Crónica-Macaense

A minha primeira comunhão

Henrique de Senna Fernandes

Ilustração de Mio Pang Fei Copyright

Nos anos 30 e até pouco antes do início da Guerra do Pacífico (1941-1945), a soleníssima cerimonia da Primeira Comunhão realizava-se anualmente no primeiro domingo de Dezembro. Era na Sé Catedral, reunindo os primeiros comungantes de todas as freguezias, quase uma centena ou mais de rapazes e meninas, todos trajados a preceito, eles de preto ou de branco com o laço obrigatórecno braço, elas, sempre de branco, com o véu e vestido comprido que lembravam noivas pequeninas.

Nunca me esquecerei da minha Primeira Comunhão, em 5 de Dezembro de 1934, tinha eu onze anos. É claro que muitos pormenores se apagaram da memória, mas o que ficou chega para justificar esta narrativa.

Tudo começou mais ou menos em fins de Setembro ou nos princípios de Outubro desse ano. A minha Avó Condessa veio a descobrir horrorizada que nem eu nem o meu irmão mais velho, então de doze anos e já aluno do 1 Ano do Liceu, tínhamos feito a Comu-nhão, quando o costume do tempo era que os meninos de sete anos já se candidatavam para o evento.

Foi um reboliço lá por casa, uma família de tradições católicas faltosa dos seus deveres para com Deus! Os meus pais, embaraçados, tiveram que declarar, compungidos, que os seus rapazes nem sequer fre-quentavam a catequese-uma obri-gação devota também muito ar-reigada à tradição macaense -, des-conhecedores praticamente do catecismo.

Abalado pelas recriminações e sacudido pela consciência de culpa, o meu pai prometeu que daria uma solução. E foi drástico. Não mais adiamento para o próximo ano, por-que então seríamos uns gigantes no meio do resto da criançada, o que seria extremamente embaraçoso.

Matuta aqui, pondera acolá, o meu pai procurou, logo que pôde, o amigo que o vira garoto, o estimado Pe. António Maria de Morais Sar- mento, mais conhecido simples-mente por Pe. Sarmento, uma das figuras profundamente caracterís-ticas do seu tempo em Macau e um sábio que Deus tenha em santa memória.

Meu irmão e eu estávamos pre-sentes quando o meu pai expôs a contingência em que nos víamos apertados. O Pe. Sarmento cruzou as mãos ao peito, mal equilibrando o eterno guarda-chuva e o jornal de-baixo do sovaco, e ergueu os olhos ao céu, numa atitude que lhe era peculiar, ao mesmo tempo que as bochechas vermelhuscas lhe tre-miam.

Não me lembro se estava indignado com a enormidade. O certo é que, com a voz roufenha e pausada, censurou o desleixo que trazia dois garotos em pecado. O meu pai, que foi sempre um po`co de susceptibilidades, submeteu-se hu-milde à evangélica admoestação, e pediu ao bom do reverendo que desencantasse um desfecho favorável.

O Pe. Sarmento franziu a testa, objectou que era muito tarde para que ingressássemos na catequese, mas depois ficou a olhar para nós. Sempre tinha de descobrir um caminho para nos levar, a mim e ao meu irmão, ao aprisco das almas eleitas. Depois, era muito amigo de meu pai e nunca deixara de lhe per-doar as faltas.

-Manda-me os meninos para a minha casa amanhã, às três da tarde. Vamos a ver o que se pode fazer.

Assim foi. No dia seguinte, pon- tualmente, às três da tarde, atravessando o jardinzito, tocávamos a campainha da residên-cia indicada, na Avenida Conselheiro Ferreira de Almeida. Confesso que la apreensivo, mesmo atemorizado. Para a minha estatura de então, o Pe. Sarmento parecia muito avantajado, com o carão severo, sem um lampejo de simpatia. Mas que remédio senão ir para a frente, já que haveria em casa as inevitáveis perguntas dos pais e da avó?

Não me recordo de quem nos recebeu e depois nos introduziu num aposento do rés-do-ch鈕 que cer-tamente era a biblioteca e gabinete de trabalho, onde ficámos à espera que o padre terminasse a sua sesta.

Não tínhamos aparentemente um lugar para nos sentar. Os livros amontoavam-se a trouxe-mouxe, sem ordem, espalhados na secre-tária, nos armários, nas cadeiras e no chão, a maioria já encimada por uma fina camada de poeira. Havia um cheiro a bafio e a coisa velha. As janelas fechadas, com poucas per-sianas entreabertas, não afugen-tavam a penumbra triste e austera que imperava. Mas que montes de sabedoria achavam-se naqueles li-vros carcomidos pela traça, pelo abandono, desordem e desmazelo! O Pe. Sarmento tinha fama de sábio e eu agora encontrava-me plantado na fonte do seu imenso saber, re-presentado por todos aqueles vo-lumes compactos, farfalhudos e de impressionante facúndia, com títulos arrevesados, muitos dos quais em latim, em francês e outras línguas.

O meu irmão e eu escassas palavras trocávamos, demasiado emudecidos com o ambiente. E o temor reverencial mais aumentou, nessa espera que não acabava.

Quando apareceu, ainda os olhos se injectavam dos últimos res-quícios de sono. Era robusto, atar-racado e tresandava a saúde. Emanava dele um cheiro a alho e a batina usada, de muitos dias por lavar. De cada vez que sacudia as melenas grisalhas, caía-lhe sobre os ombros um fino polvilho de caspa.

Cumprimentou-nos, sentou-se pesadamente numa cadeira, depois de afastar a pilha de livros da se-cretária e da própria cadeira, man-dando-nos sentar noutras cadeiras gastas e desconjuntadas, do cimo das quais também tirámos livros.

Após o último bocejo, repetiu as censuras da véspera e disse que vínhamos algo tarde. Mas ia fazer o possael. Não podíamos saber tudo, porém ia ensinar o essencial para estarmos aptos para receber a graça de Deus. Folheou dis-traidamente os nossos livros de catecismo, novinhos, ainda sem mácula, e não pareceu impressio-nar-se. E principiou por dizer:

-O catecismo não é para ser decorado, mas para ser sentido e compreendido.

E começou. Aquele aposento era o mais impróprio para sala de aulas, pelo seu patente desconforto. E a voz roufenha do professor não augurava senão dissertações monótonas que entrariam por um ouvido para sair por outro, sem nada ficar retido na mente. Mas enganei--me, felizmente. O Pe. Sarmento sabia o que queria e logo-revelou mestria na arte de comunicar.

Não posso dizer, pela distân-cia de meio século, qual o método que empregou. O que sei é que utilizava uma linguagem chã, aces-sível à nossa idade e acom-panhámos as suas lições com viva atenção, naquele e noutros dias que se seguiram. Consciente do interesse denunciado pelos seus pupilos entu-siasmou-se e, tenho a certeza, aquilo que seria apenas um frete de amigo, transformou-se num prazer. Nós ganhámos com isso. A cada gesto mais eloquente, esparzia-se a neve da caspa, a cadeira rangia sob o volume do seu corpo entroncado e a ténue poeira dos livros subia.

Lembro-me, no entanto, dal-guns assuntos. Explicou-nos o Decálogo, o mistério da Santíssima Trindade, demorou-se nas orações, des-crevendo o significado de cada frase, como por exemplo o Pai Nosso. Também se debruçou sobre os Pecados Mortais e deu outros exemplos. Só passou muito per-functoriamente sobre o pecado da Luxúria que apenas mencionou pela rama, sem mais adiantar.

Recordo-me disto, justamente porque não explicando, nem eu co-nhecendo o seu real significado, tomei a palavra como sinónimo de Luxo, induzindo a minha ignorância a cometer um deslize.

Ao mesmo tempo que ia ensi-nando, ofereceu a cada um de nós um exemplar da Bíblia contada a adolescentes, ilustrada em xilogra-vura, de leitura fácil e sugestiva, duma edição hoje desaparecida que para mim foi a melhor Bíblia des-tinada a gente nova que apareceu em português, com o mérito de nem sequer ser luxuosa.

Por ali, familiarizei-me com as terras e nomes bíblicos. Jericó, Tiberíades, Samaria e Galileia pro-vocam em mim estranhas nostalgias, sem nunca as ter visto. Vivi a história de David e Golias, a de Ester e a de Rute, a de Sansão e Dalila. Com-preendi melhor a justiça de Salomão, vibrei com Daniel no meio dos leões e pungi-me com os setenta anos do cativeiro de Babilónia. Depois, no Novo Tes-tamento, as Parábolas de Jesus, os Milagres, a Crucificação. Leituras que eu fazia como se devorasse um romance.

O Pe. Sarmento foi inexcedível nas Parábolas, pois ensinava para a inteligência e para o coração. Como-veu-me com o drama do Bom La-drão. Lembro-me da sua voz quando se emocionava, quebrando o tom monocórdico. E também das suas mãos, ora encerradas para ficar apenas com o indicador apontado, ora espalmadas, ora ainda tecendo na ar invisíveis arabescos.

Já no fim, quando chegámos à parte crucial da Confissão, ele insistiu muito no valor e na importân-cia do exame de consciência, ponto culminante para merecermos a Comunhão. Então timidamente, perguntei-lhe:

- Se me esquecer das pala-vras do Acto de Contr靱'cão, tal como aprendi do livro, como vai ser?

- Reza então por tuas pró-prias palavras, pede perdão a Deus dos pecados e mostra um sincero arrependimento. O que vale é a intenção com que o dizes e sentes.

No último dia mostrou-se sor-ridente, sem a habitual austeridade. Tinha conseguido que fôssemos admitidos para a Primeira Comu-nhão, esforçara-se para nos pre-parar e estava contente com o trabalho. Deu-nos um chorrilho de conselhos, falou-nos dos caminhos do Bem e do Mal e rematou desejando-nos felicidades. Depois, encasulou-se na reserva, sem mais familiaridades.

Guardei das lições do Pe. Sar-mento uma recordação indelével e carinhosa. Pena é que fosse por tão pouco tempo, dois meses no máximo. Nunca, depois, tive ensejo de novamente ser seu pupilo. Teria aprendido muito.

Também não pareceu, daí para diante, lembrar-se de mim, facto que me doeu muito. Quando nos cruzávamos na rua, respondia ao meu cumprimento mas nunca parava para me perguntar fosse o que fosse. Eu, na minha timidez e no meu temor reverencial, não me atrevia a interromper-lhe as cogitações.

Ainda estou a vê-lo, entron-cado e gordo, a caminhar em passo pausado e lento, o chapéu de feltro preto enterrado na cabeça, o eterno guarda-chuva debaixo do sovaco e o jornal quase sempre aberto, fosse dia ou fosse noite, um hábito que lhe marcava um perfil singularmente característico, pois espantava toda a gente como era possível ler na escuridão.

Os três dias de Retiro obri-gatório antes da Primeira Comunhão realizaram-se, como era de longa tradição, na Casa de Beneficência das Irmãs Canos-sianas, no Largo de Camões, no edifício enorme que também era escola e convento, e que desapareceu, dum dia para o outro, sob o camartelo do progresso, com grande choque para a gente do bairro e para a população por-tuguesa de Macau.

Éramos quatro - as minhas duas irmãs mais novas também faziam na mesma ocasião a Primeira Comunhão - os que partimos, manhã cedo, de automóvel, depois de escutar as recomendações dos pais, emocionados com a gravidade da hora.

Chegados à Casa de Beneficência, as minhas irmãs separaram-se imediatamente de nós, os rapazes. Lá tinham as suas salas, com outras meninas, e só nos juntávamos quando íamos para a capela do convento, segregados os sexos, cada um na sua ala.

Não posso descrever por ordem cronológica, o que foram aqueles três dias. O tempo não per-doa e a memória falha. Ficaram, no entanto, outros borrões vivos a-que passo a referir-me.

Tínhamos por orientadores do Retiro, o Pe. João Clímaco, um ilustre filho-da-terra, e o Pe. José António Monteiro, um homem enorme e barbudo de Freixo-de--Espada- Cinta que metia respeito, mas que no fundo era uma alma tão bondosa e tão cândida - esta foi a minha impressão - que tratava os garotos como verdadeiras crian-cinhas, todos pela mesma idade.

O meu irmão e eu éramos dos mais velhos. O que nós víamos no Retiro era uma petizada da ia à 3a classes da Primária, alguns tão novitos que não deviam ter uma noção muito perfeita do que ali estavam a fazer. Imaginem se demorássemos mais um ano! No princípio estranhando o ambiente, acabámos por procurar os mais espigadotes, tão embaraçados com nós. Era tudo tão diferente do rés--do-chão da casa do Pe. Sarmento.,

As salas onde fazíamos o Retiro, eram nuas e frias, grandes e escuras. Vagamente me lembro de corredores compridos onde deslizavam em silêncio e reco-lhimento vultos embuçados. de freiras. Deslocando-nos daqui para ali, surpreendíamos das janelas interiores o claustro e o pátio onde brincavam as educandas da Casa de Beneficência, pobres raparigas abandonadas e, notória parte, engeitadas e socorridas da rua pelo asilo da Santa Infância, a cargo das mesmas Madres. Víamo-las trajadas dos seus uniformes desgraciosos, de cor cinzenta. No entanto, muitas pareciam felizes, correndo ou jogando a "tapa-avião" ou a "tapa simples", jogos de infância tipicamente macaenses e hoje deaparecidos.

O almoço era trazido de casa --não esqueço o prato de rins em molho de açafrão que tão bem con-fecionava a minha cozinheira - e tanto na refeição como nos intervalos, havia um autêntico pan-demónio. Evidentemente que era difícil conter uma rapaziada irrequieta, estuante de sangue azougado. As madres encarregadas de nos vigiar cansavam-se de gritar. Só sossegávamos quando apareciam os padres, sobretudo o Pe. Clímaco. Não tinha o corpanzão do Pe. Monteiro, mas não era para brincadeiras e impunha uma estrita disciplina.

Os olhinhos atrás dos óculos de míope fuzilavam e, ao pregar, as suas mãos pareciam dardos. Quando falava do Pecado e dos nefandos caminhos que para ele conduziam e as suas consequências terríveis, pesava um silêncio gelado. Quando evocava o Inferno, descrevia-o com cores tão realistas que pelos ouvintes perpassava um calafrio de medo. A nossa imaginação trabalhava, estampavam-se-nos os caldeirões a borbulhar cheios de pez, os corpos das almas penadas a torcerem-se de dores, aos ais e aos uivos e lamentações. Jamais olvidarei as suas palavras, pronunciadas no alto do púlpito da capela do convento, investindo o indicador furibundo:

- No Inferno existem umas chamas pretas, mais pretas que o preto da minha batina.

Tentei reproduzir na mente o que era ser preto mais preto que a batina do padre. O Pe. Sarmento nunca nos dissera tal coisa. Jamais o consegui. O Pe. Clímaco usava dum método que o Pe. Sarmento não aplicava. Estava bem intencionado, queria fazer de nós uns moços tementes a Deus, uns anjos terrenos. Certamente que, naquele momento, éramos todos.

O Pe. Monteiro actuava doutra maneira. Contava-nos histórias da Bíblia que eu já sabia de antemão, milagres de santos que transformava em coisas de maravilhar, num tom como se se dirigisse a pequeninos. Mais tarde repetiu as mesmas narrativas quando foi meu professor de Moral, no 5ō; Ano do Liceu, com a mesma candura, não se apercebendo de que se dirigia a matulões.

Na tarde do segundo dia do Retiro, aprendemos a tomar a hóstia. Como não estava benzida e era um simples ensaio, sentíamo-nos à vontade. Mas logo surgiu a terrífica prevenção.

Não podíamos mordê-la, uma vez benzida, pois representava o Corpo de Cristo. Se o fizéssemos, por descuido ou por qualquer percalço, sofreríamos uma hemorragia letal, o sangue a escoachar pela boca, pelo nariz, pelos ouvidos e poros. Nunca nos esquecêssemos disto! E deram--nos exemplos horripilantes.

No ensaio, engoli duas hóstias que escorregaram garganta abaixo, limpamente, sem novidade alguma. Apeteceu-me experimentar mais, mas não tive coragem de solicitar à madre que via esgotar-se o pacote por outras mãos, mais afoitas e menos cerimoniosas, que levavam as hóstias à boca como se fossem bolachas.

A tarde do último dia do Retiro foi dedicada à Confissão, a primeira que praticava, ajoelhado humildemente diante do padre confessor. No exame de consciência, eu tinha enumerado os pecados cometidos, um rol que revia amiúde, não fosse escapar algum. Contudo, eu tremia quando me dobrei diante do Pe. Ramiro Branco que já me conhecia, por ser também amigo de meu pai. Pálido e magro, possuía um olhar animador que me acalmou. E tudo se seguiu, conforme tinha aprendido.

Com zelo fervoroso, desfiei os pecados perpetrados até os meus onze anos. Admiti ter praticado todos os pecados mortais, excepto um. O da luxúria. Como atrás disse e o Pe. Sarmento não me esclarecera, eu confundia a palavra com "luxo".

Ora eu nunca vivi em luxo nem me gabara alguma vez de viver em luxo. Os meus companheiros de escola, os melhores, eram até dos mais pobres. Não ia confessar uma coisa que não era verdade. Todavia, fiquei com a impressão de que não convencera o Pe. Ramiro. Deconcer-tou-me também ter-me dado para penitência umas escassas Ave--Marias e outros tantos Pai-Nossos quando aguardava por uns túrgidos terços, depois de desenrolado o rosário dos pecados. Na confusão, ao orar o Acto de Contrição, varreram-se-me as palavras que tinha decorado. Então segui o conselho do Pe. Sarmento e pedi perdão, por minhas próprias palavras, com veemência e sincero arrependimento.

No lugar, não fiquei satisfeito. A impressão de que não convencera o Pe. Ramiro persistia. Na véspera tinham-me ensinado que se deixássemos escapar qualquer coisa, poderíamos dirigir-nos pela segunda vez ao padre. Levantei-me e aproximei-me, de novo, do confessionário. O Pe. Ramiro franziu a sobrancelha, estou ainda a vê-lo, um sorriso brando e interrogativo nos lábios. Ajoelhando-me, murmurei precipitadamente:

- Não menti quando disse que não pratiquei o pecado de luxúria. Nunca vivi em luxo.

- Eu sei que não o praticaste. Nem sabes o que isso é - replicou dispensando-me um sorriso mais largo.

Regressei ao meu lugar muito feliz e admirado que o Pe. Ramiro tão bem conhecesse a minha vida. Rezei ungidamente a penitência. Mais tarde, quando descobri a diferença entre as duas palavras, corei de ver-gonha.

- Que grande besta foste!

Durante muito tempo, sempre que me encontrava com o Pe. Ra-miro, alanceava-me um doloroso em-baraço. Ele, naturalmente, es-queceu-se do episódio. Eu nunca mais!

Há quadros que se mantêm na memória para sempre. Ao despedir-me das madres que pacientemente nos tinham aturado nos três dias do Retiro, eu ia com uma sensação de leveza, qualquer coisa de muito inefável acalentando a minha alma. Não estando o au-tomóvel e as irmãs à nossa espera, por qualquer motivo, o meu irmão e eu regressámos para casa a pé, em seráfico silêncio.

Cortámos o Largo de Camões, onde os primeiros vendilhões ambu-lantes da noite anunciavam os seus pregões nostálgicos, percorremos a Rua de S. Paulo onde as grandes casas assobradadas meditavam, no calmo cair da tarde, sob o embalo sussurrante das árvores frutíferas dos quintais. No poente, os rubros do crepúsculo 靚cendiavam a lomba da Lapa. Atravessámos mais abaixo a Rua da Palha, na berma do Bazar, com o seu brando movimento à hora do jantar, orçámos para a esquerda na Rua de S. Domingos e passámos, pouco depois, defronte do Capitol, então o melhor e o mais chique cinema de Macau.

Como nos tivessem apontado, numa constante, que o cinema era uma das fontes vis dos pecados, nem sequer nos atrevemos a olhar para a fachada. Mas eu sabia qual o filme que então se exibia. "Twenty Millions Sweethearts", com Dick Powell e Nancy Carroll, um filme musical de que todos falavam, com canções lin-díssimas na boca também de todos, e cuja popularidade se estendeu para além dos "assaltos" e bailes car-navalescos do ano seguinte. Ia per-der o filme e é certo que nunca mais tive a oportunidade de vê-lo. Mas naquele solene momento, eu dis-punha-me a sacrificar a predilecção que sempre tive pelo cinema, para estar de bem com Deus e imune dos pecados nefandos.

Passado o Capitol, dobrámos a Travessa dos Anjos e chegámos ao sossego da Rua de Sta. Clara, onde criadas retornavam com meninos do passeio, tarde. Não fazia frio, o verão de S. Martinho prolongara-se de-masiado. Em seguida, ascendemos a encosta do jardim de S. Francisco, ladeámos o Quartel e estávamos em casa, na Estrada de S. Francisco.

Ao entrarmos, o cheiro de pitéus, de bolos e pudins, numa mis-tura deliciosa que enternecia o es-tômago e deleitava a boca, dominava tudo. Porque me sentia todo angeli-cal, resisti ao hábito que ainda hoje tenho de ir à cozinha e surripiar aqui e ali uns bocados de carniça.

Subi direito ao meu quarto e deitei-me. Com a pureza que trazia no coração, não podia cair na ten-tação da gula, em vésperas da Primeira Comunhão, e depois uma confissão em que pusera a nu as múl-tiplas faltas de que a minha alma es-tivera cheia.

Mas o perfume das magnificên-cias que na cozinha se preparavam, torturava-me. Trepava pelas es-cadas, pairava nas paredes e na roupa, colava-se à pituitária. Decidi refugiar-me no terraço, no topo da casa, e agachei-me no canto favorito, junto à cisterna.

Outro tormento era não poder cantar. Tinham-me dito que era pre-ciso ser um menino compenetrado, sossegadinho, durante o resto do dia, a meditar no grande acto que ia per-fazer no dia seguinte. Não podia dis-trair-me com coisas de somenos, por-que era desgostar a Deus. E eu não queria desgostar a Deus.

Fiquei assim encolhido e es-tático, a despeito da aragem muito fresca, até a noite cerrar-se, lutando contra o apetite crescente e contra o desejo de cantar, de pular e brincar com o meu irmão os entretenimentos de rapazes.

Não sei a que horas começou a solene cerimónia na Sé Catedral. Guardo a recor-dação duma igreja repleta de povo, pais, familiares e convidados. Nas primeiras bancadas, sentavam-se muito concentrados os meninos e as meninas da Primeira Comunhão.

O então Bispo da Diocese, D. José da Costa Nunes, presidia ao acto, com o seu perfil grave e as-cético. Havia muito clero a secundá--lo, o órgão tocava e o coro da Capela de Sta. Cecília do Seminário de S. José cantava. O ambiente era co-lorido, de alta religiosidade e como-vente. Na homilia, D. José, que pos-suía extraordinários dotes oratórios, exortou os comungantes a pros-seguir nos caminhos da Fé, insistindo no significado da hora. E finalmente chegou o momento supremo da Comunhão.

Quando me introduzi na bicha, ia profundamente nervoso. O meu coração pulsava apressado. Fitava o companheiro da frente, a nuca e o cabelo abundante, para ser mais pre-ciso, sem olhar para os lados nem para trás, para saber onde parava o meu irmão. As muitas caras, em volta, eram apenas manchas que se moviam ou nos observavam, sem que eu as reconhecesse.

Ia receber o Corpo de Cristo. dentro de mim, pela mão do Bispo da Diocese e preocupava-me se saberia proceder com lisura ou falharia vergonhosamente. Por qual-quer razão estava enjoado. Se era dó nervosismo ou do jejum obrigatório desde a véspera, nunca pude esclarecer, pois me aproximava cada vez mais de Sua Excelência Reveren-díssima.

Conseguiria eu engolir con-venientemente a Hóstia ou daria uma trincadela, por percalço ou interven- ção maléfica do Mafarrico? E já me via inundado em sangue, jazendo no chão frio da igreja, perdido e con-denado, sob o olhar consternado dos meus e do resto das pessoas.

Era, porém, tarde para recuar, empurrado pelo menino de trás, e o da frente já de pescoço estendido para o Bispo. Num instante e era a minha vez. Não falhei. Recebi a santa Hóstia com a humildade que me tinham ensinado e encaminhei--me para o meu lugar, a cabeça cur-vada, os olhos no chão, as mãos en-trelaçadas na altura do peito. Uma vez instalado, comecei a rezar as orações próprias da ocasião.

Todavia, o meu pensamento distraía-se. É que, para minha cons-ternação, a Hóstia sagrada colara-se firmemente ao céu da boca, não havendo possibilidade de escorregar com naturalidade, garganta abaixo. Manobrei a minha língua, no sentido de desalojá-la, numa luta silenciosa e heróica. A ideia da hemorragia, o sangue a rebentar pelo nariz, boca e olhos, não me largava. A Hóstia final-mente desfez-se, mas de tanto mexer com a língua, um pedaço do Corpo Divino encravou-se entre os molares.

Novo terror. Desta vez não es-caparia ao tenebroso desfecho. De-sesperei-me e não podia apelar por ninguém, era um problema que teria de resolver por mim mesmo. Talvez fosse a primeira vez que compreen-dia o que era o travo doloroso da soli-dão. Quem me contemplasse, con-cluiria que estava em transe devoto. Se soubessem da verdade, a ilação seria mais prosaica. A pugna dentro da boca parecia interminável: dum lado, a ponta da língua investindo sem cessar e, doutro, os dentes hos-tis defendendo a posse do pedacinho divino.

Por fim, triunfou a intervenção de Deus, na Sua infinita misericórdia. E porque não havia de triunfar, se afinal eu era um bom menino e cum-prira com convicção e sinceridade todos os preceitos exigidos? Com o bocadinho de Hóstia solto descendo garganta abaixo, o Mafarrico de pérfidas maquinações fora escorraçado duma vez para sempre. Então senti uma felicidade imensa. Obrigado, Deus, não tive hemorragia!

Depois de tudo terminado, gozei o prazer da importância, rodeado de imensa gente que me felicitava a mim e aos meus irmãos. Já saíamos, quando alguém nos avi-sou que a Sé oferecia um "chazinho" para os comungantes, com a assis-tzência dos pais, numa sala lateral à igreja. Fomos. Claro que um "chazinho" em Macau, nos anos 30, era um "chazão". Havia uma quanti-dade de pastéis e bolos, chilicotes, croquetes, pães recheados e outras guloseimas que acicatavam o apetite de crianças esfaimadas que se achavam de jejum.

Logo que houve o sinal de co-meçar, a petizada devastou os pratos com uma voracidade notável, es-quecida da compostura anterior. Eu próprio atirei-me a uns pastéis de massa folhada com recheio de caril que estavam deliciosos. A minha mãe seguiu-me com os olhos e ter-me-ia censurado, se não pairasse sobre mim o estado da Graça. Meia hora depois, retiravámo-nos.

No cumprimento dum costume dos anos 30, após breve des-canso em casa, saímos para receber a benção dos avós. Primeiro a avó paterna, a Avó Condessa, cuja intervenção fora decisiva para a nossa Comunhão, e depois os avós maternos.

Em cada casa, acolheram-nos palavras adequadas ao instante, exaltando-nos a ser bons rapazes e boas meninas respectivamente. Tenho saudades daquelas palavras, pois então parecia-me tão fácil ser bom rapaz!

Quando regressámos, ia na casa uma actividade crescente, com os preparativos do "chá gordo" Ouvia-se constantemente a voz da minha mãe, já na cozinha, já nas salas. Criados e criadas andavam atarefados, dum lado para o outro. Soavam ruídos de talheres e de louça. O cheiro de cera do soalho polido misturava-se com outros odores. Os meus irmãos mais pequenos receberam ordem de não descerem ao rés-do-chão, para não atrapalhar nem desarrumar o trabalho dos mais velhos.

As seis da tarde, apareceram os convidados. Primeiro a parentela numerosa, depois os amigos da casa e logo os que só se convidam para as grandes ocasiões. Presentes e mais presentes escoavam para as nossas mãos. Iamos obedientemente colocando-os numa mesa e víamos com alegria secreta a pilha a crescer, ansiosos por conhecer o que havia dentro dos mágicos embrulhos de variegadas cores.

Ainda me lembro da mesa enorme atravessada em diagonal, na espaçosa casa de jantar que tínhamos. Uma mesa carregada de vitualhas e iguarias, pratos de culinária macaense, confecionados por minha mãe e suas amigas. As emanações fortes do sarrabulho-es-pecialidade da minha mãe-sobre-puham-se a outras fragrâncias e estão ainda coladas ao meu nariz e à minha saudade. Tinham sido tam-bém encomendadas carnes frias da «Dairy Farm» de Hong Kong.

Pastéis, bolos, doces e pudins ocupavam outrotanto um lugar proeminente na mesa. Havia ali ine-vitavelmente as especialidades da doçaria da minha mãe. Os "encan-tos de massa leve", as "ameixas doiradas", besuntadas de açúcar, os "russos", etc. Copitos de "geleia de mão de vaca», obra da minha Avó Luísa, eram dos mais cobiçados. Surripiei dois detes, à sucapa, para saborear mais tarde, quando estivesse no meu lazer, no canto favorito do terraço.

A temperatura mantinha-se amena para Dezembro e as comidas inspiravam bebidas fortes que havia a granel. Vinhos de mesa, whisky e cerveja eram das preferidas. Havia também ponche que se extraía duma poncheira monumental, utilizada só em dias especiais.

Criados de túnica comprida e criadas de cabaia branca e calças pretas, a trança bem penteada e luzidia de óleo de madeira, serviam silenciosos e amáveis. Havia risos de gente moça, casando-se com as vozes mais graves dos adultos. As crianças traquinavam no jardim ou vinham lestas para a mesa para se reforçarem. Os convidados iam e vi-nham, pois nesse dia havia chás por Macau fora e não podia faltar-se a nenhum sem ofensa para os anfi-tri鮡s. Marcar a presença constituía um dever rigoroso de etiqueta. Por isso, enquanto uns partiam, outros batiam à porta, num vai-vem con-tínuo, e havia sempre que comer e beber. Bons tempos!

No auge da festa, na altura mais própria, os meus irmãos e eu distribuímos para cada convi-dado-outra tradi玢o de Macau - as "imagens" comemorativas da nossa Primeira Comunhão, em salvas de prata. As senhoras beijavam-nos, os cavalheiros faziam o mesmo com as minhas irmãs. Quanto a nós, os rapazes, apertavam-nos a mão. Pela primeira vez, sentíamo-nos homens e a infância parecia-nos subitamente muito distante.

A mais viva recordação que me ficou deste pormenor, foi quando me aproximei dum grupo de senhoras idosas. Todas tiveram palavras de circunstância, mas ditas com sorriso maternal, sem hipo-crisia. Uma delas, perante a minha curvatura, exclamou:

- Qui bonitéza!

Palavras que significam, no doce linguajar local, "que gentil, que bem educado".

A minha mãe saltitava de con-vidado para convidado, interes-sando-se pelo seu conforto, pergun-tando se queriam mais uma bebida, se faltava qualquer coisa ou se não desejavam repetir o doce de amên-doa. O meu pai então, ria-se com óptima disposição, distribuindo gen-tilezas, feliz, muito feliz, naquele dia já longínquo e que não volta mais.

Quando o número dos convi-dados se reduziu, organizou-se no gabinete de meu pai uma mesa de poker. Eu, garoto, não tive permis-são de entrar, podendo apenas espreitar da porta. Na sala, a minha mãe finalmente comia. Senhoras conversavam, em largo círculo. A gente mais jovem tocava discos das últimas novidades musicais no pesado gramofone da casa, uma peça de mobília de que o meu pai tinha um especial orgulho. Alguns pares mais afoitos dançavam.

Devia ser muito tarde quando o último convidado ou parente se retirou. Estávamos todos esgotados, mas contentes, porque o dia desli-zara sem nenhum senão. Fora uma festa bonita.

Já no quarto, o meu irmão e eu desembrulhámos os presentes, outro tanto fazendo as minhas irmãs, no quarto vizinho. O presente que mais apreciei foi uma máquina foto-gráfica. Havia também livros: Júlio Verne, Condessa de Ségur, uma obra de Virgínia de Castro Osório. E também um volume encadernado de "Luz e Calor" de Manuel Bernardes que anos depois levou sumiço mis-teriosamente.

Dobrado de fadiga e es-magado pelas emoções do dia, escorreguei-me por baixo do cober-tor de algodão. Antes que o sono me dominasse, fiz o cômputo do dia que guardei com ternura para sempre.

O dia da minha Primeira Comu-nhão... um dos mais venturosos da minha vida!

(Do livro, em preparação, MONG-HÁ)

Ilustração de Carlos Maneiros © Copyright

desde a p. 79
até a p.