Ensaios

Da Chinae da Sabedoria chinesa

António Graça Abreu

São mil e cinquenta milhões de seres humanos, desequilibradamente espalhados por um imenso território com o tamanho da Europa. Constituem a mais paradoxal de todas as nações, igual a si própria há 4 mil anos-uma civilização única, coerente, apaixonante.

São os últimos sobreviventes das grandes civilizações agrárias da Idade Antiga. O Egipto, a Mesopotâmia, os impérios da América Central, tudo se esfumou na voragem dos séculos. A China permaneceu, preservou sua identidade e cultura, seus costumes e tradições populares, sua poesia, sua História.

Tal como os egípcios, os Chineses inven-taram uma escrita complexa que utiliza símbolos pictográficos e ideográficos. Mas se os hieroglifos do tempo dos faraós são relíquias de museu, os caracteres chineses formam, ainda hoje, a mais surpreendente e espantosa representação gráfica de uma língua. Também o elemento aglutinador fundamental do monolito cultural chinês.

A população da China aumenta, por ano, em 12 milhões de pessoas, tanto como os habitantes da Austrália. Os Chineses são mais numerosos do que norte-americanos, soviéticos e europeus todos juntos; no entanto o seu produto nacional bruto é inferior ao da França. Há cento e oitenta anos Napoleão lançou o grito: "Quando a China despertar, o mundo tremerá!"-Em 1974, Alain Peyrefitte aproveitou a frase para título de um livro, best-seller no hemisfério ocidental. Mas a China, a grande China, apesar de tantos al-voroços, sofrimentos e vigílias, continua sonolen-tamente o seu percurso pela roda da História.

É um país paradoxal, repito. Com um ren-dimento per capita de 450 dólares, inferior ao de muitos países considerados pobres, lança e recu-pera satélites artificiais, possui bombas atómicas desde 1961, é senhora de mísseis balísticos inter-continentais.

Orgulha-se de possuir a mais vasta e volu-mosa literatura jamais escrita por qualquer povo e, no entanto, no século XX apenas produziu um admirável e grande escritor, de seu nome Lu Xun. A Poesia Completa da Dinastia Tang (Quan Tang Shi) - época de ouro da poesia chinesa, de 618 a 907 da nossa era - é uma antologia composta por 48 900 poemas de 2 300 autores diferentes; contudo na China actual o analfabetismo atinge ainda cerca de 30% da população.

Os Chineses que nunca foram um povo reli-gioso - pesem embora os vinte e cinco séculos de confucionismo como doutrina oficial do Estado -, endeusaram Mao Zedong durante os dez anos da catastrófica Revolução Cultural Proletária e logo depois distanciaram-se, sem grande mágoa, da majestosa figura do velho "timoneiro".

Os Chineses que sempre gostaram do sos-sego, do conforto pessoal, da boa comida, dos prazeres da vida, continuam a ser capazes de se submeter aos trabalhos mais árduos e às mais duras privações. «Sofrem a sorrir» observava Fer-reira de Castro, há quarenta anos, em "A Volta ao Mundo".

A China, que tem algumas das mais belas mulheres do mundo, tentou, até há muito pouco tempo, por via de uma radical moralidade, apresentá-las deliberadamente como as mais feias.

A China é um oceano de contradições no qual nós, ocidentais, navegamos sempre com perigo de naufrágio. Por isso é tão difícil viajar por dentro deste país e deste povo, e também por isso são comuns tremendos erros de análise em re-lação às realidades chinesas.

Na China diz-se: "O estrangeiro que vem ao nosso país durante quinze dias escreve um livro, o que fica uns meses escreve alguns artigos para os jornais, o que permanece mais tempo parte a caneta e nunca mais escreve uma linha."

Sei, por experiência própria, que conhecer a China ao longo dos anos, produz um ador-mecimento da vontade, um torpor suave que mar-tiriza e dá prazer. A China, terra de gente di-ferente de todos os outros povos, entra em nós, invade-nos e começa a ser difícil falar ou escrever sobre os Chineses, porque os conhecemos melhor, ou seja, ignoramos muito mais acerca deles.

Goethe, que sempre foi um apaixonado pela civilização chinesa, glosou o antigo princípio de Sócrates "quanto mais sei, mais sei que nada sei" e escreveu "O homem só sabe quando sabe que pouco sabe. Com o conhecimento cresce a dúvida". E Confúcio, que também muito sabia das coisas da vida e do seu povo, disse, seis séculos antes de Cristo: "Se conheces, actua como homem que conhece. Se não conheces, reconhece que não conheces; isso é saber."

São sábios os velhos Chineses, uma sabedoria alicerçada em cinco mil anos de História e de histórias. São inteligentes os velhos Chineses, uma inteligência adquirida ao longo de muitos e muitos séculos dura e intensamente vividos.

O espantoso Lie Zi (450-376 A. C.) que, segundo a tradição tauista era capaz de cavalgar ventos e nuvens, diz:

"Dois meninos viviam junto ao mar e amavam as gaivotas. Todas as manhãs brincavam no meio dos pássaros e muitas outras gaivotas, às centenas, poisavam junto deles. Um dia o pai disse-lhes:

- Sei que brincam com as gaivotas. Apanhem algumas e tragam-mas. Também me quero divertir.

No dia seguinte, os meninos chegaram à orla do mar, as gaivotas pairaram no ar e não pousaram na praia.

Em conclusão, o melhor de todos os discur-sos é o que não utiliza palavras, a actuação per-feita é actuar sem agir, a sabedoria do mais sábio dos sábios é sempre pouco profunda."

Outra história de Lie Zi:

"Um camponês não sabia onde estava o seu machado. Suspeitou então que o filho do vizinho lho havia roubado e começou a observar o rapaz, com atenção. Tinha exactamente os modos de um ladrão de machados, as palavras que pronunciava soavam a ladrão de machados, todo o seu compor-tamento e atitudes eram as de alguém que tinha roubado um machado.

Mas, de repente, ao cavar a terra, o cam-ponês encontrou o seu machado.

No dia seguinte, o homem olhou de novo para o filho do vizinho. Reparou então que os modos, as palavras, o comportamento e as atitudes do rapaz não eram, de modo algum, as de um ladrão de machados."

A sabedoria chinesa tem, quase sempre, es-capado à inteligência ocidental. Ocidente e Oriente dificilmente se interpenetram, olham-se ora com sobranceria, ora com desconfiança, e so-bretudo ignoram-se.

Vou citar um curioso exemplo recente:

Em 1970, no seu "Testamento Final", Nikita Kruchtchev escrevia, a propósito de Mao Zedong: "Eu nunca tinha a certeza de entender o que ele queria dizer. Pensava, nessa altura, que isso se re-lacionava com certos aspectos da mentalidade chinesa e com a maneira de pensar dos Chineses. Algumas declarações de Mao chocavam-me pela sua simplicidade, outras pela sua complexidade. Nunca soube com segurança qual a posição de Mao. É impossível, com os Chineses, saber em que lei se vive. "

É verdade que pensamento russo e pen-samento chinês não se entendem, desde sempre. O conflito sino-soviético, iniciado em finais dos anos cinquenta, foi, para além das divergências políticas, um confronto de culturas e, por estranho que pareça em dois países comunistas, um conflito entre concepções do mundo.

Há alguns anos atrás, em Pequim, um amigo meu chinês contou-me um pequeno diálogo travado, em 1961, entre Kruchtchev e Zhou Enlai, então primeiro-ministro da China. As relações entre os dois países eram já bastante más e, depois de uma discussão azeda sobre questões de natureza política, Kruchtchev resolveu ser"sim-pático" para Zhou Enlai e disse-lhe: "Apesar das divergências, nós temos muita coisa em comum. Acreditamos no marxismo, você é primeiro-ministro, eu também, e somos ambos res- ponsáveis pelo Governo de duas das maiores nações do mundo. Mas existe uma grande di-ferença entre nós, eu sou filho de camponeses e você é filho de mandarins." Zhou Enlai, que, de facto, não era filho mas neto de mandarins, sorriu e respondeu: "Desculpe, isso não é uma diferença, é mais uma semelhança. Significa que somos ambos traidores." "Traidores?!... Como?...", per-guntou Kruchtchev. "Bem, o senhor traíu os cam-poneses e eu traí os mandarins."

A propósito de política e de políticos, o filósofo Han Feizi escreveu 240 anos antes do nas-cimento de Cristo:

"Podeis esperar, em geral, encontrar cerca de dez homens honestos em cada país, o que é uma média excelente. Mas o Estado deve contar uma centena de cargos. Daí resultar que tendes mais postos oficiais do que homens de bem para ocupá-los, o que dá dez homens honestos e noventa patifes para preencher todos esses lu-gares. Pode-se, portanto, apostar que o resultado será a desordem generalizada, mais do que um governo organizado. Eis porque o soberano sen-sato acredita num sistema e não nas capacidades individuais, tem fé num método e desconfia da probidade pessoal."

Han Feizi foi o maior teórico da escola Fa Jia, conhecida no Ocidente como o Legismo. Mor-reria envenenado numa prisão, talvez por ter es-quecido uma das exemplares citações de Confúcio "o homem honesto diz a verdade, só o tolo diz a verdade toda." De qualquer modo, os seus prin-cípios exerceriam grande influência na China moderna e no próprio Mao Zedong.

Zhuang Zi (369-286 A. C.), o maior dos pensadores tauistas, um dos grandes poetas da liberdade, conta-nos esta história:

"Estava Zhuang Zi pescando na margem do rio quando chegaram junto dele dois mandarins enviados pelo príncipe de Zhou.

- Nosso príncipe deseja ver-vos e nomear-- vos primeiro-ministro de reino de Zhou.

Zhuang Zi continuou a pescar e, sem voltar a cabeça, respondeu:

- Ouvi dizer que no reino de Zhou existe uma tartaruga sagrada que morreu há muitos, muitos anos. O príncipe conserva essa tartaruga fechada no templo dos antepassados. Ora a tar-taruga preferiria estar morta e ter os seus restos venerados, ou preferiria estar viva, abanando o rabo na lama dos pântanos?

- Preferiria estar viva, abanando o rabo nalama dos pântanos - responderam os mandarins.

- Podem ir embora, - disse Zhuang Zi. Eu também prefiro abanar o rabo na lama dos pân-tanos."

Na China, mais do que em qualquer outro país do mundo, vemos como se manifesta, século após século, a continuidade de ideias, tradições, usos e costumes.

Mao Zedong, que conhecia bem o alicerce cultural da sua pátria, citava por vezes os velhos filósofos e as histórias da tradição popular, em proveito da ideologia que defendia. Eis como, em 1945, Mao fala de uma delas:

"Na China Antiga havia uma fábula in-titulada 'Como Yukong removeu as Montanhas'. Essa fábula conta que, em tempos que já lá vão, vivia no norte da China um-velho chamado Yukong. Do lado sul, em frente da sua casa, en-contravam-se duas grandes montanhas, Taihang e Wangwu, que lhe impediam a passagem. Di-rigindo os seus filhos, Yukong decidiu arrasar as montanhas a golpes de picareta. Vendo-os em tal trabalho, um outro velho chamado Chezou, de-satou a rir e disse-lhes: 'Que tolice! Sozinhos, vocês nunca conseguirão arrasar essas duas mon-tanhas'. Yukong respondeu: 'Quando eu morrer ficarão os meus filhos; quando, por sua vez, eles morrerem, ficarão os meus netos, e assim se sucederão ininterruptamente as gerações. Quanto a essas duas montanhas, por muito altas que sejam, já não podem crescer mais e, a cada golpe de picareta, vão-se tornando mais pequenas. Por-que razão não poderemos arrasá-las?' E Yukong continuou, inabalável, a escavar dia após dia, o que comoveu o deus do céu que enviou dois anjos à Terra que carregaram e levaram as duas mon-tanhas. Hoje há também duas montanhas que pesam sobre o povo chinês: o imperialismo e o feudalismo. Desde há muito que o Partido Co-munista da China decidiu arrasá-las. Nós devemos ser perseverantes e trabalhar sem descanso, pois também podemos comover o deus do céu. Para nós, o deus do céu não é outro senão a massa do povo chinês."

Uma das características do pensamento chinês é a unidade dos contrários, a complemen-taridade e permanente transformação dos opos-tos, o movimento e a dialéctica, oanular das con-tradições e o imediato aparecimento de novas con-tradições sempre insolúveis porque, ao serem so-lucionadas, dão origem a outras novas con-tradições.

No princípio do século XX, o filósofo Chen Lifu escrevia coisas como estas: "Como os homens não se parecem, as suas analogias caracterizam-se por sete períodos. No primeiro, o forte tolera o fraco; no segundo, o forte despreza o fraco; no terceiro, o forte tem piedade do fraco; no quarto, o forte escraviza o fraco; no quinto, o forte torna--se fraco; no sexto, o fraco protege o forte; no sétimo, o fraco e o forte confundem-se."

Regressando a Zhuang Zi e ao seu edifício da sabedoria tauista, lemos:

"O universo com tal não é expressão do absoluto. Tudo muda, ao longo dos tempos, no decurso da evolução, de acordo com o que começa e o que acaba. A ciência ensina que as coisas mudam de aspecto e que o absoluto transforma-se em relativo. Por isso, esbate-se a distância entre grande e pequeno, entre o que vem antes e o que vem depois numa cadeia que não tem fim".

E mais adiante, no seu Livro de Zhuang Zi, obra ainda não traduzida para português:

"Aqueles que afirmam existir o correcto e o justo sem o seu correlativo, o incorrecto e o injusto, ou o bom governo sem o seu correlativo, o mau governo, não compreendem os grandes princípios do universo nem a essência de toda a criação. Como se pode falar da existência do Céu sem se referir a existência da Terra, ou do prin-cípio negativo sem se referir o princípio positivo? No entanto, ainda há pessoas que continuam estas intermináveis discussões. Essas pessoas ou são loucas ou são ingénuas."

O estatismo das civilizações orientais tem muito a ver com o carácter cíclico do seu pen-samento. Também com a sua sabedoria, bem di-ferente da nossa ocidental, tão ligada à velha lógica grega e ao aparente dinamismo cristão.

Eis mais uma antiquíssima história do tauísmo chinês:

"Um velho e pobre camponês possuía um cavalo e o animal fugiu. À noite, os vizinhos vie-ram manifestar o seu pesar, dizendo-lhe que ele tivera muito pouca sorte. O camponês respondeu simplesmente: 'Talvez'. No dia seguinte, o cavalo regressou acompanhado de seis éguas selvagens. À noite, os vizinhos vieram felicitar o camponês, dizendo-lhe que ele tivera muita sorte. O homem respondeu simplesmente: 'Talvez'. No dia seguinte, o filho do camponês montou uma das éguas selvagens, mas caiu e partiu uma perna. À noite, os vizinhos vieram lamentar a pouca sorte do camponês que respondeu simplesmente: 'Tal-vez. No dia seguinte, chegaram à aldeia os fun- cionários do governo reesponsáveis pelo re-crutamento de j ovens para o exército. O filho do camponês não seguiu para os campos de batalha porque tinha uma perna partida. À noite, os vizi-nhos vieram felicitá-lo uma vez mais e o velho respondeu simplesmente: 'Talvez.'

Para concluir, o apólogo de Bei Yujing, que tem a bonita idade de catorze séculos:

"Uma vez viajavam juntos um monge, um bandido, um pintor, um avarento e um sábio. Caiu a noite e albergaram-se numa gruta.

- Não se encontraria melhor lugar para um ermitério - exclamou o monge.

- Que óptimo refúgio para salteadores -disse o bandido.

- A luz dos archotes, estesjogos de sombras, que extraordinários motivos para o pincel! - mur-murou por sua vez o pintor.

- Mas que local excelente para se esconder um tesouro! - observou o avarento.

O sábio escutou em silêncio e, por fim, disse:

-Que gruta maravilhosa!"

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