Artes e Letras

Rio Dayen(1), minha ama de leite

Desenho de Yuan Zhi Qing © Copyright

Rio Dayen, minha ama de leite!

O nome dela é o mesmo da aldeia onde nasceu.

Desposada ainda menina,

Tornou-se, mais tarde, a minha ama de leite.

Sou filho de um proprietário de terras,

E filho também da Rio Dayen.

Para manter a família, ela amamentou-me,

Nutriu-me com o leite do seu peito.

Ó Rio Dayen, minha ama de leite!

Ó Rio Dayen, neste dia de neve, penso em ti!

Penso no teu túmulo coberto de ervas murchas debaixo da nevada,

Penso na tua choupana fechada com o telheiro de palha já seca.

Penso no teu quintal pequenino hipotecado,

Penso nos teus bancos de pedra em frente da porta, musgosos

Ó Rio Dayen, neste dia de neve, penso em ti!

Apertando-me contra o peito, acaricias-me com as tuas mãos enormes!

Depois de teres acendido a lareira,

Depois de teres sacudido as cinzas do avental,

Depois de teres o arroz bem cozido,

Depois de teres posto, sobre a mesa suja, uma tijela escura, cheia de pasta de soja,

Depois de teres remendado as roupas dos teus filhos, rasgadas pelas silvas dos montes,

Depois de teres tratado a mão do teu filho mais novo, ferida por um golpe de machado,

Depois de teres catado, um a um, todos os piolhos das camisas deles,

Depois de teres apanhado o primeiro ovo do dia,

Voltas a apertar-me contra o peito e a acariciar-me com as tuas mãos enormes.

Eu, filho dum proprietário de terras,

Voltei para a casa dos meus pais

Quando já não tinhas mais leite para me amamentar.

Ó Rio Dayen, porque choras?

Eu, ao regressar à casa paterna,

Toco os movéis encarnados esculpidos em laca,

Tacteio as molduras douradas da cama dos meus pais,

Fito, com ar de idiota, uma tábua pendurada na cortina da cama, sem lhe perceber a inscrição:

"Prazer, de Acordo com a Lei Celestial".

Mexo nos botões de nácar e de seda das roupas usadas,

Fixo o olhar na minha irmã mais nova, que ainda desconhecia, ao colo da mãe,

Sento-me num tamborete envernizado, que uma braseira aquece,

Como arroz do melhor,

Mas, ai de mim! sinto-me tímido e acanhado;

Fico confuso, ao enfrentar esta realidade: sou um estranho

em casa dos meus próprios pais!

Rio Dayen, quando o leite lhe secou,

Começou a trabalhar com os braços com que me abraçara, para ganhar a vida.

Sorrindo, lava-nos as roupas,

Sorrindo, vai ao lago gelado fora da aldeia, de cesta na mão,

Sorrindo, corta nabos cobertos de gelo,

Sorrindo, prepara farelo de trigo para dar de comer aos porcos,

Sorrindo, atiça o fogo para refogar o guisado de porco,

Sorrindo, leva uma joeira para pôr a secar cereais e sojas.

Rio Dayen, quando o leite lhe secou,

Começou a trabalhar com os braços com que me abraçara, para ganhar a vida.

Rio Dayen adora o menino que amamentou.

Durante as festas, não tem mãos a medir a preparar-lhe açúcar de arroz,

Para que ele a vá visitar com frequência, às ocultas dos pais;

Para que ele chegue ao pé dela e lhe chame "mãe".

Rio Dayen afixou junto à lareira a imagem dum general que ela mesma pintou com cores berrantes.

Diante dos vizinhos, Rio Dayen não deixa de gabar o seu menino.

Rio Dayen teve um sonho inesquecível:

Sonhou com as bodas do seu menino.

Ela estava sentada numa sala, profusamente iluminada e luxuosamente decorada,

E a noiva, linda e meiga, chamava-lhe carinhosamente "mãe".

Oh como Rio Dayen adora o seu menino!

Rio Dayen morreu sem ver realizado o seu sonho.

Na agonia, não teve o seu menino junto de si.

No derradeiro instante, o marido que a injuriava e lhe batia verteu copiosas lágrimas,

E os cinco filhos, desfizeram-se em pranto:

Mas o nome que murmurou antes de morrer foi o do seu menino.

Ó Rio Dayen, que estás nas mãos de Deus,

O teu menino não pôde assistir ao teu último suspiro!

Rio Dayen, com as lágrimas nos olhos, foi para uma vida melhor.

Com quarenta anos de humilhações,

Com os inúmeros sofrimentos de uma escrava,

Num caixão miserável, coberto de feixes de palha de arroz,

Enterrada numa cova pouco funda,

Com um punhado de cinzas de papel de estanho, (2)

Rio Dayen, com os olhos rasos de lágrimas, partiu para o céu.

Mas o que a Rio Dayen ignora é que:

O bêbado do marido está já a morder o pó donde foi arrancado,

O filho mais velho tornou-se bandido,

O segundo morreu na guerra,

Os restantes

Sobrevivem, maltratados pelos mestres e os patrões.

E eu escrevo maldições contra este mundo injusto.

Voltarei lá um dia, depois de deambular durante longos anos

Através das montanhas e através dos campos,

Ao encontro dos meus irmãos colaços,

Com quem hoje me identifico melhor

Ó Rio Dayen, no teu profundo sono eterno,

Nada disto sabes!

Ó Rio Dayen, agora o teu menino está encarcerado.

E é na prisão que te compõe um hino, um hino

Dedicado à tua alma branca sob a terra amarela,

Aos braços com que o abraçavas,

Aos lábios com que o beijavas,

Ao teu rosto meigo e moreno,

Ao peito com que o alimentavas,

Aos teus filhos, meus irmãos colaços,

A tudo sobre a face da Terra,

A todas as amas como a Rio Dayen com os seus filhos de leite.

Dedicado à Rio Dayen que me criou como se fosse o seu filho de sangue.

Ó Rio Dayen,

Sou teu filho,

Filho que se criou com o teu leite.

Respeito-te,

Amo-te!

Na manhã de neve do dia 14 de Janeiro de 1933

Ilustração de Carlos Marreiros ©Copyright

(1)Rio Dayen não é nome de rio. É o nome da ama de leite de Ai Qing.

(2)Papel que se queima como papel moeda para os mortos.

desde a p. 61
até a p.