Linguística

A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO DE IDENTIDADE CULTURAL NO FINAL DO SÉCULO XX

Rien T. Segers*

1. PORQUÊ FALAR DE "IDENTIDADE CULTURAL"?

Há uma vellha rima infantil que responde a esta pergunta:

"Os Alemães vivem na Alemanha, os Romanos

[vivem em Roma,

Os Turcos vivem na Turquia; mas os Ingleses

[vivem no lar."

Esta comunicação preocupar-se-á com a semântica das duas linhas desta rima infantil, que é — escusado será dizer — uma rima infantil "inglesa".

O objectivo fulcral desta comunicação será explorar a ideia de como poderemos descrever o conceito de identidade cultural. Tendo em conta o forte carácter interdisciplinar do tema proposto e a sua natureza complicada, eu só vou conseguir aflorar o assunto muito à superfície e apresentar uma visão geral do mesmo.

Se examinarmos as inter-relações das culturas hoje, no final do século, poderemos reconhecer duas tendências contraditórias mas fortes: "[...] por um lado, há a procura de uma autenticidade cultural, um regresso às origens, a necessidade de preservar as línguas menores, o orgulho das particularidades, a admiração pela auto-suficiência cultural e a manutenção das tradições nacionais; por outro lado, nós encontramos difundida uma cultura universal uniforme, o aparecimento de mitos supranacionais e a adopção de estilos de vida semelhantes em ambientes completamente diferentes. As modernas sociedades tecnológicas geraram uma cultura de massas simultaneamente transnacional e múltipla com a sua linguagem própria e cujas características linguísticas são já universalmente evidentes."1

Este paradoxo entre nacionalização e globalização pode ser encontrado em muitas partes do mundo sob variadas formas. No que diz respeito à unificação europeia, por exemplo, Philip Schlesinger descreveu habilmente este paradoxo da seguinte forma: "Por um lado, a difícil tarefa da União Europeia de procurar uma unidade transcendente — uma unidade que possa reconhecer diferenças ao nível das suas componentes — questiona a nação-estado a partir do topo, contribuindo de forma polémica para crises de identidade nacional. Os desenvolvimentos político e económico no processo de integração estão, contudo, desfasados do processo cultural: o que a identidade europeia 'pudesse ser' permanece ainda uma questão em aberto. Por outro lado, os ressurgimentos etno-nacionalistas no ex-bloco comunista e os actuais desenvolvi-mentos no espaço da Europa ocidental — quer sejam separatismos neonacionalistas ou nacionalismos racistas — tendem a reafirmar o princípio da nação-estado como o fulcro de identidade e de controlo político."2

Schlesinger apontou claramente o derradeiro paradoxo da última década do século xx: o choque entre a cultura indígena e interna de uma determinada comunidade viva por um lado, e por outro uma cultura externa global de um determinado número de comunidades não-existentes mas que formam um conjunto. A um nível programático este paradoxo aparece sob vários slogans e palavras-chave tais como: nacionalização contra globalização, a tendência "o pequeno é belo" contra a tendência "a grandeza é necessária e inevitável", a irresponsabilidade individual contra a eficiência centralista, etc. A um nível pragmático estes slogans desencadeiam conflitos a vários níveis: entre um indivíduo e o seu ambiente directo de trabalho (por exemplo um departamento universitário), entre um departamento e uma nova estrutura de uma faculdade, entre a faculdade e a criação de um novo sistema governamental, entre um governo e os regulamentos da União Europeia, etc.

Arjun Appadurai sugere que a globalização consiste em cinco dimensões, cinco correntes culturais que se entrecruzam a vários níveis em muitas partes do mundo. "Primeiramente, há as ethnoscapes constituídas por correntes de pessoas: turistas, imigrantes, refugiados, exilados e trabalhadores estrangeiros contratados a prazo. Em segundo lugar, há as technoscapes, a maquinaria e as correntes de fábricas produzidas pelas multinacionais e corporações nacionais e pelas agências governamentais. Em terceiro lugar, há as finanscapes, produzidas pelo rápido fluxo de dinheiro na bolsa cambial de valores. Em quarto lugar, há as mediascapes, os repertórios de imagens e de informação, as correntes que são distribuídas pelos jornais, revistas, pela televisão e pelos filmes. Em quinto lugar, há as ideoscapes, ligadas às correntes de imagens associadas a ideologias de movimentos de estado ou antiestado as quais são compostas por elementos da mundivisão do Iluminismo ocidental — imagens de democracia, liberdade, bem-estar, direitos, etc."3

É tentador especular relativamente à seguinte questão: Qual será a grande força do futuro: a nacionalização ou a globalização? A pergunta é, obviamente, algo delicada, para ser respondida em poucas páginas. De qualquer modo, ambas as tendências com os seus objectivos diametralmente opostos estão de facto no mesmo lugar e ao mesmo tempo. Não existe qualquer razão, contudo, para pensar que a tendência para a globalização será uma força muito maior do que a tendência para a nacionalização num futuro próximo.4

Gostaria de referir um exemplo muito brevemente. A americanização é um aspecto importante da globalização. Está representado nas cinco correntes culturais que acabei de explicar. A americanização afectou uma grande parte das culturas, mas, regra geral, a recepção da cultura americana (ou o que se considera como tal) poderia ser diferente de acordo com a especificidade da cultura recipiente. Algumas convenções importantes que constituem a especificidade de uma determinada cultura estruturam a direcção e a profundidade da americanização. Atrever-me-ia mesmo a dizer que a americanização foi levada a cabo de forma diferente na China e nos Países Baixos. Se por acaso se pensar que isto é uma observação trivial, eu poderia ainda acrescentar que a americanização foi levada a cabo de forma diferente na Alemanha e nos Países Baixos. Este tipo de questões constitui um interessante objecto de pesquisa, mesmo no campo dos estudos literários, no que diz respeito aos aspectos da americanização.

Por um lado, nós vemos que "o nacio-nalismo está de volta em todo o mundo com uma vingança"5 do Canadá à Índia, da ex-U. R. S. S. ao Iraque, do Japão à Turquia. Por enquanto eu pertenço à categoria dos que acreditam que a nacionalização vai dominar a globalização pelo menos num futuro próximo, e não só fora da Europa ocidental como alguns críticos nos querem fazer crer, mas também até certo ponto em países que pertencem aos grupos-chave da União Europeia. Helmut Dubiel,6 por exemplo, aponta novas formas de nacionalismo alemão. Mas tendências semelhantes estão bem vivas em muitos outros países da União Europeia.

Eu concordo plenamente com as conclusões de Rolf Dahrendorf7 a partir da sua cuidada análise relativamente ao futuro da nação-estado. Ele está convencido que mesmo nas próximas décadas a nação-estado vai permanecer como a estrutura dos direitos individuais e o centro a partir do qual as relações internacionais vão ser construídas. A nação-estado não vai sofrer rupturas de novas evoluções sociais e políticas. Esta ideia traduz-se em alemão da seguinte forma: "Europa i st ein Kopfgeburt und die Regionen sprechen das Herz an" [A Europa é uma construção mental e as regiões dizem fundo ao coração].

Por outro lado, nós vemos o forte impacto das cinco correntes culturais da globalização. A globalização vai continuar como uma tendência bastante forte, e esta força poder-se-á acentuar ainda mais. Mas em décadas vindouras a tendência para a nacionalização vai ser capaz de, até um certo ponto, adoptar e de se adaptar a muitas correntes gerais. A globalização será, em grande medida, nacionalizada. Isto significa — respondendo ao título deste capítulo com uma metáfora — que o principal lar dos Ingleses é Inglaterra mas a sua casa de verão situa-se num lugar chamado mundo. É óbvio que o mesmo princípio se aplica aos Alemães, aos Romanos e aos Turcos. Mas sejamos realistas, sempre que se empreende uma viagem intelectual através de uma metáfora, é essencial que se saiba onde se deve sair.8 Será melhor sair desta metáfora aqui mesmo, porque a realidade é muito mais complexa do que esta metáfora possa indicar.

Gostaria de acrescentar que a ameaça da nação ou da nacionalização não consiste primeiramente nas tendências de globalização, mas essa ameaça vem também de dentro da própria nação. Nesta linha de ideias poderíamos referir a ruptura no Canadá, na Bélgica, em Espanha, na ex-Checoslováquia e na Jugoslávia, e, de certa forma, poderíamos acrescentar paradoxalmente a unificação da Alemanha, onde se podia ouvir a seguinte anedota pouco depois da unificação. Um alemão oriental diz para um alemão ocidental: "— Agora somos um único povo!" E o alemão ocidental responde: "— Nós também!".

A compreensão do difícil paradoxo nacionalização contra globalização representa um objecto extremamente interessante e compensador para um determinado número de disciplinas. A compreensão deste paradoxo, contudo, só poderá ser alcançada através do conceito de identidade cultural. Este próprio conceito representa a derradeira razão para aqueles conflitos sérios entre as pequenas comunidades e o grande ensemble constituído ou entre duas ou mais comunidades pequenas.

2. O QUE SIGNIFICA "IDENTIDADE CULTURAL"

Grande parte da investigação académica e do jornalismo toma como ponto de partida estereótipos fixos, baseados que são em crenças ontológicas nas especificidades de determinada comunidade. Que alternativas podem ser oferecidas de modo a tornar possível ultrapassar a velha abordagem ontológica e essencialista da identidade e ignorar o novo extremo relativismo que diz que a identidade escapa a qualquer tentativa de definição?

Na sua mais recente colecção de ensaios, Ernest Gellner pede que se tome atenção à identidade cultural "[a qual] não é uma ilusão inventada por românticos confusos, uma ideia disseminada por extremistas irresponsáveis, e usada por classes egoístas privilegiadas para ludibriar as massas, e lhes esconder os seus verdadeiros interesses. O seu encanto está enraizado nas verdadeiras condições da vida moderna, e não pode desaparecer quer com um truque mágico quer através de uma absoluta boa vontade e das preces de um espírito de irmandade universal, ou através da encarceração dos extremistas. Temos que compreender essas raízes e viver com os seus frutos, quer gostemos quer não."9

Por forma a podermos entender as raízes da identidade cultural, nós precisamos de compreender a semântica deste conceito. Nesse caso não precisamos de recorrer ao trabalho de Sigmund Freud, George Herbert Mead, Erik Eriksson, Talcott Parssons, Jürgen Habermas e outros para encontrar uma descrição bem fundamentada de identidade. William Bloom já realizou essa tarefa, concluindo que "[...] a identificação é um imperativo comportamental inconsciente e inerente a todos os indivíduos. Os indivíduos procuram a identificação, de forma activa, de modo a atingir uma segurança psicológica e tentam manter, proteger e apoiar essa identidade de modo a manter e alcançar essa segurança psicológica que é uma questão sine qua non da estabilidade da sua personalidade e do seu bem-estar emocional. Este imperativo funciona desde a infância, passando pela idade adulta até à velhice. Para além disso, as identificações podem ser partilhadas, tendo como resultado que os indivíduos que partilham a mesma identificação tendem a actuar em consonância para atingir a sua identidade partilhada."10

As palavras transcritas são agradáveis e nós até podemos concordar com elas. Mas o problema surge quando tentamos descrever a identidade pessoal de alguém ou quando tentamos definir a identidade cultural de um determinado povo. Como todos sabemos, falar de identidade pessoal e cultural pode ser arriscado especialmente se uma forte convicção, estereótipos e uma forte crença na singularidade de uma determinada pessoa ou país são as únicas linhas mestras.

Uma das melhores e mais recentes definições de "cultura" foi dada por Geert Hofstede. Eu partilho da sua visão porque a sua definição reúne três elementos fulcrais. A definição de Hofstede demonstra o verdadeiro valor da cultura, a importância do relativismo cultural e o carácter construído da cultura.

Hofstede distingue dois significados distintos na palavra cultura. Há a cultura um que se refere à civilização, o requinte da mente que podemos encontrar na educação, arte e literatura. Esta não é a descrição de cultura que eu gostaria de referir. Gostaria de seleccionar a definição dois de cultura feita por Hofstede a qual "[...] está relacionada com processos humanos muito mais fundamentais do que a definição de cultura um; está relacionada com as coisas que ferem. A definição de cultura (dois) é sempre um fenómeno colectivo, porque é parcialmente partilhado com pessoas que viveram no mesmo ambiente social, onde foi interiorizada. É 'a programação colectiva da mente que distingue os membros de um grupo ou categoria de pessoas de outra'."11

De acordo com Hofstede a cultura aprende-se, não é inata. Deriva do ambiente social de cada um e não dos nossos genes. Ele distingue cultura da natureza humana, baseando-se no seguinte raciocínio: como seres humanos podemos sentir medo, raiva, amor, alegria, tristeza, etc. Todos estes sentimentos pertencem à natureza humana. Mas a forma como esses sentimentos são expressos é modificada pela cultura. A cultura como software12 da mente. O último é descrito como o nosso único conjunto pessoal e programas mentais que não partilhamos com mais nenhum outro ser humano. A descrição de "personalidade" de Hofstede é algo ingénua, mas o seu conceito de cultura é extremamente útil.

Hofstede tem uma concepção sistémica (na linha de Niklas Luhmann) do conceito de cultura. Ele não vê a "cultura" como um vasto domínio pouco específico, mas como uma entidade com níveis diferentes que se inter-relacionam. Simultaneamente nós pertencemos sempre a um dos seguintes níveis, indicadores da identidade, por exemplo: um nível nacional de acordo com o nosso país, uma afiliação regional, étnica, religiosa e linguística; um nível que define o sexo; um nível que define a nossa geração; um nível que define a classe social; um nível organizacional para aqueles que trabalham. Isto implica que seja impossível falar sobre "a" identidade de uma pessoa ou de um grupo: isso pode variar em função das circunstâncias.

Relativamente ao conceito de "identidade cultural" isto implica que a identidade cultural de um determinado grupo ou povo seja determinado em parte pela sua identidade nacional. A identidade cultural é um conceito mais lato do que identidade nacional. A este respeito concordo com a posição de E. J. Hobsbawm que enfatiza que o facto de pertencermos a um determinado estado "é só uma forma através da qual as pessoas descrevem a sua identidade entre muitas outras que usam com este propósito, de acordo com a ocasião".13 Se isto se justifica para concluir, com base nesse argumento, que o poder do nacionalismo está a retroceder em todo o mundo, como o faz Hobsbawm, isso é outro assunto e parece ser em que se acredita profundamente. A luta entre nacionalização e globalização ainda não está decidida, mas com base em recentes acontecimentos políticos nalgumas partes do mundo, as guerras e as lutas que prevejo estariam nos antípodas daquilo que Hobsbawm refere. A tendência para a nacionalização poderá deter os trunfos num futuro imediato.

Voltemos a Hofstede. Ele levou a cabo um projecto de investigação intercultural de larga escala, que revelou as cinco dimensões seguintes, tendo por base quais as culturas que podem ser classificadas:

1. Desigualdade social, incluindo as relações com a autoridade.

2. A relação entre o indivíduo e o grupo.

3. Conceitos de masculinidade e de feminismo; as implicações sociais de se ter nascido rapaz ou rapariga.

4. Formas de lidar com a incerteza, relacionada com o controlo da agressão e da expressão das emoções.

5. Uma orientação na vida a longo prazo contra uma orientação a curto prazo.14

A concepção de cultura de Hofstede tem um certo número de vantagens. De acordo com a sua concepção a cultura é uma entidade sempre em mutação e nunca estática; a cultura é aprendida e não inata; não existem critérios na base dos quais a cultura A seja "intrinsecamente" melhor do que uma cultura B (com as devidas excepções teóricas tais como as culturas que violam deliberada e seriamente os direitos humanos); a cultura é mais uma construção mental do que propriedade inata de uma determinada comunidade. Isto quer dizer que a visão de cultura de Hofstede é mais útil e melhor de aplicar à investigação do que muitas outras definições de cultura, que se baseiam em concepções ontológicas e essencialistas.

Contudo, o ponto fraco do livro de Hofstede é o facto de o conceito de identidade cultural não ser usado. Este conceito, contudo, é necessário para discutir questões sempre que duas culturas entram em contacto uma com a outra ou — a um nível académico — são comparadas umas com as outras. Uma questão-chave tal como "Como é que o carácter distintivo ou a especificidade de uma cultura pode ser determinado?" é de facto uma questão que diz respeito à "identidade cultural" de uma determinada comunidade. Os traços distintivos "e" comuns de uma cultura só podem ser determinados de forma comparativa. Tal como os sociólogos americanos Jepperson e Swidler afirmaram recentemente: "A estratégia essencial para tornar o invisível visível é 'claro' [minhas aspas] a investigação comparativa. E é precisamente por essa razão que disciplinas que têm uma base comparativa deveriam liderar a investigação neste domínio."15 Alguns livros onde se discute a questão da identidade cultural de uma determinada nação referem-se muitas vezes a "características especiais", "características" e "traços" de um país ou do seu povo. Muitas vezes estas observações são baseadas em impressões, introspecções, mitos, e — a não esquecer — anedotas e não tanto informações factuais ou investigação empírica.

Obviamente não quero negar por exemplo que os milhares de anedotas existentes relativamente aos estereótipos nacionais e culturais podem funcionar como um indicador de um aspecto peculiar relacionado com a identidade cultural de uma determinada comunidade ou nação. Mas são unicamente indicadores e nada mais do que isso.

Consideremos estas duas anedotas. A primeira criei-a em Nova Iorque e a segunda em Tóquio.

Num hotel de Nova Iorque um americano e um engenheiro japonês encontram-se pela primeira vez e apresentam-se mutuamente. Obviamente que o americano se apresenta primeiro: "— Olá, chamo-me John, John Smith. Prazer em conhecê-lo. Sou engenheiro electrónico e — a propósito — de momento trabalho para a Kodak." Depois de dois minutos de silêncio o japonês diz: "— Olá, eu sou o Toyota e o nome é ninguém." Esta anedota pode servir como um indicador da auto-imagem do americano como individualista, autoconfiante e um homem de sucesso. A anedota também constrói implicitamente a imagem de que os profissionais japoneses não são indivíduos, que não são nem autoconfiantes nem homens de sucesso.

Naturalmente que os japoneses por seu lado têm um bom lote de anedotas sobre americanos tal como a que passo a enunciar. Um americano e um japonês encontram-se num safari em África. Vão dar um passeio juntos um pouco fora do circuito turístico que é seguro. De repente, são confrontados com um leão faminto que os fitava. O americano começou imediatamente a correr. Mas o japonês não se mexe e abre cuidadosamente a sua pasta de cabedal para tirar os seus sapatos de desporto. O americano olha para trás e começa a gritar: "— Despacha-te, tenta salvar-te, deixa lá os sapatos; não vais ter hipótese de correr mais do que o leão." O japonês pensa, espera um pouco e diz educadamente: "— Aquele que eu tenho que ultrapassar és tu, não é o leão." Esta anedota pode servir como um indicador da auto-imagem dos japoneses enquanto inteligentes, civilizados e competitivos, enquanto que os americanos são vistos como impulsivos, descuidados e imponentes.

Estas anedotas não só demonstram o conhecido facto da psicologia social que a imagem de um povo vizinho é construída como um correlativo negativo da sua própria imagem.16 Mas as anedotas também deveriam mostrar que a construção da identidade cultural envolve pelo menos duas partes: o grupo interno e o grupo externo, a percepção de nós próprios e a percepção do outro (Selbstwahrnehmung e Fremdwahrnehmung). O japonês olha para o americano a partir da sua perspectiva e vice-versa.

Nos nossos dias é extremamente importante ter uma visão adequada e equilibrada da noção de identidade cultural de uma determinada nação. Uma visão distorcida pode prejudicar o bom entendimento e a comunicação adequada entre os cidadãos dessa nação. Muito frequentemente os conflitos políticos e as guerras têm as suas raízes profundas em visões distorcidas de nós próprios e da identidade estrangeira. O que foi dito até agora no que diz respeito à identidade cultural aplica-se também à identidade literária, com a aparente excepção de que a concepção errada da identidade literária de uma determinada nação poderia não ter consequências tão graves como a distorção da noção de identidade cultural.

A identidade cultural tem sido muitas vezes vista como um leque de características que são específicas de uma determinada cultura e "inatas" a um determinado povo. E mesmo agora, ainda há muitos exemplos (e não predominantemente na periferia do conhecimento) deste tipo de pensamento. Uma outra perspectiva da noção de indentidade cultural tem um pendor estruturalista, através do qual a cultura é vista como um conjunto de características que se relacionam umas com as outras, mais ou menos independentes das pessoas que constituem essa cultura. A alternativa para a concepção da "identidade" como um conjunto de características estruturais peculiares é a ideia da identidade enquanto "construção".

No âmbito de tal enquadramento construtivo a identidade cultural de uma determinada nação ou de um determinado grupo étnico dessa nação pode estar relacionado com três factores: (1) As características formais respeitantes à nação ou grupo num dado momento na história. (2) A programação da mente (de acordo com Hofstede) no âmbito de uma determinada comunidade com base na qual a identidade cultural está a ser construída pelo grupo interno. (3) A forma como as pessoas do exterior conduzem os processos de selecção, interpretação e avaliação respeitantes às especificidades do grupo interno, o que significa por outras palavras, a imagem exterior da identidade cultural de uma nação estrangeira ou de um grupo. A relação entre estes três elementos é dinâmica. Idealmente, a construção (académica) da identidade dever-se-ia basear nestes três factores.17

O que são as carecterísticas formais no que diz respeito à noção de identidade cultural? As características formais são "factos", números que podem ser encontrados em livros de estatística relativos a um determinado país ou grupo étnico e que determinam, em grande medida, a programação da mente de uma determinada sociedade, e vice-versa. Por exemplo: o número total de habitantes de um país, o tamanho desse país, o seu produto interno bruto, o rendimento médio, a percentagem de desemprego, e — aproximando-nos de casa — o número de museus, de livros editados, os géneros, a relação entre livros "nacionais" e as traduções de obras de outros países, etc.

Uma vez que não temos acesso directo à forma como a mente das pessoas está programada, só podemos confiar nos indicadores disponíveis. Temos que ver o estilo de conduta e comunicação de uma determinada comunidade, fazendo referência à definição de cultura de Gellner18 que é mais pragmática. Este estilo de conduta e comunicação dos cidadãos de um país ou os membros de um determinado grupo étnico constitui a sua visível identidade cultural. Esta clara identidade cultural pode ser suprimida ou tematizada pelos líderes de opinião(indivíduos e instituições) dentro dessa pequena comunidade. É impossível falar de identidade cultural sem ter em linha de conta quem a define e de que forma é que isso acontece.

O terceiro elemento do triângulo da identidade consiste nas construções feitas pelas pessoas, muitas das vezes líderes de opinião, ou instituições do exterior relativamente à conduta e à comunicação que se desenvolve dentro do próprio povo.

Seria enganador pensar que a perspectiva que considera a identidade cultural ou nacional como uma construção teve origem na teoria de sistemas (de Ludwig von Bertalanffy a Niklas Luhmann). Os investigadores que trabalham neste domínio chegaram mais ou menos todos à mesma conclusão. Um exemplo interessante é Benedict Anderson, a inventar o termo "comunidade imaginada". Numa tentativa de definir o conceito de "nação" ele afirma: "[...] é uma comunidade política imaginada — e limitada quer enquanto inerentemente limitada quer soberanamente. É 'imaginada' porque os membros mesmo da mais pequena nação nunca conhecerão a maior parte dos seus conterrâneos, nunca os encontrarão ou sequer ouvirão falar deles, contudo na mente de cada um vive a imagem dessa comunhão."19 Para que se perceba melhor eu não quero afirmar que a noção de "imaginação" de Anderson é equivalente à noção de "construção" de Luhmann. A semelhança deverá ser encontrada na ênfase do processamento mental de um determinado objecto.

Considerar a identidade cultural como construção significa que isto é uma concepção mental que poderá variar de acordo com o construtor, o momento e o lugar dessa mesma construção. Isto implica que seja impossível falar sobre "a" identidade cultural de uma comunidade. Em teoria há muitas formas de identidade cultural de determinada comunidade assim como há momentos, lugares e pessoas que constroem essa identidade. Isso não deveria impedir os investigadores, contudo, da imperiosa tarefa de descrever e sistematizar as características comuns baseadas nessas várias identidades existentes. Para além disso, somos confrontados na realidade com uma só construção "dominante" de identidade cultural de um determinado país.

A mais recente noção no campo do conceito de identidade cultural é o prefixo "pós", enquanto tentativa de resolver o paradoxo entre a ideia de globalização e nacionalização. O termo "identidade pós-nacional" foi apresentada pela primeira vez num livro recentemente publicado por Dewandre e Lenoble.20 Esta noção implica o paradoxo entre a necessidade da construção de uma identidade política europeia baseada no desenvolvimento da União Europeia contra a promoção da distinção cultural das várias regiões e nações europeias. Uma identidade política contra muitas identidades culturais distintas, em que todas vivem debaixo do mesmo tecto chamado identidade pós-nacional. Este conceito de identidade pós-nacional parece ser muito académico, apoiado por boa-vontade "de Bruxelas com amor".21

É impossível investigar a "completa" identidade cultural de uma determinada comunidade. O melhor que podemos fazer é seleccionar e investigar alguns elementos que se supõe serem a parte fulcral dessa comunidade. A literatura e a sua recepção oferecem uma excelente oportunidade para construir elementos básicos de identidade cultural de uma determinada nação ou grupo baseado na habilidade literária para representar aspectos importantes de uma determinada comunidade.

3. A IMPORTÂNCIA DA "IDENTIDADE CULTURAL"

Áreas como a filosofia, a história, a sociologia, a psicologia, a antropologia, as relações internacionais e a ciência política têm-se debruçado sobre o conceito de identidade cultural a uma escala mais ou menos alargada, mas sobretudo combinado com tópicos tais como a unificação europeia, o nacionalismo, e a investigação dos estilos de vida. O aspecto cultural, no sentido mais restrito da palavra, não tem merecido muita atenção. A introdução a este assunto pode ser encontrada em disciplinas com uma dimensão estética tais como os estudos literários, o drama e os estudos em comunicação social.

Concentrando-me por um momento na minha própria área, a literatura comparada orgulha-se de ter uma larga experiência em comparar autores e textos, movimentos literários, histórias literárias de duas ou mais culturas. Mas a questão da especificidade de uma determinada cultura, ou de uma determinada literatura, já foi levantada algumas vezes, mas não foi respondida pelo menos de forma adequada. Até agora o problema que diz respeito ao espírito da literatura inglesa, e ao espírito da literatura chinesa, etc., ainda não foi resolvido. A investigação da identidade literária e cultural constitui um tópico eminente para um campo como a literatura comparada. Esta abordagem pode resultar em novos desafios e possibilidades prometedoras.

Nesta comunicação tentei mostrar que não só os Ingleses vivem no seu lar, mas isso também acontece com os Alemães, os Romanos e os Turcos. Também tentei mostrar — e esse foi sem dúvida o ponto principal — que o estudo da identidade cultural se tornou (ou é mais do que nunca) um objecto crucial para o conhecimento em todo o mundo.

Eu reconheço que o estudo da identidade cultural de uma nação ou de um grupo dessa mesma nação não constitui, por si só, uma directa ligação ao Céu. Por um lado, o conceito é ilusório e vago. Por outro, a "especifidade real" (ou a especificidade tal como é construída pela nossa consciência) de uma comunidade é demasiado complexa para ser abrangida por um só conceito. Para além disso, há uma razão adicional para que sejamos cépticos e críticos, o que também é verdade para conceitos semelhantes como sejam "a tradição", a "cultura", a "nação" e o "grupo étnico". Tal como Richard Handler referiu e muito bem a este respeito: "A identidade tornou-se um importante conhecimento e uma construção cultural em meados do século xx, particularmente no domínio do conhecimento sócio-científico nos Estados Unidos. A sua proeminência nesse contexto não significa, contudo, que o conceito se possa aplicar de forma impensada a outros lugares e a outros momentos."22

Lidar com esta crítica justificada implicaria uma outra comunicação, que me dará muito prazer realizar, eventualmente, numa outra altura. Para já, deixem-me terminar, contudo, reiterando a minha convicção de que a concentração nos estudos que digam respeito à noção de identidade cultural vai aumentar a nossa visão dos grandes temas sociais contemporâneos. Temos à nossa frente tarefas importantes e fascinantes a realizar...

Comunicação apresentada no Encontro Internacional

"Diálogo Cultural e Dificuldades de Entendimento",

organizado pelo Instituto Cultural de Macau, DEIP,

e realizado em Macau em Outubro de 1995.

Tradução do original inglês por Custódio Martins;

revisão de Júlio Nogueira.

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NOTAS

1. O. E. C. D., p. 16.

2. SCHLESINGER, p. 325.

3. APPADURAI, apud FEATHERSTONE, pp. 6-7.

4. Vide o interessante conjunto de comunicações de FEATHERSTONE, sobre globalização.

5. RADAKRISHNAN, p. 83.

6. DUBIEL, p. 896.

7. DAHRENDORF, p. 760.

8. HANNERZ, p. 264.

9. GELLNER, 1994, p. 45.

10. BLOOM, p. 53.

11. HOFSTEDE, p.5.

12. Itálico do tradutor.

13. HOBSBAWM, p. 182.

14. HOFSTEDE, p. 13.

15. JEPPERSON; SWIDLER, p. 368.

16. FINK, p. 453.

17. Para uma explicação mais detalhada vide SEGERS.

18. GELLNER, 1983, p. 92.

19. ANDERSON, p. 15.

20. DEWANDRE; LENOBLE.

21. Para mais leituras sobre o assunto vide PITCH.

22. HANDLER, p. 28.

* Doutor em Psicologia e Literatura Comparada pela Universidade de Utreque, é professor no Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Groninga.

desde a p. 37
até a p.