Artes

A IMAGEM-VÉU DE EDUARDO LUIZ

José Gil*

Tudo começa por uma ideia plástica. A "ideia plástica" (termo usado por Eduardo Luiz) organiza as formas picturais segundo relações inteligíveis que o olhar descobre para dar sentido ao quadro. É um operador da unidade da representação que nela se insere do interior, como se emanasse dos elementos sensíveis — cores, linhas, espaços. Sem a ideia plástica o quadro perderia o seu nexo, que não obedece já à ordem própria do referente natural. Neste sentido, a pintura de Eduardo Luiz é sem dúvida moderna.

Olhe-se, por exemplo, para a "Janela", de 1973: os bordos da tela representam uma moldura que enquadra uma tela que representa uma outra moldura que enquadra uma terceira e uma quarta e uma quinta (em "Capriccio", de 75, o número das molduras chega a quinze). A ideia plástica diz-nos que a imagem pictural se resume a um jogo de espelhos, a uma inclusão em abismo de imagens: a representação não reenvia ao real, mas ao dispositivo material (suporte, enquadramento) e pictural (a ilusão do real no trompe l'oeil de toda a representação) que constitui também uma cena enquadrando a imagem — um corpo de mulher que, assim, não é mais do que uma imagem de imagem de imagem... o trompe l'oeil é, para Eduardo Luiz, o lugar da mise-en-scène da imagem como real, e portanto, do real como representação, abrindo para a infinita multiplicação das imagens: é por excelência, o lugar da pintura.

Mas não basta que a ideia plástica presida à composição das formas para que a imagem resulte: é preciso uma adequação extrema entre a ideia e a sua realização pictural. É preciso que se estabeleça uma espécie de inerência tão íntima entre uma e outra que uma parte da ideia se transforme em representação — sem mais possibilidade de a retraduzir em conceitos —, enquanto uma parte dos elementos picturais serve quase apenas à ilustração sensível do inteligível. Assim nasce, por exemplo, esse singular sistema de trocas entre a escrita (nos títulos: "La Nue", "Au Boucher Végétarien", "Autoportrait Posthume"; no quadro: fórmulas matemáticas nas ardósias, "Artichaut Breton, 1,50 F le Kilo") e a imagem, que vai, talvez, mais longe do que o "ceci n'est pas une pipe" de Magritte: porque em Eduardo Luiz, a inerência do inteligível plástico reduplica-se numa outra inerência mais profunda, do pictórico a si mesmo (a que se chamou "perfeição").

"Clepsydre": dois seios tocam-se desenhando, com os seus contornos, um fundo em forma de clepsidra. Cena enquadrada por uma moldura circular representada numa outra moldura, também pintada em trompe-l'oeil. Ideia de uma série de contrastes entre o instante da sensação fina e aguda como as pontas dos seios que se tocam, e a duração dessa sensação; entre a sensação de visão (espectador) e a sensação de tacto (imagem); entre o buraco de voyeur no meio da tela opaca e a ausência de representação na maior superfície do quadro; entre o contraste da inclusão das molduras (redonda/quadrada) e o da reversibilidade forma/fundo da imagem da clepsidra; entre o referente da Escola de Fontainebleau, e este quadro, citação do primeiro; etc. Todas estas oposições se condensam na primeira, cuja realização plástica imbrica a ideia na própria textura das formas: tal como a sensação segrega o seu tempo específico, a forma dos seios desenha naturalmente a clepsidra. Por uma ligeira deslocação de um conjunto que se desdobra em dois, o signo cria a sua significação que adere à sua forma: o signo significa-se a si mesmo. E esta inerência na reversibilidade fundo/forma vai atravessar toda a série de contrastes, reunindo planos diferentes em novas modalidades de inerência: a inversão fundo/ forma imbrica-se na inversão erótica que se prolonga na inversão da relação imagem/ moldura e da relação ilusão/realidade no trompe-l'oeil... A lógica é analógica, e o movimento da analogia comanda o aparecimento das coisas (representações) que valem por signos. Eduardo Luiz não pinta ideias, pinta segundo ideias plásticas.

Mas, num outro sentido, esta pintura corresponde a uma estética pré-modernista, a uma estética da perfeição. A menos que a tão evocada "perfeição" de Eduardo Luiz não tenha exactamente a função que geralmente se lhe atribui.

Comecemos por uma evidência: a perfeição, aqui, não é um traço gratuito de academismo formal; constitui uma exigência que condiciona o gesto do pintor, qualquer que seja o traço ou a cor. É a forma da forma, quer dizer, a "maneira" do que aparece; e, como não podia deixar de acontecer numa pintura cuja lei é a inversão, a forma aparente apela para o seu inverso, a forma do inaparente, do informe, do invisível, do interior. O que explica a fascinação de Eduardo Luiz pela carne dos talhos e dos escorchados, pelo coração das couves e dos frutos, pelo lado invisível das imagens, pelo interior das alcovas e dos corpos femininos. A perfeição do traçado do interior de uma couve lombarda é tal que a sugestão de vísceras ou de miolos se suspende na pura analogia formal, ideal: a essa verdadeira pulsão da perfeição responde a violência da ocultação do informe. A perfeição é exactamente proporcional à força com que encobre, porque é o perfeito que oculta, e assim constrói e revela o que o ameaça, o imperfeito, o negro e, no fim de tudo, sem dúvida a morte. Quanto mais perfeitamente se representar a costeleta de boi, quanto mais viva, mimética, for a imagem, melhor se encobrirá (e se dará a ver) o outro lado da imagem. A "perfeição" entra totalmente na lógica da inversão e da reversibilidade dos contrários.

Por isso os corpos de Eduardo Luiz são perfeitos, as suas peles sem rugas, os seus frutos nunca apodrecidos: a fim que o olhar adivinhe, por detrás, nos núcleos dos vegetais ou no vazio dos céus, um outro real, feito de corrupção e dissolução de formas. Com efeito, o interior não se obtém no fim de um processo contínuo (que pode ser de inclusão de imagens) de aprofundamento do exterior. Os centros das espirais são claros, às vezes brilhantes. O desvelar do visível é interminável: por isso, o interior está por detrás da imagem. Os quadros de Eduardo Luiz têm sempre uma estrutura descontínua, com dois (ou três, ou quatro, às vezes mais) planos ou espaços diferentes, sem ligação evidente: em cima, numa prateleira, uma costeleta, no meio uma espiral, em baixo uma paisagem ao longe; ou uma fita, metade de um corpo de mulher, uma seta. Qual é o fio que une estes elementos?

Não é o seu sentido. Plasticamente, é o interior a que cada um reenvia, na sua perfeição de imagens. Quer dizer: o excesso de perfeição do visível não é já um ideal estético, mas um método de ver. Ou melhor, uma maneira de desvelar, velando. Ao levar a um extremo a semelhança, Eduardo Luiz pára e purifica a imagem; e, ao fazê-lo, a perfeição rompe a relação mimética: a imagem ganhou autonomia, desligou-se do seu contexto representativo. A imagem vale agora por si, como um rosto. É por isso, aliás, que todas as imagens valem por rostos: cada imagem independente encobre e revela um interior, como um rosto. Os corpos femininos de Eduardo Luiz aparecem de costas, ou sem cara, ou com ela velada; e as suas zonas erógenas mostram-se quando o resto do corpo se vela, ou quando se dissimulam num substituto simbólico, sexo-laranja ou sexo-alcachofra. Na "Relíquia Herética" é a própria imagem do rosto que se encobre/revela no véu da imagem das nádegas. Pintura que acentua o encobrir, o tornar invisível o visível como aspecto essencial do movimento geral de velar/desvelar que a atravessa. Se é significativa a recorrência dos véus, lenços, rendas, reposteiros, cortinas, é porque toda a representação, no fundo, é uma imagem-véu.

Assim nasce uma certa lógica dos signos: cada imagem-véu remete analogicamente para uma outra (que a esconde e a revela), e para o fundo obscuro que espreita por detrás de todas. E como o número de imagens é finito, a equivalência que entre elas se estabelece ganha a consistência aparente do real (outra inversão a que Eduardo Luiz submete a imagem): a circularidade dos signos implica a sua reversibilidade, o que vai levar necessariamente à progressiva metonimização das metáforas. O rabanete não representa apenas um falo ou um avião; mas porque os signos são finitos para um número finito de funções, não só são substituíveis uns pelos outros, mas tendem a confundir-se e a confundir as funções, o rabanete torna-se, é um falo e um avião, um falo-avião que atira bombas explosivas como no coito fantasmado da cena primitiva.

Reversibilidade que funda toda a ironia (e também o humor) de Eduardo Luiz. A laranja ou o melão em que damos dentadas olha-nos como uma vagina dentata prestes a engolir-nos e a castrar-nos; o inefável sorriso da Gioconda esconde o erotismo de uma ninfómana castradora (citação, sem dúvida, do "L. H. O. O. Q.", de Duchamp).

A ironia desliza para o humor, e este para o puro jogo infantil; mas, imediatamente depois, o jogo gratuito torna-se humor negro e ironia sarcástica: é o mais sério dos jogos, desses em que se joga o destino. A reversibilidade equilibra a ligeireza do humor com a gravidade irónica, e tudo isso é ainda jogo. Os soldados-peças de xadrez perdem e caiem sob um céu trágico. A vertigem vem agora da sobredeterminação de todos os tipos de signos.

No último período da vida do pintor, o regime de imagens parece sofrer uma depuração. Como se o tempo e a idade aligeirassem o peso da ironia, e uma outra seriedade, mais sóbria e mais profunda, nascesse da longa experiência. Nas extraordinárias anamorfoses do "Déjeuner sur l'Herbe", do "Nu au Paravent", ou do "Nu au Navet", e em tantas outras telas, a bateria de imagens reduz-se, e tudo é dito com uma simplicidade (e uma intensidade) fulgurantes.

Auto-retrato póstumo. Pode-se entender: auto-retrato realizado depois de morto; ou: auto-retrato do que o pintor seria depois de morto, pelo pintor antes de morrer; ou ainda: auto-retrato actual de quem é hoje já só póstumo. Todas estas leituras são possíveis (mesmo a primeira, num registo fantástico), pois trata-se de uma alegoria do auto-retrato, de todos os auto-retratos, necessariamente póstumos: antecipam o quando já passou.

Mas, de repente, a fractura da superfície da imagem por uma bala, precipita aquelas leituras numa outra que as integra e as dissolve. Sim, aquela imagem é de um espelho, aquele momento, apenas fixado pela morte, salva da morte — por detrás do espelho, uma figura fantomática, para lá do tempo (mas que entra no tempo real: a mão, saindo da imagem).

O instante do tiro não é nem anterior nem posterior ao da imagem, é o do seu surgir — nem é um cadáver nem um ser actual que nos olha, mas o próprio pintor tal como é, hoje, para nós, tal como estava destinado a ser para nós quando o não era ainda. Como toda a pintura, no momento em que nasce: antecipa o passado, faz reviver o futuro, sedimenta todos os passados e futuros num presente único— o instante do tiro, tempo real captado pela imagem que se toma tempo da imagem pictural (do tiro e do retrato).

Se o tiro coincide com o nascimento da obra, é porque foi desferido pelo pintor — e esse instante alarga-se, a deflagração dura o tempo da obra, desdobra-se, permanece, confunde-se com a duração da imagem. Já existia antes, no modelo: o auto-retrato mostra-nos o pintor vivendo com uma bala na cabeça (um suicídio, ali, na têmpora); o que faz da pintura o revólver de sempre — por isso (porque a pintura é perfeição), não há estilhaços, nem sangue, nem gritos. Toda a pintura de Eduardo Luiz é uma deflagração suspensa.

Daí vem a sua particular qualidade de silêncio: à beira do grito, como se quisesse constantemente falar, e fosse sempre, já demasiado tarde — grito encoberto pelo silêncio imemorial, antes do acontecer. Deflagração que nunca acontece: denotação surda, não como um eco-vestígio, mas como um eco mais nítido que o original. Eco visual de que se ausentou o som e suspendeu o barulho, como a bola do bilboquet no ar, antes da queda. Nem as bombas-rabanetes chegaram ao solo, nem os cubos caíram, nem o lobo apanhou a mulher, nem a dama de ouros foi esmagada. O acontecimento está sempre antes ou depois: ou infinitamente iminente (e adiado) como a romã-vagina (gre/anade/a) prestes a explodir, ou infinitamente passado (e ocultado) hoje mesmo, como no-lo mostram as gotas de sangue sob um reposteiro atado ("Crucifixion"). Estamos no "futuro anterior" que tece a melancolia. Não se conseguirá nunca o presente. Dessa antiga deflagração por vir, e que nunca virá, ou desse êxtase que nunca houve, restam-nos alguns signos com que brincar nas trevas: Arco-íris da noite.

* Eduardo Luiz, Lisboa, Centro de Arte Moderna, F. C. G., 1990.

desde a p. 159
até a p.