Linguística

SEMPRE IMERSO NO SEU ESPLENDOR

Xie Mian*

A5 de Maio, Ai Qing, o eminente poeta, faleceu. O Sol do novo sistema poético da China desceu. Metade da sua vida foi passada em sofrimento e angústia, que acabou sendo um contributo para as obras imortais que nos deixou. Ele foi o mensageiro autêntico dos tempos de miséria e de sofrimento da China, e também o apóstolo da justiça e do ideal do Homem. Embora em silêncio, sentimos ainda a sua forte existência.

O poeta Lu Yuan escreveu, no Prefácio da antologia Flores Brancas, o seguinte:"Os versos livres chineses nasceram com o Movimento do 4 de Maio, passando por um caminho de pesquisa muito sinuoso: até à década de 30, chegaram a ser uma corrente, que se impôs, graças aos esforços de Ai Qing e de outros. Eles viraram-se para a poesia das escolas antigas e dos pódios solenes e veneráveis, para que fosse purificada ao longo dos tempos, com tantas lutas e sofrimentos, cantando, em consonância explícita, a simplicidade, a naturalidade e a honestidade, o presente e o futuro do povo. Podemos, por isso, falar de uma tradição da luta pelos versos livres chineses. Os autores desta antologia, como seguidores conscientes daquela tradição, reconhecem, com agrado, que a maioria deles cresceu sob a influência de Ai Qing." De facto, não só estes eminentes poetas da antologia Flores Brancas, que cultivaram os versos livres, receberam a sua influência, como também, desde a década de 30 até à actualidade, todo o campo poético da China a tem recebido.

A MUSA QUE PÕE FIM À REVOLUÇÃO DA NOVA POESIA

Todos nós estamos imersos no esplendor deste Sol — Ai Qing. Ele amadureceu a Nova Poesia chinesa. Quem a reconhece e aceita com agrado não está alheio à sua luz nem a pode desviar. Foi ele que libertou a poesia pesada e monótona (excluindo o que envolvia a atmosfera decadente) dos ritmos tradicionais chineses, permitindo habilitar a Nova Poesia chinesa com o ritmo da modernidade. Ele criou uma forma de expressão natural, simples, viva, leve, explícita, afectuosa e flexível, sem qualquer limitação, o que modificou a linguagem corrente em "grãos e fios de pérolas". O encantamento da poesia de Ai Qing provém do seu extraordinário prosaísmo; na sua escrita, verificam-se as forças da musa que contribuíram para uma linguagem corrente poetizada.

Na "experimentação" de Hu Shi, é de reconhecer o mérito da criação da Nova Poesia chinesa, mas, durante muito tempo, esta não conseguiu libertar-se da sombra da melodia dos Ci, dos designados como Antiga Poesia chinesa: Shi, Ci e Qu. Em suma, falta à Nova Poesia a autonomia e o abandono radical dos requisitos da Antiga Poesia. A autonomia da Poesia Baihua (os versos livres escritos em linguagem moderna) aparece, pela primeira vez, na obra de Zhou Zuoren, intitulada Ribeiro. O êxito de Ribeiro representa o abandono radical da melodia dos Ci da Antiga Poesia com o realce pela primeira vez, pelo Autor, do sublime da Poesia Baihua. Verificam-se, no entanto, elementos fastidiosos e uma grande dimensão.

A poesia chinesa passou de clássica para moderna, percorrendo um caminho tortuoso e difícil, passagem essa que Ai Qing finalizou. Na história da evolução da Nova Poesia, Hu Shi deu à luz a sua partida; Guo Moruo introduziu nela os sentimentos românticos exacerbados do Movimento do 4 de Maio; finalmente o remate da criação desta Nova Poesia Baihua foi concretizado por Ai Qing. Por isso, o esforço de Ai Qing é insubstituível, enfileirando entre os grandes pioneiros e fundadores da Nova Poesia chinesa.

No ano de 1932, altura em que regressou de Paris, foi imediatamente preso. Foi nesta altura, no cárcere, que criou o seu maior poema "Rio Dayen: Minha Ama de Leite", em que o poeta demonstra o seu posicionamento referente ao progresso e ao carácter do ser humano. A criação de Ai Qing opera-se com base na dor e angústia e no sofrimento. Desde o início, a sua criação poética não foi ao acaso, nem ele tão-pouco encarava o poema como um pretexto de desabafo dos seus sofrimentos; pelo contrário, a sua criação iniciou-se com base na comunidade chinesa e em toda a humanidade, mostrando um forte impulso, uma grandeza e uma tolerância sem limite.

AI QING FOI FORMADO PELO SOFRIMENTO E PELA DOR

De facto, Ai Qing foi formado pela dor. No início, ele sentia a melancolia que se esconde atrás das cores do céu e que está no pincel que pinta a terra da China, da cor ao som e do som aos sentidos de todo o corpo, abarcando a tristeza e a fúria de toda a China, e os gemidos, clamores e gritos, emitidos nesta terra impregnada de lágrimas e sangue. Podemos, por isso, dizer que a sua poesia foi predestinada para uma criação ausente de alegria. Este poeta, que conseguiu fortemente manifestar a tristeza da China, escreveu o seguinte:

"Porque se enchem de lágrimas os meus olhos

[com tanta frequência?

Porque amar esta terra tão profundamente..."

("Eu Amo esta Terra").

Aquele carrinho de mão que passou pelos leitos secos e marcou um sulco muito forte; aquele mendigo que vagueava ao longo do caminho de ferro, estendendo decididamente a mão, estão a narrar a imensa tristeza e a enorme melancolia da terra chinesa. Estes versos representam um forte enlace sentimental entre o poeta e a sua terra e o seu povo. Ele partiu da sua terra natal, das aldeias do Sul da China, do seio do "rio Dayen", dirigindo-se ao Norte doloroso, sem fim; partiu do individual para o social, percebendo a preocupação e o sofrimento que atravessavam toda a China: guerra, fome, injustiça e autoritarismo. Toda esta mágoa saiu da caneta, de forma nítida e desembaraçada, contribuindo para uma estética poética singular, onde se harmonizam a tristeza interior com a forma livre, criando um estilo inconfundível, o estilo de Ai Qing. Há poetas que embora dotados não dominam as circunstâncias envolventes; também há poetas cuja produção poética se inspira na sua época, mas a quem falta originalidade estética. Com Ai Qing é diferente, pois ele não só conseguia acompanhar de perto o ritmo da época como também possuía um carácter artístico muito especial. Isto tornou-o um poeta à escala mundial que exerceu uma grande influência sobre outros.

FILHO DO SOL E DA AURORA

Ai Qing despertou, por um lado, com a sua tristeza e o seu sofrimento, a nossa preocupação para com a realidade desditosa; e, por outro lado, sem dúvida o mais importante, acendeu as tochas, iluminando o que o rodeava, que era tão escuro como a alta noite, acendendo a fé contra as trevas, e conduzindo-nos do afecto ao espírito tal qual o filho do Sol e da Aurora. Mesmo na altura das maiores trevas políticas, ele não deixou de ser como o nosso grande mensageiro:

    "Do lado dos túmulos remotos; 
    dos tempos de trevas; 
    da corrente da morte do Homem, 
    a cordilheira montanhosa profundamente 

[adormecida foi assustada,

como os arcos com chamas voando em cima

[da duna,

o Sol vem rolando para mim..."

Ele cantava continuamente cantigas como esta, maldizendo as trevas, conduzindo à luz existente no fim daquele caminho de trevas. Quando já há muito existíamos carregados de dor e de sofrimento, ele lançou a "Mensagem da Aurora"; depois, passada a imensa noite horrorosa, como um sobrevivente de quem "morre pela segunda vez", cantou o "Hino à Luz", aparecendo à nossa frente. Por isso, na nossa memória, Ai Qing aparece-nos não só como um mensageiro do flagrante, do sofrimento e da dor da China, mas também como um apóstolo da justiça e do ideal do Homem.

O ESPÍRITO POÉTICO QUE CANTA ETERNAMENTE

No campo poético chinês, Ai Qing é um poeta muito vigoroso, cujo tempo de criação abrange mais épocas do que os outros. Muitos dos poetas, ao entrarem na terceira idade, muitas   vezes não conseguem poetar o que pensam. Ai Qing, pelo contrário, após tantos sofrimentos e tantas dores, conseguiu criar um outro período brilhante da sua produção poética, com obras como o "Peixe Fossilizado", "Hino à Luz" e "Arenas da Antiga Roma", redigidas já na década de 80.

Os que elaboram a História da Produção Poética gostam de empregar as novas correntes ou as renovadas para substituir ou negar os feitos dos antepassados. No conceito deles, o progresso poético é um processo de alteração, substituição e de renúncia. Na realidade, esta História caracteriza-se mais por uma operação de adição do que de subtracção. Há poetas que nunca são ultrapassados e as suas obras são imortais: isso foi o que aconteceu com o nosso grande poeta Ai Qing:

"Inunda o teu coração sincero na tristeza, na alegria, no ódio, no amor e nos desejos de todos. Os desejos de criação (dos poetas dessa época) aumentam de acordo com o desejo de se dirigirem ao futuro do Homem. Só os poetas que não contrariam a vontade comum do Homem merecem o respeito do Homem de hoje e a lembrança do Homem do futuro" (A Poesia e a Época).

O poeta que consegue dominar este espírito torna-se imortal.

Quando Ai Qing estava de pé ao nosso lado, mesmo em silêncio, podíamos pressentir a existência dele; quando ele saiu definitivamente de ao pé de nós, sentimos, de facto, uma lacuna incolmatável. Ai Qing entrou no eterno silêncio, o Sol desceu, e nós entramos nas trevas infinitas. Com a perda deste poeta, a poesia chinesa parece perder, de repente, a sua importância! Eis o nosso sentimento verdadeiro na despedida final do nosso eminente poeta.

Tradução do original chinês por

Ó Tinlin; revisão de Raul Pissarra.

* Professor catedrático na Faculdade de Estudos Chineses da Universidade de Pequim.

desde a p. 93
até a p.