o "ens rationis".

Budisava, ainda em figuração feminina

No Oriente, há a sabedoria, a paz, o de-sapego e a não-acção (que são uma força ou a fonte de toda a energia, porque são a concen-tração, a resistência, a inércia, a represa cheia de água). (6) A psiqué assim regressou às suas obscuras origens, deixando atrás toda a tristeza e alegria, os fenómenos da semelhança ou parecença, da paixão e do entusiasmo puramente externos.

As duas espécies de pensamento (intuitivo e discursivo) são importantes e cada um deles pode lucrar com a união do horizontal com o vertical, a fim de integrarem uma cultura do mundo futuro. As duas tendências da alma do Ocidente e do Oriente têm um propósito comum magnífico: ambos fazem esforços desesperados, por caminhos e com meios diversos, para con-quistarem a naturalidade autêntica da vida.

Numa palavra, a China é mais feminina e in-tuitiva e a Europa mais masculina e metafísica. Se se unirem, completam-se mutuamente.

"O Oriente prefere a imobilidade para forma do infinito: O Ocidente prefere o movimento. É que este tem a paixão do por-menor e a vaidade do individual, do múltiplo. (...) Também um dos serviços que o cristianismo nos presta é este elemento oriental da nossa cul-tura. Serve de contrapeso às nossas tendências para o finito, o passageiro, para o instável, con-centrando o espírito por meio da contemplação das coisas eternas - platonizando um pouco as nossas afeições, constantemente desviadas do mundo ideal, conduzindo-nos da dispersão à concentração, da mundanidade ao recolhimento, - trazendo, de novo, a calma, a gravidade, a nobreza, às nossas almas tomadas febris por mil desejos mesquinhos". (7).

"As duas espécies de pensamento (intuitivo e discursivo) são importantes e cada um deles pode lucrar com a reunião do horizontal com o vertical a fim de integrarem uma cultura do mundo futuro (...)

Numa palavra, a China é mais feminina e intuitiva e a Europa mais masculina e metafísica. Se se reunirem, completam-se mutuamente".

As qualidades da inteligência e da lógica feminina - escreveu Lin Yutang - são as da mentalidade chinesa: senso comum ou intuição e horror aos termos abstractos. Com efeito, o modo de escrever e de pensar chinês é sim-ples, concreto nas imagens, prático, revelando--se principalmente nos provérbios e expressões metafóricas, como acontece na conversa das mulheres em geral. Os chineses personalizam a lógica e a ciência, fazem da lei uma arte. Não vão para a matemática superior e nunca desen-volveram a lógica como ciência nem a gramática na locução e na escrita. A sua matemática e astronomia foram, em grande parte, importadas dos Muçulmanos, na Idade Média, e, a partir do século 17, dos Europeus. (8).

"Avalokiteçvara"-budisava já em transposição masculina, mostrando o caminbo.

Os chineses deleitam-se nos conceitos éticos e sapienciais, dando a sensação de basófia e superficialidade, e nos termos concretos. Por isso, nas suas discussões, são naturalmente vagos, tocando nos assuntos pela rama.

Odeiam os tratados científicos, porque a sua inteligência é essencialmente analítica. Não de-senvolveram um ciência propriamente dita, baseada na imutabilidade relativa das leis da natureza e no consequente princípio axiomático de causalidade. A China reconheceu, porven-tura intuitivamente, que a lei natural se compõe de verdades estáticas mas não absolutas, que necessariamente permitem excepções. Hoje, tam-bém o ocidental já admite o imprevisto nos seus cálculos, fugindo ao dogmatismo.

O chinês foge de definir a essência das coisas, em parte porque lhe falta o verbo "ser". Não distingue entre acidente (atributo) e substân-cia. Admite mesmo que a verdade existencial não se pode provar, mas apenas sentir por uma percepção intuitiva (Chuangtsé). Certamente, a nossa percepção da verdade, no mundo, nunca é ab-soluta, mas parcial.

"Outras duas feições do carácter chinês, próximas doportuguês, são o idealismo sonhador e a negligência ou desleixo nos acabamentos (...)

Este pendor para a indolência tem, como uma das consequências, a ausência de planificação, a improvisação, defeitos igualmente muito portugueses. O Chinês acredita demasiado nos repentes do seu senso comum e da sua intuição".

O amor da natureza, o modo rural de vida como ideal, estão sempre presentes nas manifestações e nos temas das artes chinesa e por-tuguesa. A relação contemplativa e envolvente do homem chinês com a natureza, e a natureza como estado de alma, estão bem documen-tadas nestas duas pinturas (pintura da dinastia Ming, de Chóu Ying;"A Macieira", de Sousa Pinto, Museu Soares dos Reis)

Experimentando este facto continuamente e em todos os campos, o chinês não se preocupa tanto com definir "o que é isto," (o mistério do ser atinge tudo), mas com saber, tanto quanto se pode, "como é isto". Deixa de parte, portanto, a distinção entre substância e atributo ou acidente, distinção que o Budismo, aliás, importou, por meio das suas polémicas. Não há, por isso, uma epistemologia ou crítica do conhecimento, entre os chineses. Eles centram as suas faculdades de conhecimento (bom senso ou intuição e pra-gmatismo, sobretudo) nos assuntos e acções do homem e não nos problemas da natureza e do universo, como tais. O raciocínio e a dedução frias, a indução meticulosa e germânica não lhes interessa.

"Falta ao chinês também o sentido nacionalista e patriótico e superabunda o individualismo. Aliás, o termo e o conceito geral de "sociedade" (sé wui) só há cerca de 80 anos foi introduzido na China".

Ao enumerarmos esta diferença não de constituição mas de funcionamento psicológico do chinês e do ocidental, devemos ter notado que o português é possivelmente o carácter menos metafísico e mais lírico da Europa e, por isso, o que se acha vivencialmente mais próximo do chinês. Já o vimos no aspecto dos provérbios e aforismos populares. O pamasianismo descritivo e o amor da natureza ou bucolismo, o gosto pela história, a vitalidade rítmica da sua arte - des-forço ou compensação das repressões do rígido sistema familiar-, o modo rural da vida con-siderado como ideal pelo tauismo, o pacifismo até à indiferença pela política (atitude social que, frequentemente, se torna necessária, em virtude da ausência de protecção legal e do egoísmo dos grandes), a simplicidade de hábitos, a frugalidade e sobriedade para conservar a saúde física e moral, o cepticismo perante os entusiasmos e idealismos radicais e revolucionários da juven-tude inexperiente, o tradicionalismo, eis outras tantas semelhanças entre a natureza humana e o temperamento do chinês e os do português.

Confúcio disse, uma vez, a um discípulo: "um mesmo e o único fio percorre toda a minha doutrina". Queria significar que todos os homens partilham de uma única mentalidade, que penetra todas as coisas, como o mesmo sangue banha todas as células de um corpo. Os Ociden-tais temos continuamente o mesmo problema que os Chineses: reconciliar o nosso eu primitivo e individual com o eu exterior, social e conven-cional. Na mesma natureza humana que todos possuímos, somos tão chineses como eles pró-prios. No fundo, pois, as nossas lutas são as suas lutas, as nossas aspirações e as nossas conquistas são as suas aspirações e conquistas. É fácil exagerar ou minimizar as diferenças. O meio-termo ou regra de oiro (combinação de prudência e de temper-ança) é virtude cardeal, na ética confucionista e na cristã. Não é, acaso, o "Chông-Yông" (meio-termo) um livro clássico da China, porventura a chave ou a súmula dos demais? (9)

Outras duas feições do carácter chinês, pró-ximas do português, são o ideal ismo sonha-dor e a negligência ou desleixo nos acabamentos. Para documentar esta dupla semelhança, basta re-cordar as novelas chinesas do século 18 (período do imperador K'ien Lung), o arhat ou budisava "Apanhador de Estrelas" (Tchak Seng Ló-Hón), o velho conto popular de Chông K'uai (Atrair a felicidade, simbolizada num morcego, para casa) e a novela moderna de Wu Sek (ou Hsi), "O Senhor Pouco Mais ou Menos" (Chá Pat Tó Sing--Sang). (10).

Este pendor para a indolência tem, como uma das consequências, a falta de dialéctica e de método científico, a ausência de planificação, a improvisação, defeitos igualmente muito por-tugueses. O chinês acredita demasiado nos re-pentes do seu senso comum e da sua intuição.

Os gregos lançaram as bases da ciência, por-que a sua inteligência era essencialmente analítica. A análise exige atenção ao pormenor, trabalho aturado, perseverança. Os chineses, pelo contrário, não desenvolveram o pensamento abstracto e não tiveram a consciência das ideias universais. Põem demasiada ênfase na percepção do concreto ou da realidade inteira (essência e existência) e deliciam-se na forma prática da mul-tiplicidade complexa. Daqui nasce o seu amor da natureza, levado até ao que nós chamamos "pan- teísmo" ou acento exagerado na imanência de Deus. Daqui nasce a estima pela hierarquia e pela história e a tendência para reconciliar, em ex-pressões paradoxais por vezes, os próprios con-trários.

Galo de campanário (desenho) e galos sobre os velhos telhados de Macau: o galo arauto, vigilante, esconjurador de demónios e dos perigos da formiga branca.

O Extremo Oriente, com efeito, é a terra do compromisso social e do sincretismo religioso. Falta ao chinês também o sentido nacionalista e patriótico e superabunda o indivi-dualismo. Aliás, c termo e conceito geral de "sociedade" (Sé Wui) só há cerca de 80 anos foi introduzido na China. (11).

Para concluirmos este já longo estudo, enu-meremos ainda, no campo do folclore e da simbologia, o canto do galo, pela noite fora e ao amanhecer, como paralelismo entre as culturas chinesa e lusíada.

Efectivamente, o galo de Barcelos repre-senta, no turismo, o nosso país. Recordo, com saudade, a festa do galo que, em 1927, fizemos os alunos finalistas da escola primária de Torre de Dona - Chama. Evoco os combates de galos, na Indonésia, Ilhas Marianas e Macau, e a lenda do "Galo Impassível" de Chuang Tzu. (12).

O galo é, no Ocidente e no Oriente, um arauto do sol, não apenas pelo seu canto alegre, golpeando a noite, mas ainda pela sua crista ou coroa afogueada. O galo é um demonífugo, pois às "almas do outro mundo", que se crê vaguea-rem pelas sombras da noite, ele grita pelo dia, cada vez mais próximo, incute-lhes medo e es-panta-as. Um hino litúrgico da Igreja Católica con-corda com esta interpretação: o canto do galo desperta a consciência do apóstolo Pedro para o seu pecado e os nossos de negação de Jesus. (13). Em Portugal, no catavento de grande número de igrejas, o galo de metal recorda ao clero e fiéis a vigilância e a oração, a fim de não caírem em ten-tação. Várias quadras populares lembram-nos também que o galo é vigilante e profeta, ao mesmo tempo. Gregos e Romanos empregavam os galos na decifração dos seus presságios, que eles ansiavam fossem de vitória. A França dos calembours, jogando talvez com as palavras Gália e galo, adoptou esta ave como emblema nacional.

A estatueta dum galo, no cimo dos telhados velhos de Macau, protege a casa contra a formiga branca, que rói as madeiras, acobertada pela es-curidão do tunelzinho de serradura em que se introduz e trabalha.

"O cantar do galo sugere-me miragens de um mundo de delícias, alacridades campesinas, alegrias de aldeia, vida serena no lar, com esposa e muitos filhos... Eu devo ter tido algum remoto avô, que nunca viu o oceano, que nunca sonhou em viagens e em países de exotismo, que viveu feliz na sua aldeia, rodeado de família, entretido na lavoira, escutando o boi de trabalho mugir cerca, os cães de guarda em seus latidos, os galos a cantarem; e dessa orquestra rústica de vida simples, enlevo do velho parente ignorado, ficou--me, talvez, o amor pelo cantar do galo, ao al-vorecer". (14).

O bucolismo do canto do galo faz parte do ideal tauísta, que tanto imperou na arte e na filosofia chinesa. Cito o"Tau Te Ching" de Lao-Tse, conforme a tradução já indicada: "A terra pequena tem poucos habitantes... São felizes, no seu modo de vida. Embora habitem ao alcance da vista dos seus vizinhos, e os cantos dos galos e os latidos dos cães se ouçam de um para o outro lado, eles suportam-se mutuamente em paz, à medida que envelhecem e morrem". (15). Parece que estamos a ver descritas a pequena cidade de Macau e a de Ch'in Shán, do outro lado da Porta do Cerco, desde 1557 até ao deflagrar da I Guerra Mundial com a afluência enorme de re-fugiados que nos inundaram.

A aldeia grande que era "Ou-Mun Kai" (Rua de Macau) - como os cantoneses chamavam a esta cidade, há 40 anos - transformou-se (para bem ou para mal?) numa miniatura de Man-hathan. A febre de construções e o camartelo do progresso material, sem grande unidade de con-junto, conseguiram que desaparecessem as chácaras, hortas e quintais, com figueiras, vinhas e romãzeiras, donde soava o toque de alvorada desses guardas da noite.

NOTAS

(1)Luís Fróis, SJ., KULTURGEGENSATZE EUROPA-JAPAN (1585), Tokyo, Sophia Universitat, 1955.

(2)Carta do Pe. Manuel Teixeira, S. J., do 1° de Dezembro de 1565, em Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau, vol.62, Out. e Nov. de 1964, ps. 787-8.

(3)Chang Chi-yun, Chinese History of Fifty Centuries, translated by Chu Li-hen, Taipeh, 1962, vol.1.

(4)M. Boule, Les hommes fossiles, p.320. Cfr. E. Pittard, Les Races de l'histoire. Introduction ethnologique à l'His-toire, Paris, 1924.

(5)Chantre António André Ngan; Concordância Sino-Por-tuguesa de Provérbios e Frases Idiomáticas, Macau, 1973.

(6)Joseph Campell, The Portable Jung, Penguin Books, 1977, ps. 178-269, 480-502. William Johnston, The Still Point, reflections on Zen and Christian Mysticism, For-dham Univ. Press, N. Y., 2nd printing, 1980, ps. 98-99, 119 ss. Lao Tse, Tao Te Ching, a new transl. by Gia-Fu Feng and Jane English, N. Y., 2nd ed., 1982, poemas Nos. 8, 10, 16, 22, 37, 42, 43, 45, 47 56 (a espontaneidade, naturalidade ou não-acção tauista é a constante do mis-ticismo de Lao Tse).

(7)Henri-Frédéric AMIEL, Diário íntimo. vol. I, Porto, 1944, Livr. Tavares Martins, ps. 171-3.

(8)Lin Yutang, My country and my people, 10th printing, ps. 85-8.

(9)Ben-Ami Scharfstein, The Mind of China, Basic Books, N. Y., ps. 4, 29, 138-9. Fung Yu-Lan, A History of chinese Philosophy, transl. by Derk Bodde, Princeton, 1953 (2 vols.). Hagime Nakamura, Ways of thinking of the Oriental Peoples, Honolulu, 1974, ps. 380-500.

(10)Tradução de A. Teixeira, em "Jornal de Macau", 15 de Dez. 1982, p.3.

(11)Hajime Nakamura, obra citada, ps. 175-294.

(12)Reproduzida em "O Clarim", de Macau, 12 de Dez.1983, p.8.

(13)Hino do "Officium lectionis", na sexta-feira do Tempo Cumum (Liturgia das Horas).

(14) Wenceslau de Morais, Ó-Yoné e Ko-Haru, ed. de "A Renascença Portuguesa", Porto-1923, p.254.

(15)Lao Tse, Tao Te Ching, trad. citada atrás, 80ō poema.

desde a p. 16
até a p.