Artes

EDUARDO LUIZ

José Pierre*

ISTO É TANTO MENOS UM CACHIMBO QUANTO TALVEZ OS CACHIMBOS NÃO EXISTAM... "Nenhuma época teve mais intensa consciência do abismo que separa o mundo material do mundo irreal do que o barroco", escreve Richard Alewyn em L'Univers du Baroque** "por conseguinte, o barroco não faz questão em induzir em erro acerca da diferença entre o mundo das aparências e o da realidade. Faz sobretudo questão em dissimular o instante da travessia da fronteira. Quer que não se saiba nunca muito exactamente se nos encontramos ainda no espaço tridimensional ou já na aparência bidimensional; que nos suponhamos ainda aquém, quando na realidade já se está além; e que não deixemos nunca de nos perguntarmos se nos encontramos já além ou se não estaremos ainda aquém."

É curioso que a nossa época de cepticismo generalizado tenha acabado por encontrar, graças a um redobrado sentido crítico, essa ambiguidade fundamental da arte barroca. No cinema, por exemplo, é de bom tom quebrar o desenrolar de uma intriga, de preferência em momentos de intenso dramatismo, por imagens que mostrem a equipa técnica do filme em acção ou durante uma pausa. Em pintura, naquilo a que se chama hiper-realismo, acontece o mesmo: e é assim que vemos um Malcolm Morley, depois de ter minuciosamente reproduzido uma fotografia que mostra uma corrida de cavalos na África do Sul, traçar-lhe por cima uma enorme cruz vermelha. Dizem os exegetas que o faria simultaneamente com o propósito de afirmar a bidimensionalidade da pintura e de recusar à anedota figurada todo e qualquer interesse. Pois sim; mas porque então tanto trabalho para figurar essa anedota? Por muito que se diga, não posso, quanto a mim, deixar de pensar que por detrás de tudo isto se dissimula um enorme mal-estar. E para que não restem dúvidas a esse respeito, debrucemo-nos sobre a obra de Eduardo Luiz. Vale a pena. Com uma virtuosidade fria que, sem sombra de dúvida, dissimula uma paixão particularmente violenta, Eduardo Luiz situa os objectos num contexto que, no mais das vezes, os nega.

A sua factura, que se refere deliberadamente à "história da arte", é de outra época, mas a sua problemática não podia ser mais actual, quanto mais não seja pela exposição das suas recusas: recusa do símbolo, da expressividade, do onirismo. Além disso, o recurso constante a tudo quanto seja da esfera do ornamento convencionado, classificado, catalogado — nomeadamente as molduras de cantos boleados —, como também a pura eloquência "órfica" — no sentido em que a entendia Apollinaire — dos círculos, das ovais, das fitas, das faixas, contribui para reforçar e sublinhar os efeitos de "distanciação" e de ruptura.

Porque havemos nós então, frente a essas pinturas, de nos sentir por vezes tomados de uma espécie de vertigem, de fascínio? A inteligência, por "crítica" que se pretenda -- como está em moda—, não possui tais poderes. Parece-me que a força de atracção -- ou de atracção-repulsão —, aqui, está na razão directa do que está escondido, do que foi afastado, do que está quebrado, por outras palavras, que aquilo que não é dito é o que tão singularmente soa no silêncio. O problema consistiria então em saber aquilo que Eduardo Luiz nos dissimula e, de certa maneira, simultaneamente nos mostra. Tanto pior se a minha resposta parecer demasiado banal, mas estou convencido que aquilo que assim nos é simultaneamente dissimulado e mostrado é a realidade da morte. E que o "instante da travessia da fronteira" que o pintor português nos encobre não é, como nos artistas barrocos, o que estabelece a comunicação entre o "aquém" e o "além", mas entre a vida e a morte, mas entre a existência e o nada.

Não deixa de ser verdade que, não obstante tal diferença, a conclusão que, segundo Richard Alewyn, era válida para aqueles também o seja para este: "Se não podemos nunca saber onde acaba a realidade e onde começa a ilusão, é a própria realidade do mundo que é posta em questão." Não deixa de ter interesse notar que a realidade da morte é captada — ou ocultada —, em Eduardo Luiz, através da realidade da mulher. E não me posso impedir de ler nesse magnífico e misterioso quadro intitulado "La Femme du Boucher Végétarien" qualquer coisa como a destruição emblemática— o assassino ritual — da mulher. O auto de acusação já nós conhecemos: pelo uso inconsiderado do seu sexo — aqui, um melão aberto, algures, uma romã —, a mulher não apenas nos castra — deixando-nos o sexo para sempre prisioneiro do seu —, como vingança de ela própria haver sido castrada, mas, além disso, dá-nos a vida — assim nos condenando à morte. Seria impossível ser-se demasiado severo...

Mas em nenhum outro quadro esse fascínio, a um tempo temido e desejado, exercido pelo sexo da mulher — limiar do interdito e antecâmara da morte — estará talvez tão admiravelmente transposto e com tamanha economia de meios como em "Occultation": uma simples cortina branca, bordada em baixo, que se fende sobre o negro. Que o Eduardo Luiz me não leve a mal se eu dou a entender que a mola da sua actividade pictórica é uma obsessão que de facto todos os homens — isto é, todos os seres humanos de sexo masculino — partilham, mais ou menos confusamente. Cabe-lhe ao menos esse mérito— que é o do artista em geral — de fazer de uma obsessão o trampolim de uma reflexão legível aos olhos de todos. E que se enuncia em termos de beleza — esplendor dos tons de carne, do recorte dos legumes, da textura dos tecidos, de todos os prazeres do tacto transvasados para o visual. Porquanto pintar as realidades deste mundo— ainda que as ponhamos em questão — é saboreá-las duas vezes. Donde se conclui que, de certa maneira, ISTO É TANTO MAIS UM CACHIMBO QUANTO SÓ OS CACHIMBOS EXISTEM.

Eduardo Luiz. Fotografia de Manuel de Brito.

** ALEWYN, Richard, L'Univers du Baroque, Paris, Gauthier, 1964 (Bibliothèque Médiations). Catálogo da exposição individual, Galerie Bellechasse, Paris, 1975. Tradução de Gaëtan Martins de Oliveira.

* Eduardo Luiz, Lisboa. Centro de Arte Moderna, F. C. G., 1990.

desde a p. 163
até a p.