Linguística

ALGO SOBRE POESIA

Ai Qing*

Li Zhiyue. Ai Qing. Desenho a lápis sobre papel, 30x 21 cm, 1996.

NOTA INTRODUTÓRIA

Trata-se de um discurso que o poeta Ai Qing proferiu há quarenta anos (a 20 de Agosto de 1957), a respeito da criação poética, perante um grupo de poetas, escritores e redactores, na altura reunidos como alunos na Casa de Aulas de Literatura de Pequim.

Pouco depois do discurso, o poeta foi atingido e injustamente sancionado naquele "furacão" político que se abateu sobre toda a terra chinesa, e o discurso, como era lógico, foi afogado no mar encapelado duma campanha de "limpeza" ideológica antes de poder ser recapitulado e publicado em forma escrita. Um mês antes da sua morte, a revista pequinesa "Shi Kan" (Revista de Poesias) obteve o consentimento do poeta para publicar o texto, recapitulado por familiares e amigos.

De grande importância para os estudos poéticos, o discurso foi proferido num momento de apogeu da actividade criativa do poeta, na altura com 47 anos de idade, e constitui o seu último tratado sobre poesia, esboçado no período de amadurecimento de seu pensamento estético. Ao ler e estudar o presente texto, já póstumo, a posteridade estará a admirar um majestoso monumento à poesia chinesa do século xx, que em vida inaugurou Ai Qing com a sua criação.

O Redactor — "Shi Kan" (Revista de

Poesias), 1996.

A partir das questões colocadas por todos os presentes, vou apresentar algumas opiniões minhas a respeito da poesia, divididas em cinco partes.

I. O QUE É POESIA

Há quem veja na criação poética uma coisa muito misteriosa. A meu ver, não há nada de misterioso neste mundo. Se algo se afigura misterioso, é porque a gente o não conhece bem ainda.

Qualquer trabalho pode ser feito bem ou feito mal, e a criação poética não é uma excepção. Não todas as pessoas que escrevem versos podem criar boa poesia. O melhor poeta pode mesmo criar poesia das mais desastrosas. Sabendo isso, ficaremos livres de certas cegueiras.

Há uns poucos dias ouvi dizer a um redactor da revista "Changchun" que há quem não reconheça como poesia as observações gerais. Isso quer dizer que na poesia não haveria lugar para os conceitos abstractos e que bastaria que aparecessem umas poucas expressões contendo conceitos abstractos para que uma obra poética fosse reduzida a uma simples declaração abstracta.

Os conceitos constituem, porém, uma das formas de expressão do pensamento, uma forma abstracta. É permissível expressar o pensamento em forma abstracta? Acho que sim. Há observações gerais e observações gerais, sendo algumas poéticas e outras não.

Não sempre deve a poesia rejeitar os conceitos abstractos, nem sempre deve a poesia admiti-los. A expressão pode fazer-se directamente através de conceitos nalguns casos, mas através de outros meios noutros casos. Tudo dependerá de se a ideia fica bem ou mal arrumada e exposta. Sobre isso de "bem ou mal", voltarei ainda mais adiante.

Nos últimos tempos tenho vindo pensando no seguinte problema: Por via de regra, a arte e a literatura baseiam-se nas imagens concretas, ao passo que às ciências sociais subjaz, geralmente, o pensamento lógico. Não acho que exista antagonismo entre as imagens concretas e o pensamento lógico. Trata-se apenas de duas formas diferentes de exprimir o que a gente tem na cabeça. Mesmo o recurso mental às imagens concretas tem de pressupor conceitos lógicos. Quando faço uma metáfora com esta casa como exemplo, preciso de possuir previamente um claro conceito abstracto do que é uma casa. Se não tivesse visto casa nenhuma, como poderia fazer uma metáfora recorrendo à imagem duma casa? Outro exemplo, na poesia clássica chinesa é bem conhecido o emprego metafórico da flor vermelha de pessegueiro para exaltar a beleza do rosto duma mulher. O rosto e a flor são duas coisas que a princípio não têm nada a ver uma com a outra; mas têm algo de comum: a beleza da cor vermelha. Em contrapartida, seria um pouco mais difícil metaforizar o rosto duma pessoa comparando-o com este alto-falante. E nada de comum poder-se-ia alegar para metaforizar o meu rosto dizendo que se parece com um cinzeiro para cigarros. Pode-se dizer, portanto, que na literatura o pensamento lógico precisa de veicular-se através de imagens concretas.

Algumas observações gerais são poesia, embora não sempre muito boa. Do mesmo modo, não são excelente poesia todas as obras inspiradas em imagens concretas. O recurso às imagens concretas é apenas um método, um meio.

Conhecemos versos de Shakespeare como os seguintes:

Esta Inglaterra nunca se deitou nem deitará

Aos pés do conquistador soberbo

Que venha nos atacar o mundo inteiro.

Fá-lo-emos cair em pânico.

Ninguém nos deixará cabisbaixos

Se a Inglaterra tiver fé em si própria.

Aqui temos uma poesia composta quase exclusivamente de declarações gerais. Coisas semelhantes podemos encontrar também em Maiakovski e Pablo Neruda. Sempre que sejam boas, podem declarações e observações gerais ser também poesia.

É frequente encontrarmos poesia em excelentes textos declarativos ou argumentativos. "O Manifesto do Partido Comunista — disse Maiakovski — é óptima poesia."

Agora, a respeito da poesia paisagística. As paisagens não mudam, mas muda a maneira como as pessoas as olham.

Deve ser diferente a maneira como descreviam o monte Tai os homens das épocas antigas e como o descrevem os homens dos nossos dias, embora o monte Tai seja sempre o mesmo. Ao descreverem as Três Gargantas do rio Iansequião (Changjiang), os poetas de hoje devem fazê-lo de maneira distinta de como as descreveu Li Bai. Se você achar impossível escrever qualquer coisa de novo sobre as suas impressões das Três Gargantas, convém que, em lugar de escrever você próprio, se contente com multicopiar uns exemplares do que delas escreveu Li Bai, e assunto arrumado. Isso porque a este respeito posso garantir que de nenhuma maneira poderá rivalizar com Li Bai. Ora, se você conseguir escrever qualquer coisa que lhe for própria, então consigo nada teria Li Bai a fazer, já que o de você a você, e o dele a ele.

Ai Qing e o director da "Revista de Cultura", Dr. Luís Sá Cunha, que, já a partir do primeiro número da revista, em artigo de sua autoria — Maior Poeta da China em Português: Um Nobel para Ai Qing, dá grande relevo ao poeta e à sua obra.

Devemos escrever com veracidade o que pensamos nós próprios, e não imitar nada de outrem. Se achei necessário dar os meus pareceres sobre a pintura tradicional chinesa, é porque me oponho a que os pintores imitem coisas de outrem. Mas aqueles senhores idosos não se deixam dissuadir. Teimam em continuar a imitar, resoluta e corajosamente. Eu, por minha parte, também não me deixo dissuadir, e continuarei a me opor à imitação.

Agora, algo sobre a poesia de amor. Uma coisa deve exigir-se: que a poesia de amor de hoje seja distinta da dos tempos antigos, de forma a que o leitor perceba que quem está a escrever é um chinês do século xx, e que não está a escrever um Shelley nem uma Li Qingzhao (1084-1155?). Também não convém que toda a nossa poesia de amor seja uma poesia a Issakovski, pois as formas de expressão dos Chineses devem ser distintas das dos Russos.

Não é sempre necessário, para a criação de uma poesia de amor própria da China, copiar as canções populares. O que você precisa é escrever o que sente. O mesmo redactor da revista "Changchun" disse-me, entre outras coisas, que lá, na sua redacção, há quem sustente que a poesia de amor deve reger-se por alguns cânones. Por exemplo, uma rapariga só é bonita com duas tranças e não com uma só, com olhos grandes e não pequenos, com sobrancelhas curvas e não rectas, etc.. Aqui assistimos a uma imitação de algo de estereotipado.

O que é trivialidade na poesia de amor? É a imitação de coisas de outrem, coisas inúmeras vezes repetidas. É, naturalmente, trivial a ausência de criatividade.

Julgue as coisas do mundo com a sua própria cabeça, e não com a de outrem. Veja o mundo com os seus próprios olhos e reflicta sobre os problemas com as novas concepções e ideias que você tem adquirido, e logo dê com coragem o seu parecer. Basta você ousar escrever o que sente você próprio, para que o que escreve seja, pelo menos, diferente do que escrevem os outros.

II. COMO AVALIAR AS OBRAS POÉTICAS

Na realidade, aqui se trata de como apreciá-las, compreendê-las e julgá-las. Para acrescentar mais um ponto, trata-se também de como apresentá-las ao público. Tudo isso, falando estrictamente, é da alçada dos críticos, mas mesmo os críticos devem fazer pelo menos as três primeiras coisas.

Saber apreciar, compreender e julgar é requisito para qualquer pessoa desejosa de entrar em contacto com a literatura.

Convém reparar no que tem uma obra a ver com a época. Algumas obras, que parecem ter sido já lidas algures, são provavelmente plágios, pelo menos em metade, senão inteiramente.

Uma obra é bem ou mal sucedida em dependência dos efeitos que venha a produzir no âmbito social, em dependência de se você, o leitor, fica sensibilizado ou não com a leitura. Se o ficar, isso evidencia que a obra tem surtido efeito em você e que pode surtir efeito também em outras pessoas de formação cultural mais ou menos igual à sua.

Como é natural, existem critérios para a avaliação das obras poéticas: o critério político e o critério artístico.

O critério político exige que a obra em causa seja proveitosa para o socialismo. Para sê-lo, não é sempre preciso que cada poema termine com a palavra-de-ordem: "Viva o socialismo!", o qual não deixaria de ser fácil de mais. Ora, é muito provável que o destaque que se deu ao aspecto ideológico tenha levado ao mal-entendido de que mesmo na poesia são indispensáveis os conceitos abstractos, cuja presença na poesia, porém, é mister salientá-lo, pode implicar perigo, por serem um pouco difíceis de pilotar.

Tudo isso digo agora porque era impossível dizê-lo até há pouco tempo. A princípio, sustentou-se mesmo que compor poesia era prática própria da pequena burguesia. Mais tarde, as coisas vieram melhorando aos poucos, e passou-se a admitir que compor poesia não era prática pequeno-burguesa, mas compor poesia paisagística ou de amor sim. Assim as coisas, acho que o proletariado ficaria efectivamente "sem nada", ao passo que a pequena burguesia teria obtido riquezas inesperadas que talvez lhe permitam ascender até à categoria de burguesia.

Afinal de contas, acho que o critério político deve ser tolerante.

Agora, a respeito da expressão implícita e o hermetismo. É admissível a expressão implícita? Há quem opine que não está bem exprimir-se em forma implícita, porque isso impede a compreensão. A expressão implícita não visa impedir a compreensão, mas sim fazer-se compreender, e compreender com maior profundeza. Quando escrevo dando tantos tratos à imaginação, o que espero é que o leitor também dê tratos à imaginação ao ler o que escrevi. Se o objectivo é impedir a compreensão, vale mais deixar de escrever pura e simplesmente. Sempre que se escreve algo, deseja-se, depois de tudo, que seja compreendido.

Uma mensagem implícita não é abrangida pela compreensão numa só olhadela. É desejável ou não a compreensão numa só olhadela? Pode ser. Um quadro aqui colocado é abrangido pela percepção visual numa só olhadela. A expressão em um texto escrito, entretanto, difere da expressão pictórica. Há textos escritos com uma exactidão que dificilmente se capta devido ao nível cultural inadequado.

A expressão implícita não visa outra coisa que produzir uma impressão mais profunda através da imposição de uma compreensão mais penetrante. Em caso contrário, não faz sentido.

O hermetismo é outro cantar. Conduz a más interpretações. O hermetismo revela falta de clareza das ideias. Há algum tempo, um poeta escreveu "Fósseis Ictílicos", de umas poucas linhas apenas. Vários críticos escreveram interpretações, em milhares de caracteres. Cada interpretação revelou-se diferente. Por fim, houve que perguntar o próprio autor, e este disse que nem ele sabia o que estivera a escrever.

Ao se tornar incom-preensível, a poesia fica reduzida a uma manifestação da degradação filosófica até ao fundo do abismo idealista. Costumamos ouvir, quando criticam uma pessoa: "— Não tenho linguagem comum consigo." Um poeta escreve coisas assim propositadamente porque quer dar-se ares de importância. Com estas coisas extremamente idealistas é que não temos linguagem comum, pois os seus autores encaram as coisas duma maneira inteiramente distinta de como as encaramos.

Em Xangai, um capitalista estudou filosofia em outros tempos. Perguntei-lhe o que significa ser filósofo. Respondeu: "— É filósofo quem, cego, entra numa furna em busca de dois gatos negros, mas em vão." Eis uma resposta magnífica, inspirada no agnosticismo ultra-idealista, mas é melhor, contudo, do que os "Fósseis Ictílicos".

Ai Qing, o ex-Presidente do Instituto Cultural de Macau, Arqt. ° Carlos Marreiros, e o poeta e coordenador da edição chinesa da "Revista de Cultura", Dr. Gao Ge, em Pequim (1990).

Como entender as correntes poéticas? A questão faz parte do problema da avaliação das obras poéticas. Em todos os livros existentes de História da Literatura, as correntes são classificadas por formas. As obras poéticas escritas em forma de escadaria são catalogadas como da corrente futurista. Outras correntes há que receberam nomes sarcásticos pelas suas formas gráficas, como "cana de secar roupa","fatias quadradas de coágulo de feijão", etc..

Outro exemplo:

 Louvemos! 
     A época! 
           Em! 
                     Que! 
                             Vivemos! 

Eis uma forma de escadaria, há pouco descoberta, com interrupções onde não correspondem e acompanhadas cada uma de um ponto de exclamação.

Acho que convém reconsiderar a classificação das correntes por formas. Não será melhor uma classificação por conteúdo e por métodos de expressão? Os métodos de expressão, embora próximos das formas na aparência, são próximos também do conteúdo.

A crítica é uma tarefa difícil. Consiste em apresentar uma obra ao público, dar-lhe a conhecer como a interpreta o crítico e ajudá-lo a compreendê-la. O público, porém, pode interpretar a obra deste ou daquele modo.

Porque é que falo disso? Falo disso porque alguém me perguntou o que penso acerca do artigo de crítica do camarada Sha Ou, publicado na revista "Shi Kan", pergunta difícil de responder. Suponho que todos vocês não estarão de acordo se eu disser que ele tem razão em todos os elogios e não tem razão em nenhuma das censuras que me dirige. É por isso que prefiro pôr de lado esta questão para me ocupar do trabalho de crítica em geral.

É lógico que quem escreve poesia deva ligar importância à crítica, mas não precisa de ligar demasiada importância. Por minha parte, adoeço de um hábito muito negativo, e é que de há bastante longo tempo não ligo importância nenhuma aos elogios e censuras. Se tivesse ligado, ficaria com neurastenia.

Seja qual for a época, um poeta não deixa de ser apoiado por muitos partidários e combatido por numerosos adversários. Isso porque, seja qual for a época, há pessoas de diferente formação cultural, gosto estético e posição política. Não creiam que, dado que já vivemos na época do socialismo, toda a crítica seja justa. Nada disso!

Um destes dias deparei com o embaixador soviético Iúdin. Na nossa cavaqueira, disse-me: "— Tenha cuidado na criação literária, já que os escritores têm inimigos. Não me refiro, naturalmente, aos inimigos de fora das fronteiras, mas sim aos invejosos, inclusivamente na União Soviética." O que ele quer dizer é que devemos encarar o trabalho da criação literária com toda a seriedade.

A avaliação pode ser elevada umas vezes e baixa outras, mais elevada quando quem avalia o poeta o conhece bem e mais baixa quando o conhece mal. Isso mesmo não deixa de ser normal. Outro cantar é o caso de depreciação propositada ou louvor intencional. Depois de tudo, podemos não dar muito crédito ao que diz o crítico que não se baseia no contexto integral ao fazer as suas críticas.

Às vezes, poetas fazem críticas de poesia. Basta folhear o Don Juan, de Byron, para encontrar invectivas contra poetas do seu tempo, invectivas tão contundentes que se diria que os invectivados deviam ter perdido toda a vontade de sobreviver. O que encontramos hoje em dia são antes uns ataques oblíquos, de flanco, sarcasmos mordazes, arranjinhos ligeiramente velados.

Dão-se também casos de poetas elogiarem outros poetas do seu tempo. Após a morte de Schiller, Goethe escreveu, para honrar a sua memória:

Após ele, tudo é trivial leviandade,

Só se vê a vulgaridade constrangedora.

Muita gente costuma escrever umas poucas palavras de louvor a uma pessoa que acaba de morrer, em sinal de cordial despedida. Há contradições em vida da pessoa em causa, mas as contradições talvez tenham diminuído com a sua morte. Por via de regra, o que se diz nas sessões comemorativas da morte dos defuntos é predominantemente encomiástico.

A crítica é difícil. Voltaire disse: "Quanto à crítica, é fácil..." Mas ele deu imediatamente uma reviravolta: "Porém, achas que pode ser tão fácil?" Eis que ele está a protestar!

No momento da publicação do sétimo capítulo do Ievguéni Oniéguin, de Púchkin, houve quem, tratando de depreciá-lo, disse: "Estão a avançar tanto a nossa época como a Rússia, enquanto a poesia fica onde estava." Um célebre redactor da revista "Renmin Wenxue" (Literatura do Povo) escreveu um artigo intitulado O Relógio de Pêndulo Parado, onde diz que, embora o pêndulo do relógio esteja parado, o tempo não deixa de avançar. Bem mordaz é o sarcasmo mas, a meu ver, vale mais abster-se de falar em termos tão absolutos enquanto a pessoa em causa estiver ainda viva.

Numa palavra, a crítica é difícil, e os poetas precisam de apoio amistoso. A vida humana é, como diz Louis Pasteur, "tão frágil como um junco", que sucumbe mesmo ao vento. Um trato brutal, mesmo meia paulada, para já não falar de uma paulada cheia, já basta para matar uma pessoa, quem, no momento de fechar os olhos, ainda não perderá de vista a terrível sombra do pau. À falta de melhor opção, só resta abster-se de escrever.

No meu caso, sem aptidão para nenhuma outra coisa e tendo fracassado como pintor, só me resta dedicar-me à poesia. O facto de me chamarem poeta é devido a um prolongado mal-entendido histórico.

O ex-presidente do Instituto Cultural de Macau, Dr. Jorge Morbey, recebe a visita do casal Ai Qing (1987).

III. COMO ESCREVER POESIA

Não há metodologia segura. Zhao Jingshen, Fu Donghua e outros escreveram em outros tempos livros de metodologia para escrever romances e poesias. Na sociedade há sempre divisão do trabalho. Há pessoas que, sem escreverem romances, escrevem metodologias para escrever romances. Agora que me acho incapaz de escrever poesia, resta-me dizer quatro palavras sobre como escrever poesia e, incapaz de escrever boa poesia, vou falar de como escrever boa poesia.

Antes de pegar na caneta, decerto se perguntará: "O que escrever?" A partir da minha experiência de fracassos, posso dizer que o que venho fazendo é, umas vezes, ter tudo bem pensado antes de escrever e, outras vezes, escrever e pensar ao mesmo tempo. Mesmo no primeiro caso não escrevo tudo exactamente como já tinha pensado, já que o pensamento é de grande mobilidade e o que se escreve deve acompanhar de perto o que se pensa num constante fluir. O mesmo pode dizer-se das sensações, tão fugazes que desaparecem sem deixar rasto se você não as apanhar no momento preciso, e então o que sai da caneta será outra coisa.

O que escrever? A escolha é livre. Se você gostar do monte Tai, descreva-o. Mas o que descrever do monte Tai? Pode escolher esta rocha ou aquela erva. Por exemplo, pode escolher o vetusto pinheiro aprisionado no barranco, que tem mesmo menos motivos de orgulho do que uma simples erva no cume do monte — assim é que se queixa contra a injustiça social uma pessoa humilde, e então sai o dístico seguinte:

O vetusto pinheiro no barranco

Desfruta de menos luz solar do que a erva do cume.

Essas duas linhas são talvez dois versos.

Não todas as coisas podem servir de tema de poesia, mas aqui me refiro ao caso individual deste ou daquele poeta. Quanto ao mundo inteiro em geral, acontece que quase não há nada que não tenha sido incorporado na poesia.

Para escrever boa poesia, fazem falta os seguintes requisitos:

-- Possuir muita experiência de vida e conhecer bem os diferentes tipos de pessoas.

-- Possuir também vastos cohecimentos em outros domínios como, por exemplo, sobre a Natureza, pois de outra maneira não será possível utilizar metáforas variadas nem dispor de um vocabulário abundante.

-- Possuir uma sensibilidade largamente abrangente. Isso significa ter na mente, com frequência, as penas e alegrias da maioria esmagadora; o contrário significa uma sensibilidade pouco abrangente.

-- Estar provido de elevada formação artística, suficientemente elevada para poder exprimir o que se pensa ou sente.

Peng Zhen (prefeito de Pequim) disse numa ocasião que muitos dos nossos quadros veteranos possuem uma profusão de ideias e temas para eventuais textos, mas não têm a capacidade de exprimir tudo isso por escrito, como se tivessem ravióis bem cozidos em sopa numa chaleira por cujo bico estreito não pode sair senão um bocadinho da sopa. Quem possui formação artística é capaz de escrever, mas se não tiver sobre o que escrever, o que sai serão meras palavras ocas. Como seria de supor, deveria ser impossível uma linguagem abundante mas desprovida de conteúdo substancial, pois à abundância de linguagem deve normalmente subjazer uma abundância de ideias. Mas na realidade há pessoas que podem falar de muitas coisas que têm na mente mas não sabem exprimir nada disso por escrito.

A técnica por si só não tem objectivo. Serve apenas para exteriorizar o que se pensa ou sente. Pode proporcionar às pessoas uma sensação agradável. Quanto à evolução das artes, o seu rumo pode às vezes seguir o do progresso da técnica, sem que, contudo, seja este o seu objectivo. Quem fica inebriado da técnica corre o risco de se deixar levar por ela.

Ora, no momento da criação, como decidir sobre a forma? Disse há pouco que nalguns casos a gente escreve depois de escolher a forma e noutros só a escolhe escrevendo. Ninguém dirá que hoje vai escrever um poema metrificado ou que hoje vai optar pela forma de verso livre para o seu poema. O que se passa será talvez que a minha linguagem vai produzindo a forma enquanto vou acompanhando com zelo a evolução das minhas ideias.

Qual forma escolher? Acho que a melhor forma é aquela que lhe permita exprimir mais plenamente o que você pensa ou sente. Há quem pergunte sobre a dicotomia entre o verso metrificado e o verso livre. No meu caso, raramente decido sobre a forma antes de me pôr a escrever. Com frequência mudo de forma a meio caminho, passando do verso livre ao verso metrificado, ou vice-versa, inclinando-me para um ou outro lado, provavelmente consoante a inclinação daquilo que penso ou sinto.

Segundo a lógica normal, a passagem de uma forma a outra é desnecessária, mas como o verso metrificado está agora muito em voga, às vezes a gente tem de modificar o que primitivamente estava escrito em verso livre.

Como é que se modifica? Por verso metrificado entendemos uma forma de versificação bastante regular e bem ordenada. Se aqui estão plantadas cinco árvores, você tem de cortar uma delas ou transplantá-la de cá para onde há apenas três árvores, ou tem de podar metade dela. Ignoro como é que vocês escrevem, mas é assim que o faço eu.

O que pensa uma pessoa, ou o que ela pensa e vai expressar em forma de linguagem, não pode evoluir sujeito à medição por uma régua métrica. É grande a liberdade com que a gente pensa e é neste sentido que o verso livre condiz com a natureza constantemente flutuante do pensamento humano. Mas não creiam por isso que eu esteja aqui a preconizar com desespero o verso livre.

Ai Qing na cerimónia de lançamento da sua Antologia Poética.

De que deve o verso livre precaver-se é da narração trivial, da miscelaneidade, da desordem e do excesso de prosaísmo. Digo excesso porque convém adoptar aqui uma "política de clemência", combatendo apenas o excesso de prosaísmo.

Quanto ao verso metrificado, do que deve precaver-se é da rigidez, do arcaísmo, da ensamblagem artificial e da palmar afectação. Porque é que devemos combater tudo isso? É porque muito disso é fruto da simples imitação.

Na letra das canções das óperas tradicionais encontram-se muitas transgressões gramaticais, que se devem, entre as causas mais importantes, a que se deixam sujeitar pelo número de caracteres pré-estabelecido para cada verso, que deve constar, ou de sete, ou de nove caracteres, nem mais nem menos. Por exemplo, em uma linha com limite de cinco caracteres, se quero dizer "xi-le yikuai niaobu" (洗了一塊尿布, lavou uma fralda), esbarro com um carácter de excesso e tenho de suprimir um, deixando a linha como "xi-le yikuai niao" (洗了一塊尿, lavou uma urina), e em uma linha, também com limite de cinco caracteres, se quero dizer "ting-le yige baogao" (聽了一個報告, ouviu uma palestra), tenho de suprimir também um, deixando a linha como "ting-le yige bao " (聽了一個報, ouviu um jornal). Vê-se bem o desarranjo causado pelas mutilações metrificadoras.

Há quem pergunte se o verso livre tem origem hereditária. A meu ver, têm origem hereditária todas as manifestações culturais e artísticas, incluindo a corrente "futurista". Algumas coisas fizeram-se notar em tempos remotos mas foram afogadas mais tarde. Na arte e literatura, não ouso afirmar que não haja em absoluto, mas é muito pouco aquilo que não tem origem óbvia. Tudo tem a sua origem e o seu novo crescimento fica a dever-se a determinadas condições novas. Basta examinarmos de um modo científico e sério a evolução das formas da poesia chinesa para nos darmos conta de que as formas novas não são em nenhum sentido forâneas. Só é de recear que o exame seja dogmático, distorcendo o sentido daquilo que com toda a clareza tem dito outrem, como no caso de Maiakovski, cuja oposição, bem categórica, a algumas coisas ficou distorcida pelos dogmáticos como se ele não se lhes tivesse oposto, e mesmo como se o que ele disse tivesse sido mal traduzido.

Há quem acredite que é fácil compor versos livres. Mas, se a memória me não falha, Xu Chi tem dito: "É difícil compor versos livres." Não é tão fácil manter o verso livre verdadeiramente livre dos males que mencionei: a narração trivial, a miscelaneidade, a desordem e o excesso de prosaísmo.

É também difícil compor poesia metrificada. Dão-se casos de prosaização na poesia metrificada? Sim. Basta sermos um pouco mais perspicazes e eliminarmos as rimas finais de alguns pretensos versos metrificados para podermos descobrir que não se trata mais do que simples prosa, só que frequentes vezes a gente se deixa impressionar por um mero som final acrescentado a uma linha. Pode por ventura considerar-se poesia metrificada aquela que está desprovida de imagens e de inspiração poética? Para já não falar dos poetas amadores, mesmo alguns poetas profissionais escrevem poesias metrificadas muito prosaizadas.

Cada obra poética se cria em circunstâncias diferentes. Na imensa maioria dos casos, as obras criam-se de um modo natural, ou seja, são escritas no momento em que o tema emociona tanto o autor que o impulsiona a escrevê-las.

Há obras escritas de maneira forçada? Sim, também. Uma pessoa não pode fazer tudo a seu bel-prazer. Há momentos em que tem de fazer algumas coisas de maneira forçada.

Por obras feitas de maneira forçada entendo aquelas escritas por instância de certas pessoas zelosas e motivadas por um senso de dever. Por exemplo, quando o Egipto foi invadido, a gente sentiu-se no dever de dar provas de solidariedade (é por isso que também não convém dizer que agiu de maneira forçada), e o redactor, de boa vontade, sempre apressa a gente a fazê-lo num momento ou noutro, telefonando de manhã para pedir a entrega do manuscrito às três horas da tarde. Num momento destes, torna-se quase imperativo que a gente se force a si própria a fazer todo o possível para cumprir a tarefa encomendada. Há poesias assim escritas, e não poucas.

Alguns redactores são muito aptos a fixar o tema para o autor escrever. Foram estudantes e na escola já estavam habituados a compor textos segundo os temas fixados pelos professores e entregá-los à hora fixada. Há, porém, redactores, ou professores, que fixam mal os temas, tão mal que o autor não sabe o que fazer e, por mais que se force a si próprio, não consegue escrever o que se lhe encomenda.

De acordo com a minha experiência pessoal, o que está escrito de maneira natural sói possuir maior força comovedora do que aquilo que se escreve de maneira forçada. Escrevi um bom número de poesias políticas, mas escolhi muito poucas delas para a minha recente colectânea. Poucas escolhi do meu livro Antifascismo.

É verdade que pode ser questionável o meu critério de selecção. Mas sustento uma opinião bastante audaciosa, embora não necessariamente perfeita: é que as posições políticas estão por vezes sujeitas às limitações de um determinado tempo. Um exemplo disso pode ser o meu poema intitulado "Canto do Povo Chinês", escrito num momento em que a China, a União Soviética, a Inglaterra e os Estados Unidos da América eram aliados. Longe estava de inspirar-se em sentimentos verdadeiros um canto assim, dedicado a uma coligação tão heterogênea, prenhe de tantas complicações molestas, que soa tanto mais insípido ao lermo-lo hoje em dia.

Quer escrevamos por espontâneo impulso, quer o façamos de maneira forçada, devemos sempre aplicar o máximo de esforços para despertar os nossos sentimentos. Vale dizer, há alturas em que os sentimentos humanos dormem em semiletargia.

Raramente corrigi as poesias até agora escritas. Geralmente, quanto mais fortes são as exigências políticas, mais são as correcções.

No cárcere, pobremente iluminado por uma lamparina mortiça, quase nada era visível. Lá escrevia eu com lápis numa caderneta, em grandes caracteres, sobrepondo muitas vezes uma nova linha a outra já escrita. Só na manhã seguinte me era possível discernir as linhas e copiá-las mais uma vez, e assim é que nascia a minha poesia. Casos como este já são raros hoje em dia, embora não sejam absolutamente impossíveis.

Não obstante tudo isso, convém que uma obra poética seja corrigida uma e outra vez. Parece que quanto mais dá o poeta ouvidos aos pareceres de outrem, mais corrige as suas obras. Lá isso tem algo de bom, no sentido de que permite evitar lapsos. Mas tem algo de mau noutro sentido, tornando pouco natural o que fica escrito.

Se me perguntarem o que é que tenho de vantajoso na minha criação poética, posso dizer que me é útil o facto de ter sido estudante de pintura durante uns poucos dias e ter obtido certas noções das formas plásticas, das cores, das nuanças e da perspectiva. Sustento que tanto os poetas como os romancistas devem possuir um senso agudo e preciso das cores, dos cheiros, das distâncias entre os corpos, etc..

Ai Qing e o Dr. Jorge Cavaleiro na sessão de autógrafos, aquando do lançamento da Antologia Poética de Ai Qing, edição bilingue português-chinês, publicada pelo Instituto Cultural de Macau.

IV. OS MÉTODOS DE EXPRESSÃO DA POESIA

Os métodos de expressão da poesia devem enquadrar-se no problema de como escrever poesia. O que é que significa um novo método de expressão da poesia? Significa que se baseia em novos sentimentos e novas sensações, sem os quais não é possível que surja nenhum método novo de expressão poética.

Por originalidade entendemos uma nova descoberta que numa nova área o poeta alcança através de novos sentimentos e novas sensações.

Um novo método de expressão pressupõe um agudo senso do novo, o qual, por sua parte, é de difícil aquisição. Não há que fazer passar por novo aquilo que outrem já sentiu há muito e pretender senso agudo. Escusado dizer que um senso agudo pode se aplicar também a algo que não é novo.

Qualquer coisa pode dar motivo à poesia, já que qualquer coisa é capaz de despertar a imaginação. No entanto, há coisas propensas a despertar a imaginação nalgumas pessoas, ao passo que há também coisas que não despertam imaginação nenhuma nalgumas pessoas.

A imaginação é experiência acumulada. A gente parte da experiência de hoje para chegar até à do passado e parte da do passado para chegar até à "experiência do futuro".

Diferentes coisas despertam a imaginação em diferentes pessoas. Algumas pessoas gostam de certa espécie de flor, enquanto que outras gostam de outra espécie. Algumas pessoas deleitam-se com certa cor, quando outras apreciam outra. Há quem prefira um desenho a outro e quem tenha predilecção por um determinado feitio antes que outro. Daí os diferentes métodos de expressão, como é natural.

Os diferentes métodos de expressão são determinados pelas diferenças de conteúdo. Mesmo que o tema seja o mesmo, quando você se puser a escrever pela segunda vez, precisará de algo de novo. Não admira que a maioria dos poetas seja relutante a escrever novamente sobre um mesmo tema.

Agora, o acto de conceber. O processo de concepção é também o processo de movimento mental. O primeiro que pensa o poeta ao conceber uma obra será, como é de supor, "o que exprimir?" E logo a seguir: "Qual o ângulo de expressão?"

É através de imagens que o poeta desdobra o que imagina e pensa. Admito que possa ser questionável a cientificidade desta minha formulação. Uma formulação alternativa poderia ser a seguinte: "É seguindo o que vai imaginando e pensando que o poeta vai dando forma às suas imagens."

O acto de conceber abrange também a programação estrutural dos capítulos, secções e parágrafos. Há que determinar qual passagem deve ser anteposta a qual outra. Há ocasiões em que propositadamente se inverte a ordem de sucessão das passagens, inversão que tem como finalidade uma maior força comovedora e impressionante e, por conseguinte, um melhor efeito artístico.

Agora, a respeito do relacionamento entre a realidade e a imaginação. Dai Wangshu** tinha muita razão ao escrever num tratado sobre poesia: "A poesia não é real nem imaginativa." A imaginação nasce da realidade, e é com aquela que esta se enriquece.

Quando vejo uma ventoinha, o que vejo é um objecto atingido pela percepção visual deste momento. Mas a partir dela vem à minha memória a recordação de outra ventoinha que noutra ocasião vi numa certa sala num certo ano, e essa outra ventoinha faz-me recordar uma pessoa que, na altura, se encontrava na sala, e a recordação dessa pessoa leva-me a pensar nalgumas coisas que lhe diziam respeito. Toda essa imaginação tem sido despertada e enriquecida pela ventoinha que temos aqui à vista.

Como desenvolver a capacidade imaginativa e sensitiva poética? Faz falta ir cultivando-a. Uma pessoa desprovida da menor capacidade imaginativa não deixa por isso de poder fazer muitas outras coisas, como, por exemplo, exercer o cargo de chefe administrativo, ou de ministro até. Mas não é apto a escrever romances ou poesias.

Raras, porém, são as pessoas desprovidas da menor capacidade sensitiva, só que essa capacidade, inerente a quase todas as pessoas, não desperta sentimentos em algumas delas. Ao avistarem uma folha de papel branco, sentem que é papel branco, e mais nada.

A sensação será pálida se não engendrar associações e imaginação.

A capacidade imaginativa e sensitiva é susceptível de cultivar. Na realidade, em causa está o hábito do movimento mental.

Algumas pessoas têm maior movimento mental do que outras. Nelas, basta uma nova sensação para que saia em jacto toda uma sucessão de associações, ao passo que noutras só é possível uma simples associação. Quem escreve romance, drama ou poesia dificilmente pode trabalhar se for pobre em imaginação.

Há quem, para além de incapaz de associações, seja inepto a compreender as associações de outrem. Essas pessoas sustentam que a metáfora pressupõe parecença absoluta. Perguntam: Porque é que se fala em "rosto tão belo como a flor vermelha do pessegueiro e flor tão bela como o rosto", se a flor não tem nariz nem olhos? Na realidade, cada coisa no mundo só tem uma outra que mais se parece consigo: ela mesma. Ninguém se parece mais com você do que você mesmo. Pedir a uma metáfora tão elevado grau de parecença é pedir o impossível.

Deserio — recolha de poemas de Ai Qing

Quanto ao estado de absorção poética, é algo de dificílima explicação. Vejam se dou certo. Por estado de absorção poética entendemos um nível mais elevado do que de costume para onde ascendem as sensações, os sentimentos, a imaginação e as ideias, e onde as coisas se apresentam mais belas e o que está escrito adquire um gosto poético mais atraente. Isso é necessário porque existem realmente obras poéticas que não têm o menor gosto poético.

Imediatamente se apresenta uma questão: O que é gosto poético? É também algo de muito difícil explicação. São perigosas todas as interpretações já consagradas. Isso porque o gosto poético é encarado e entendido por cada poeta de maneira distinta. Alguns atribuem gosto poético ao crepúsculo, mas outros atribuem-no ao meio-dia. Alguns atribuem-no ao mar, mas há quem o atribua antes aos barrancos. Se você negar gosto poético à estrepitosa motocicleta, Maiakovski brigará consigo. Enquanto você diz que as flores têm gosto poético, Maiakovski afirma que o petróleo é o melhor perfume do mundo. Você vai-se embora às pressas e com o nariz tapado ao avistar aquele petisco malcheiroso de Nimpó, enquanto os naturais de Nimpó acham-no o melhor gosto poético.

A meu ver, tudo depende essencialmente da possibilidade de despertar deleites novos, estímulos novos e exaltações novas. Um conceito assim definido poderia ser mais abrangente. Poder-se-ia perguntar: Se é tão relevante o "novo", haverá gosto poético numa visita ao Palácio Imperial no intuito de admirar relíquias dos tempos antigos? Acho que o sentimento que revive os tempos antigos não deixa de ser também um novo estímulo.

Fascínio é um factor e uma força que concorre para o enriquecimento da capacidade imaginativa e sensitiva bem como dos sentimentos e das ideias.

Atribui-se gosto poético, tradicionalmente, a um passeio à tardinha por debaixo dos salgueiros, com os pássaros a esvoaçarem no ar. Isso se aprende dos livros, e todo o mundo lhe acha gosto poético, de modo que nós também acreditamos que há gosto poético num cenário destes.

Porque é que algumas pessoas mais idosas não querem nem podem aceitar a nova poesia? Porque já têm uma visão dogmatizada. Fácil é reconhecer aquilo que já existe. Não é senão dar um voto adicional àquilo já aprovado. Mas não fica por aqui a evolução do Homem. É frequente o Homem ter de reconhecer corajosamente o que vai existir no futuro ou o que já existe mas não tem sido ainda reconhecido.

Agora, a narração e a metáfora. Foi no ano passado, se não estou em erro, que dois poetas mexicanos me perguntaram sobre a narração e a metáfora. É efectivamente uma questão séria a que escolheram, porque há quem negue estatuto de poesia à narração, opinião essa que eles também sustentavam. Há quem veja na narração um mero mecanismo da prosa.

Se encaramos a poesia não como algo de petrificado e misterioso, posso assinalar que a narração não deixa de ser também um meio da poesia. Não é possível fazer versos rejeitando toda a narração.

Um exemplo:

Na juventude, ouvi chuva lá encima, no [pavilhão das cantoras, velas vermelhas [derramando luz tênue sobre [bambinelas de seda. Na idade viril, ouvi chuva lá entro, a bordo [dum barco, o rio largo, as nuvens baixas, e [os gansos selvagens piando ao vento do Oeste.

Agora, de cabelo já branco, ouço chuva cá em [baixo, num mosteiro budista. impotente face às vicissitudes da vida humana, [deixo que prossiga a chuva, batendo gota a [gota nos degraus, até ao amanhecer. Jiang Jie (Zhu Shan), "A Bela de Yu".

Todo esse poema consta de narrações, sem uma só metáfora. São escolhidos três cenários, unidos entre si com saltos muito rápidos, de modo que fica narrada a trajectória duma vida inteira.

Uma narração destas difere, porém, das narrações da prosa. Consegue apanhar cenas das mais típicas para surtir um extraordinário efeito de síntese: pândegas na juventude, vida errante na idade viril e solidão na velhice. O poema consegue comover quem o lê.

Abundam exemplos similares, como:

Talvez haja viajantes sem se terem hospedar, E daí os trotetrotes sobre a neve do tumulto [das montanhas. Li Xiuzhen.

Ouvem-se latidos de cão à porta de vime, É que retorna um homem em plena noite de [nevasca.

Liu Changqing, "Hospedagem em Casa do Dono do Monte do Hibisco, por Causa da Neve".

Tudo o que temos aqui é narração.

Qualquer narração que seja rica em imaginação ou que consiga apanhar o que têm as coisas de mais típico e surtir um efeito altamente sintetisante poderá servir de meio de expressão à poesia. Isso porque enquanto você pensar neste sentido, você estará a encher de gosto poético o que estiver a narrar e estará a tornar possível a sua poetização.

Qual a diferença entre a narração poética e a prosaica? Disse agora mesmo que na narração poética os saltos são rápidos e o efeito de síntese é muito forte. Será que nada disso é necessário na prosa? Sim, é também necessário. Uma prosa excelente é em si própria próxima da poesia, ou mesmo equivalente à poesia.

Tudo o que a humanidade produz de melhor é, por via de regra, poesia. Lu Xun também é chamado poeta embora, na realidade, escrevesse muito pouca poesia. Não é verdade que fazer versos seja do outro mundo, mas é que a gente costuma ver na poesia algo mais belo do que na outra forma.

Os poemas longos são os mais propensos a conter narrações e os menos impermeáveis a   elas. No entanto, trata-se de narrações melhor elaboradas e mais lacónicas; além do mais, devem surtir grande efeito comovedor.

Algumas pessoas acreditam que só há elaboração artística onde há metáfora. Não é certo, pois onde há narração pode haver também elaboração artística.

Norte — recolha de poemas de Ai Qing.

Naturalmente se o poeta estiver a escrever com a mente e os sentimentos mergulhados na semiletargia, então não haverá gosto poético sequer nas suas metáforas, para já não falar das suas narrações. Não poderá exercer nenhuma acção comovedora sobre alguém.

Hoje de manhã, folheei no ócio um poema curto intitulado "O Amanhecer", que escrevi em outros tempos, e perguntei-me: Não se tornaria uma obra em prosa se as linhas aparecessem contínuas? Mas afigura-se-me que nesta obra há, apesar de tudo, certo gosto poético. Não perderia nada mesmo que a gente a tomasse por prosa. Mesmo que seja prosa, será uma prosa poética.

Diz-se que é mais fácil escrever prosa do que poesia. Mas não acho que seja sempre assim. Na China de hoje, são poucos os que escrevem prosa verdadeiramente boa (isso, naturalmente, do ponto de vista de uma exigência bastante elevada). Não faltam obras de prosa gramatical e estilisticamente impecáveis. Raríssimas, porém, são as que sejam tais que o leitor se sinta aprisionado pela força das suas palavras, perceba até o seu cheiro e fique cercado pela sua atmosfera tal como pelo ar ao redor.

A força duma boa prosa ultrapassa largamente a duma má poesia.

A seguinte passagem é prosa, mas é também poesia:

Estrondos de trovões sacodem os barrancos. Água pulverizada junta-se em cerração que impede a vista de atingir o fundo.

Shui Jingzhu.

Esta descrição duma cachoeira, em apenas dezasseis caracteres chineses, pode dizer-se que tenha atingido o máximo de um retrato vívido, apresentando graficamente todo o ambiente da cena.

Outros exemplos:

Viçosas árvores cobertas de verdes trepadeiras Que as enfeitam em tumultuosa oscilação.

Liu Zongyuan.

Elegantes árvores e bambus exóticos deixam cair Folhagem com que se escondem e sombreiam mutuamente.

Yuan Jie, "Impressões do Riacho da Direita".

Tudo isso é prosa, mas deve ser considerado como poesia. Só não é considerado como tal porque cada linha se compõe de quatro caracteres fugindo, desta forma, ao cânone que apregoa ter o verso um mínimo de cinco caracteres, e é por esta razão que as linhas aparecem contínuas. Tudo se deve a que costumamos atribuir padrões fixos à poesia. Na passagem descritiva da cachoeira, só são metáforas os "trovões" e a "cerração", sendo todo o resto simples narração. Mas isso não impede que a sua força seja poética, força fulminante que atinge o mais recôndito da alma do leitor.

O que é que se entende por simplicidade? Há quem não goste da simplicidade, mas sim da sumptuosidade.

A simplicidade torna-se uma força quando uma linguagem límpida exterioriza cenas verídicas e comoventes no respeitante à Natureza ou à vida humana. De nenhuma forma pode a simplicidade ser confundida com a trivialidade narrativa. Se for caso disso, estaremos em contra. Nem é a simplicidade uma linguagem lânguida e vadia produzida em condições de semiletargia. Tão-pouco pode ser uma linguagem sequer minimamente selectiva.

A simplicidade consiste em exteriorizar, numa linguagem das mais límpidas e concisas, aquilo que um fenómeno tem de mais essencial.

É verdade que a simplicidade é inerente a toda narração? Pode ser que uma narração seja simples, e pode ser que não. Ao que mais se opõe à simplicidade é a trivialidade. Ao que mais se opõe à poesia são os discursos intermináveis. Na troca de opiniões dentro de um pequeno grupo, costuma-se preconizar a prática de "dizer tudo o que se souber e dizê-lo sem reservas". Mas isso seria um desastre para a poesia.

Escrever poesia visa proporcionar ao leitor o máximo de sensações agradáveis no mínimo de espaço possível. De outra maneira seria injustificável que um livro de poesias seja tão pequeno.

A metáfora tem como objectivo concretizar o que em si é abstracto. Vale dizer, você emprega a metáfora para fazer com que aquilo que está a metaforizar se apresente perante o leitor em forma mais consistente e vívida.

Os meios de figuração servem para visibilizar no papel o que é invisível, e um desses meios é a metáfora. Trata-se de concretizar o que é abstracto, tornar susceptível de sentir aquilo que não o é, de modo que a gente possa vê-lo e perceber o seu cheiro, temperatura, dureza.

Um soldado muito corajoso é louvado como soldado de ferro. De nenhuma maneira está feito de ferro, servindo a locução adjectiva apenas para exaltar-lhe a firmeza.

A metáfora surge partindo da sensação e passando pela associação e a imaginação. Tanto as ideias como os sentimentos estão na origem da metáfora.

O sentimento é algo de abstracto, bem como a palavra "belo". Quando você diz que essa flor é bela e várias pessoas o ouvem, pode acontecer que cada uma delas tenha uma sensação distinta. Mas quando você diz que essa flor é tão bela como a ágata, quem tiver visto ágatas terá uma sensação mais precisa da beleza da flor em causa.

Deve você fazer esforços para transmitir com veracidade ao público o que você sente. Só possuindo sensações exactas e vastos conhecimentos é que você poderá dar com aquilo que mais convém para exteriorizar o que você sente, e exteriorizá-lo com veracidade.

Para nada presta dizer: "Esta flor é como uma flor." Não está você a dizer nada quando diz: "Ó Sol, és tão brilhante como o Sol!" Há alturas, porém, em que a repetição pode despertar sensações novas, como, por exemplo:

Ó Sol, és o verdadeiro Sol!

Só pode você dar com a metáfora mais apropriada quando compreender uma coisa com bastante exactidão e precisão. Eis porque a metáfora é um reflexo do grau de profundeza das ideias e dos sentimentos do poeta, bem assim como do grau de penetração com que compreende o belo e o feio.

O que agrada deve ser metaforizado com alguma coisa boa, e o que repugna, com alguma coisa má. Se, pelo contrário, você metaforizar o que quer louvar comparando-o com uma coisa que os outros não julgam boa, estará a perder tempo por mais que o louve.

O que é a simbolização? Faz parte da metaforização. Trata-se de metaforizar o que é abstracto através de algo de concreto, e em certas ocasiões podem ser ambos os termos igualmente concretos ou abstractos.

A simbolização e a corrente simbolista são duas coisas distintas. Na poesia não deve ser rejeitada a simbolização. A corrente simbolista é uma corrente poética, com postulados e programa que lhe são próprios e que começou com Charles Baudelaire. Sobre isso é melhor que fale Mu Mutian.

Algumas pessoas receiam que a simbolização tenda a diminuir a significação duma obra por ser incompreensível para a maioria da gente. Parece que sim. Uma obra tem tanta maior significação quanto mais gente a compreende. Eis um critério que condiz com o que chamamos "ponto de vista das massas". No entanto, é inegável que algumas obras excelentes não são compreendidas, o que é difícil de evitar. É certo que não todas as obras incompreendidas são excelentes.

Os métodos de expressão são muito diversificados, e nem sequer na poesia pode alguém impor padrões fixos. Vão-se proliferando juntamente com a ampliação da capacidade cognitiva do Homem relativamente ao mundo, bem como com a evolução das leis que regem o desenvolvimento das artes.

V. A LINGUAGEM DA POESIA

O que é a linguagem boa e o que é a linguagem má? A melhor linguagem é aquela que mais plena e exactamente transmite os seus sentimentos, sensações e ideias.

Todos os dias ouvimos falarem os outros. Naquilo que dizem, algo o comove muito, algo soa muito aceitável para você, algo distingue-se pela sabedoria que contém, e algo o impressiona tão profundamente que lhe parece inesquecível pela vida fora. Tudo isso é, talvez, a melhor linguagem.

A linguagem da poesia não jorra por si só da folha de papel. A linguagem da poesia nasce da linguagem do dia a dia, ou da dos livros, que, tomada e elaborada por si, é transmudada numa linguagem que lhe é própria.

A linguagem mais sincera é a que mais comove. Você deve aprender a imprimir maior sinceridade à sua linguagem. Há quem pergunte como é que se deve aperfeiçoar a linguagem. A meu ver, vale mais falar em treino do que em aperfeiçoamento. Porque é que digo isto? É porque o treino é algo que se faz todos os dias, ao passo que o aperfeiçoamento consiste em polir o que se escreve no papel, riscando, como diz Lu Xun, as palavras que não são absolutamente indispensáveis. O treino possibilita a abstracção dos fenómenos e a escolha da linguagem. É certo que isso não se alcança em um ou dois dias, mas sim pressupõe um treino constante.

O que é que significa linguagem bem condensada? Algumas pessoas acreditam que a linguagem é tanto mais condensada quanto menos caracteres se empregam. O exemplo que citei agora mesmo, "Estrondos de trovões...", só tem dezasseis caracteres. A linguagem é, escusado dizer, bem condensada. Mas não sempre a redução do número de caracteres ajuda a condensar a linguagem. Não há que preconizar práticas condensadoras como a de dizer:"Lavou uma urina."

Alguns camaradas perguntam quais os esforços que realizei no que diz respeito à linguagem e qual a minha experiência. Pura e simplesmente não posso falar em experiência. O que posso dizer é que, quando escrevo, a minha linguagem, tal como a alma penada duma pessoa, persegue de perto, até ao fim, o que penso e sinto. Após ter escrito, suprimo o que acho frouxo. Para saber se está bem ou não agir deste modo, vale mais nos aconselharmos com os críticos.

Os sons e as cores da linguagem. Só pode trazer cores nítidas uma linguagem límpida e exacta. É impossível que tenha cores uma linguagem ambígua. Quem faz versos deve, portanto, compreender plenamente as propriedades da linguagem.

A linguagem é muito diversificada. Há linguagens e linguagens. Há linguagem sarcástica, lamentosa, mordaz, imploradora... A linguagem a empregar depende do que exija o conteúdo.

A linguagem é para o poeta o que são as cores para o pintor. Este só pode pintar com precisão o seu modelo após ter disposto e misturado com precisão as suas tintas na paleta. A linguagem deve ser clara, fresca, harmoniosa e de boa leitura. Há momentos em que não tem boa leitura, o que não está bem a menos que assim se escreva de propósito, no intuito de produzir um efeito estético fora do comum.

Não basta sequer toda uma semana para esgotar os problemas que a linguagem coloca. Dado o limite de tempo, não posso hoje senão ficar por aqui.

Tradução do original chinês por Chen Yongyi.

**N. T.: Dai Wangshu (1905-1950) — poeta modernista chinês.

* O mais importante poeta chinês do nosso século. Autor de inúmeras colectâneas de poesia, Ai Qing (1919-1996) destacou-se, sobretudo, por cultivar o verso livre, sendo o seu poema mais célebre "Rio Dayen: Minha Ama de Leite".

desde a p. 97
até a p.