Artes

EDUARDO LUIZ

Agustina Bessa-Luís*

Nesta Primavera pluralista corremos o risco de ficarmos todos de acordo; e de que, coroados de rosas, se desfile pela porta que não oferece mais esperança de bulha, censura e descontentamento. Disse Heráclito que um dia tudo será fogo; não diz que tudo se torna em massa tenra e tarte de maçã. O que fazia o mundo incapaz de susto e profecia, tornando-se assim um asilo de almas vaporosas e um mundo de robots.

Os artistas, que eram um pouco de azougue nas veias esclerosadas da civilização, desaparecem também num mar de azeite. Ninguém os ouve, a não ser para palpitar convites e prémios pecuniários; ou para dar lustre a mortos; ou para sorrir para a fotografia. Entre eles havia um que escapava ao enxame domesticado: era Eduardo Luiz, cuja pintura se expõe agora na Gulbenkian e que foi em vida uma pedra solta na calçada. De feitio brigão e desastrado, sem diplomacia bastante para parecer inofensivo, Eduardo Luiz foi um corsário ancorado em terras de França, sem mapa do tesouro e com memórias de feridas e batalhas. Tratou mal toda a gente, abanou os críticos pelo colarinho, deu desgostos como quem dá esmolas. E pintou, com uma devoção fradesca, os seus quadros a que chamaram maneirismo para banqueiros. Não são. São perfeccionistas como uma operação matemática e tem muito de uma ética estruturada numa norma universal. Ele tomou a natureza num sentido unívoco, como um dado imutável; uma natureza de que o homem se contenta com sofrer as leis. O que lhe reprovaram foi a base da tese de Aristóteles: o facto de o homem, ele próprio, não ter natureza humana.

Mas que Eduardo Luiz pintou admiravel-mente, ainda que sem transcendência, sendo ele mesmo as coisas que pintava, isso parece-me indiscutível. O seu azedume, a sua cólera, tinham um efeito fora do ideal de amor e respeito que prevalece nas relações com os outros; um efeito devastador, que punha em desequilíbrio a coesão social do grupo. Isto desencadeava um processo algo fanático em relação à pessoa e, consequentemente, em relação à pintura dele. Mas a incompatibilidade com os outros fazia parte das suas crenças tácitas. Para ele, as pessoas eram injustas, ignorantes e cúpidas. Para os seus antagonistas ou pares no diálogo, ele era cruel e sarcástico.

Os conteúdos mentais de todos exerceram pressão sobre o fenómeno real que é o homem em si mesmo.

Toda a convulsão e ajustamentos precipi-tados a que assistimos hoje, na sociedade europeia, anunciam provavelmente uma nova norma: não se trata de enfrentar perigos, mas de solucionar problemas. A aventura do antagonismo, o fácil pressuposto do bom e do mau, começa a parecer antiquada.

Uma nova geração está prestes a ser confrontada, não com situações emocionais, mas com a realidade do homem que, de facto, nunca foi testada senão debaixo de uma crença consciente. Uma crença consciente, partindo de uma experiência normalizada, não é o suficiente para nos revelar a realidade do homem. Crer é uma estratégia no sentido do senso comum. Isso não basta. Crer tem que ser uma objecção constante feita à autoridade da conclusão.

Eduardo Luiz. Fotografia de Michel Houssemaine.

Eu penso que a fórmula empregada para com Eduardo Luiz foi defeituosa e incompleta. Foi-lhe pedido que cumprisse a cláusula tomista de que é preciso fazer o bem, ser dócil e razoável. Ele obedecia a uma inclinação essencial da sua natureza, que era a pintura, a sua razão era um elemento dessa natureza. A sua sensibilidade manifestava-se diante dos objectos dos quais ele esperava o choque. Das pessoas, não esperava a mesma coisa, ou até não esperava nada, à excepção de uma pena suspensa. Pintar, para Eduardo Luiz, tinha um valor moral, não era um acto virtuoso. Pediam-lhe virtudes com motivações humanas, descarnado o homem da sua escolha, que era a obra de arte. A ira desencadeou-se. Não podia ser doutra maneira.

* Cartas do Campo Alegre XXV, "Diário de Notícias", 22 Jul. 1990.

desde a p. 165
até a p.