Linguística

ESPAÇO DE ENCONTRO: MACAU NA LITERATURA PORTUGUESA

Maria Manuela Vale*

"A que foi que tão longe nos trouxeram."

PESSANHA, Camilo, "San Gabriel", in Clepsidra.

Macau, tão presente, hoje, nos noticiários e no imaginário de Portugal, existe desde o dia em que portugueses e chineses, por força das circunstâncias, tiveram de comunicar.

Relembremos o primeiro contacto, ou melhor, deixemo-nos conduzir pela "história" (o termo é ambíguo) que ninguém conseguiu, ainda, provar. Daí as várias versões das quais uma se vulgarizou: Entre os anos de 1555 a 1557 1, os portugueses, depois de várias vicissitudes pelos mares e pelas costas do Sul da China e, nomeadamente, da sua primeira fixação nas ilhas de Liampó, solicitaram ao vice-rei e aos mandarins de Cantão que lhes fosse permitido estabelecerem-se numa pequena península, em que terminava a ilha de Xiangshan. Nesta península erguia-se um templo budista, consagrado à deusa dos marinheiros, A-Má, que ainda hoje subsiste e onde, segundo a tradição, os marinheiros portugueses desembarcaram pela primeira vez (uma variante desta versão refere que o desembarque dos portugueses teria sido ocasional, querendo estes apenas, neste mesmo local, secar-se e aos seus materiais depois de uma tempestade).

Ora, tendo aportado, os marinheiros viram-se perante uma pequena comunidade de pescadores a quem se dirigiram para tentar saber o nome da terra que pisavam. Nesta altura é que "tudo" começa, nomeadamente os equívocos. Isto, porque se se imagina e aceita a pergunta, a resposta tem dado origem a várias teorias, ou seja, não é claro que a resposta tivesse sido única e muito menos (e é isso que agora nos interessa) que tivesse sido "inocente".

Sem querer fazer, aqui, o historial de toda a problemática à volta do nome "Macau" (remeto os interessados para o texto de Graciete Batalha, Este Nome de Macau, publicado num opúsculo da "Revista de Cultura", onde se indica outra bibliografia sobre o assunto) quero, para corroborar a ideia de equívoco "original", apresentar a hipotética resposta: "A-Má-Kao" — e as duas possíveis traduções da mesma.

A primeira, comummente aceite, é de que a palavra significa "Baía de A-Má" (A-Má, segundo a poética lenda chinesa, é a deusa protectora dos homens do mar). Esta é a divulgada entre portugueses. Portugueses que, nessa época, se viram entre gente e num espaço onde, provavelmente, logo se sentiram "em casa", dado que "todos" se relacionavam com o mar, dele dependiam e tinham como protectora Alguém a quem chamavam "Mãe" (não a mesma, evidentemente, mas parecidas, pelo menos na "função"). E ficaram.

Uma outra, divulgada por António Conceição Júnior e que lhe foi veiculada por um erudito chinês, diz do significado da palavra pela seguinte explicação: "(...) quando os portugueses chegaram, Macau era apenas uma aldeia ou duas de pescadores e agricultores (...). Os portugueses devem ter desembarcado com um piloto chinês ou malaio, e devem ter querido saber o nome da terra, e, ou aquela gente não se entendia ou os intérpretes que vinham se engasgaram, o certo (...) é que a resposta devia ter sido mais ou menos 'ntchi nei kóng Mât Kâu'." Conclui Conceição Júnior: "Subitamente compreendi que a espeleologia etimológica assenta por vezes mais no que está à superfície do que em profundas evoluções fonéticas (...) 'Mât Kâu', excelente exemplo de cantonense vernacular, teria sido imediatamente adaptado para Macau (...)."2 Digamos que, considerando esta interpretação, se a recepção não foi calorosa, o certo é que permitiram que ficassem. E ficaram. E Macau, antes de mais, foi local de acolhimento.

Das suas versões deste episódio histórico-mítico, ressaltam elementos que podemos classificar de "aproximadores" — o mar, o porto, a religiosidade. A língua, não sendo comum, foi neste primeiro momento não elemento de distanciação mas, por um processo de transposição (a cadeia fonética tomou um valor semântico), funcionou (talvez ironicamente) como elemento de contacto. E a terra até aí não identificada passou a ter um Nome (mais tarde o de "Santo Nome de Deus").

O que será interessante notar (imaginar) é a atitude dos dois grupos, neste primeiro Encontro (e que permanecerá, parece, ad perpetum). Por parte dos marinheiros que chegaram, ocasionalmente ou não, uma abertura, um desejo de conhecimento do Outro e do seu Espaço. Atente-se no facto de a terra não ter sido "baptizada", o que pressuporia uma atitude de posse ou de domínio — dar o nome a outro (sobretudo sem o seu consentimento) é, de algum modo, exercer um acto impositivo. Ao fazer a pergunta, os portugueses deram a perceber que, antes de se fazer ouvir, queriam ouvir, queriam entender. Por parte dos pescadores, seguros da sua posição e do seu lugar, se não houve uma atitude realmente amistosa (relembremos por exemplo, a Carta de Pero Vaz de Caminha e a chegada a Terras de Vera Cruz), não deixa de ser evidente que não foram francamente hostis. Mesmo aquele "Mât Kâu" pode apenas significar uma certa (e até aparente) sobranceria em relação ao estrangeiro que chegava.

A convivência inicia-se e continuará. Digo convivência mais do que colaboração. Esta só por pragmatismo, sobretudo comercial, teve lugar. As duas comunidades passaram a partilhar o mesmo Espaço, mas só ocasionalmente a vida desse e nesse Espaço. Até o poder (político e não só), e as suas hierarquias, se impôs de modo diferente a uma e a outra. Isto significa que as relações se caracterizaram por uma não-imposição do Eu ao Outro. O que tem consequências evidentes: um conhecimento superficial e uma aparente indiferença pelos modos de ser e de estar de cada um dos grupos em relação ao outro, mas, também, uma mútua "curiosidade", mais ou menos disfarçada ou mesmo escondida (cada um tenta, ao contrário, apresentar uma imagem auto-suficiente e eufórica da sua História e Cultura) e uma fatal atracção pelo "mistério" que cada Um sente no e pelo Outro. Concluindo: se, por um lado, se patenteiam atitudes pragmáticas e de conveniência, por outro, nascem sentimentos de Fascínio e de Desejo.

A Literatura revelará esta "história" de Encontro, Contacto e Comunicação entre Portugueses e Chineses, em Macau (penso neste verbo — revelar — no seu sentido fotográfico, isto é, como processo de fazer aparecer uma imagem na emulsão do negativo ou do positivo). E fá-lo de modo privilegiado porque é independente dos modos e formas estabelecidas e aceites.

Sem querer fazer História da Literatura, nem desejando fazer uma lista completa dos autores que nasceram, viveram ou passaram por Macau e sobre a cidade e suas gentes escreveram, penso ser oportuno relembrar alguns dos mais interessantes e/ou importantes do Passado e alguns dos mais interessantes ou representativos (do meu ponto de vista), no Presente.

E, de imediato, se impõe o vulto de Camões e mais uma "história" de equívoco e de mistério. Ninguém pode provar documentalmente que o Autor tivesse vivido e escrito em Macau.3 O que é facto, é que Ele tem sido objecto de veneração tanto por parte de portugueses como de chineses. Conta-se, por exemplo, a história do vice-rei de Cantão, Ki Ying, que, no século XIX, terá visitado a gruta, "se ajoelhou em face do busto e lhe rendeu homenagem à maneira dos ritos de Confúcio [e] mandou constituir um portal, 'pai loi' como expressão de tributo chinês (...)".4 Teremos, aqui, um caso (único) de verdadeiro Encontro entre os dois povos que se irmanam para venerar o Poeta. Quem sabe se não teria sido pela Poesia (será?) que poderíamos ter chegado a um verdadeiro conhecimento mútuo? (é evidente que nunca "o pragmatismo comercial" o poderá admitir...). Quando se fala de Poesia, tal como de Camões, é de Amor que se fala. Será porque "amou", em Macau, que não é esquecido entre os chineses?

Outro autor, marinheiro, personificação da abertura e do respeito pelo Outro a quem, sempre que é de justiça, faz elogio e apresenta como modelo — Fernão Mendes Pinto —, terá sido acolhido em Macau depois de uma viagem atribulada, vindo de Malaca. Na sua Peregrinação, conta-nos das grandezas e misérias dos portugueses no Oriente, do seu comportamento heróico ou mesquinho e da sua curiosidade e admiração por outras culturas tão diversas da sua natural, como é o caso da chinesa.

Já no século XVIII, viveu em Macau Manuel Maria Barbosa du Bocage (segundo P.e Manuel Teixeira, presume-se que estivesse nessa cidade desde Setembro ou Outubro de 1789 a Março de 1790). Aqui se sente de passagem, inadaptado, saudoso e desejoso de regressar a Portugal. É célebre o poema em que exprime o seu desencanto e critica asperamente os vários aspectos da vida de e em Macau.5 É, aliás, como voz crítica da decadência portuguesa que Bocage tem interesse na sua relação com o Oriente. Como poderiam, então, os portugueses "olhar" o Outro se nem da sua imagem cuidavam? Assim, houve atitudes que serviram sobretudo para dividir e afastar.

De passagem, também, viveu em Macau Venceslau de Morais.6 O seu destino era o Japão. No entanto, a sua estada macaense deixou marcas: uma família e textos dos quais se destacam os incluídos em Traços do Extremo Oriente (1896), no que se refere às suas impressões sobre Macau e à civilização chinesa. Numa carta datada de 1892, o autor sintetiza a sua vivência e o relacionamento que teve com os chineses: "Os meus vizinhos fronteiros são chinas, graças a Deus. Sem o mínimo ponto de contacto com o meu modo de ser, interessados dissemilhantemente na vida, pelos usos, pelos hábitos, pela língua, pelos afectos, pelas crendices, pouco os deve preocupar o que faz no seu albergue o vizinho europeu, o 'fan-quai', o diabo estrangeiro. E para mim — confesso-o aqui entre nós — proporcionar-me o ensejo, esta boa gente chinesa, de em horas de fastio distrair-me em devassar-lhe a íntima existência; condenável egoísmo o meu, em que me pese dizê-lo."7 Assim, o contacto é praticamente inexistente, superficial. O "Eu" nunca entrou na casa que lhe fica em frente, limita-se a observar o "Outro", notando-lhe o exterior, ainda que julgue "devassar-lhe a íntima existência". A atitude do Outro é semelhante, ou antes, o grau de indiferença é ainda mais acentuado — verdadeiramente não lhe interessa o "diabo estrangeiro".

Se Macau e os seus habitantes foram, num primeiro momento, objecto de curiosidade e fascínio, estes sentimentos converteram-se, a breve trecho, em estranheza: "(..) tudo isto é tão estranho que não se encontram termos na nossa linguagem ocidental para o definirem."8 E daí a saudade, a dor do exílio, a vontade de partir: "O que me falta neste lar de improviso, onde julguei nada faltar? Concentro-me todo na decifração deste enigma. A princípio, tão vaga é essa impressão de angústia que me encontro perplexo, duvidando quase do meu próprio talento. Pouco a pouco, define-se uma dor toda de alma, irradiando não sei de onde, roendo não sei que fibras. E esta dor desperta-me, chama-me rudemente à realidade, acorda em mim a voz interior que existe em todos nós, que nos fala no isolamento (...). Compreendo-me, enfim (...) uma coisa me falta (...) o sopro alegre e são da vida que dá ao homem o amor de si mesmo, o amor dos outros homens, um caminho, um rumo, na viagem da existência."9

Para este homem, Macau foi espaço de autoconhecimento, de auto-interpretação, um "porto" para preparar a sua viagem de descoberta plena, a que o levou ao encontro do Japão e de si mesmo.

Em 1894, chega a Macau Camilo Pessanha que, afirmando sempre a sua condição de Poeta Português, se deixa seduzir pela China, tentando conhecê-la o mais profundamente possível. Aprendeu a língua, estudou a literatura e arte chinesas, assumiu "posturas" típicas dessa civilização. Não é em Clepsidra que, à primeira vista, se sente este fascínio. Digo, à primera vista, porque, de facto, o conhecimento da Língua e Literatura chinesas terão influenciado a escrita de alguns dos seus poemas. Assim como as traduções que fez de Oito Elegias Chinesas terão a ver com a subtileza de forma e conteúdo próprias do simbolismo e da sua visão pessoal da Poesia. É, todavia, na obra China onde, explicitamente, disserta sobre a estética, a literatura e a vida social chinesas. Como diz António Quadros, "(...) os extraordinários e tão belos ensaios que escreveu sobre a arte e poesia chinesas revelam a afinidade do poeta português, simbolista, musical e conciso com a cultura que melhor conservou as reminiscências da mais subtil, simbólica, gráfica e poética".10 Aqui, se insurge contra o comportamento indigno que observa nos chineses detentores da riqueza e do poder e encarece as virtudes do povo: "(...) essa gente (...) sóbria, económica, sofredora, pacífica, respeitadora das leis, obediente à autoridade, persistente nos seus projectos e infatigável no trabalho, vencendo as mais descoroçoadas dificuldades à custa da paciência, tenacidade e esforço."11 Aqui, também, nos apresenta os seus juízos sobre a arte chinesa, observando que para os chineses a arte é mais uma manifestação colectiva que obedece a regras pré-estabelecidas do que a manifestação de uma "originalidade" individual.12 "Todo o poeta (...) é um ser ausente e, quando mais não fosse, só por isso, um exilado. Exilado de si como Pessanha, nascido a Oriente do seu próprio Ocidente, e sempre, de si, distante"13 — estas palavras de Carlos Cunha fazem o "retrato" nítido do modo de ser e estar do Poeta. O único refúgio que se proporcionou foi a língua em que escreveu e que soube trabalhar como ninguém, dotando-a do imponderável da música. E foi, talvez, desse modo que ele se (nos) aproximou do "Outro", aparentemente, tão distante. É que também na língua chinesa — "(...) a mais formosa e sugestiva de todas, vivas ou mortas, nas suas próprias palavras — a vista e o ouvido trocam impressões, talvez como em nenhuma outra. Modelada em grande parte pelo óptico poder evocativo dos seus caracteres (que, através de longuíssimo processo de abstractização, mantém 'a ideia geratriz da forma'), possui ela o segredo de traduzir em som a flagrância visual dessa espécie de insight gráfico, que é o ideograma. Não surpreende, pois, que a poesia recolha o que os olhos, enfeitiçados, escutam."14 Na realidade, sabemos que Pessanha fez de uma língua analítica como o português "um instrumento de síntese" cuja lógica, sonoridade e ritmo (re)compôs.

Afastado da Pátria, a ela se sente ligado por Macau. É que "(...) em Macau é fácil a imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal menos frequentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas, das misteriosas inscrições chinesas, destacando a cada canto em rectângulos de papel vermelho, das águas amarelas do rio e da rado (...) e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão de terra portuguesa. Quem estas linhas escreve teve, por várias vezes (...) deambulando pelo passeio da solidão, a ilusão, bem vivida apesar de pouco mais duradoura que um relâmpago, de caminhar ao longo de uma certa colina da Beira-Alta, muito familiar à sua adolescência."15 Para o poeta esta "transladação" é essencial para a escrita e para a vida, pois deste modo é possível"(...) até certo ponto [ter] a ilusão de se estar em Portugal, essencial ao exercício por portugueses da sua especial actividade imaginativa (...)."16 É interessante constatar que, por outro lado, quando em Portugal, Pessanha sente nostalgia de Macau. Daí a sua "divisão" essencial e o desejo de viver "entre", num espaço que não sendo de separação não seja o imposto caminho de Um para o Outro — "Sabe o que agora desejaria? Não chegar ao meu sítio nunca... Ir assim, a bordo de um navio, sem destino."17 Assim, talvez, pudesse fugir ao seu fado de ser ausente e encontrar a Terra do Encontro, donde se apagaria definitivamente a "tristeza de todos os exílios".

No mesmo ano (1894) em que Camilo Pessanha chega a Macau, edita Bernardo Pinheiro Correia de Melo, conde de Arnoso, a obra Jornadas pelo Mundo.

Como é sabido, este autor esteve ligado à "Geração dos Vencidos da Vida", tendo sido particular amigo de Eça de Queirós. Seguiu a carreira militar e integrou uma missão diplomática a Pequim. Desta missão, resultou a obra a que me referi, em que descreve com pormenor o que observou na China e no Japão.

Macau foi objecto de algumas páginas desse livro. É a elas que aludirei muito sucintamente. A sua estada em Macau foi brevíssima — de apenas cinco dias. Esse lapso de tempo proporcionou-lhe, como é evidente, um conhecimento superficial da terra e das gentes. Assim, as páginas que escreve são preenchidas com descrições da paisagem, enumeração de edifícios, instituições, hábitos sociais e com referências à História. Em síntese, podemos dizer que o texto tem especial interesse pela referência à existência, à época, em Macau, de dois "mundos" que apenas, ocasionalmente, contactavam entre si — "só uma parte da cidade de Macau é habitada por europeus".18 A outra, onde moram e trabalham os chineses — "o bazar" — merece a sua especial atenção, descrevendo-nos as casas, lojas, templos, instituições, festas, costumes (nomeadamente o jogo) e a sua economia.

Alguns anos mais tarde, mas na mesma linha, isto é, inserido num certo tipo de "Literatura de Viagens", com reminiscências de Loti, atenta sobretudo ao exotismo oriental, escreve Ferreira de Castro algumas páginas sobre o Território na obra A Volta ao Mundo, conjunto de textos-crónicas escrito entre 1941-1944. As páginas sobre Macau apresentam-se como uma espécie de reportagem jornalística19 e, por isso, transmitem uma visão se não de todo superficial pelo menos revelam-se como fruto de uma espécie de "deslocar-se à superfície". Nem outra coisa se poderia esperar de um trânsito de duas semanas.

Tal como o conde de Arnoso, este autor faz referências à História, ou melhor, à mito-história de Macau, sobretudo à das suas origens (aqui diz que os portugueses, considerados piratas há quatrocentos anos, entre piratas se instalaram, com eles guerrearam, tendo recebido Macau como presente do imperador, agradecido pelo auxílio recebido contra "outros" piratas que assolavam os mares do Sul da China). Descrevendo a paisagem que observa do barco em que se aproxima da costa o que, num primeiro momento, encanta o autor é o facto de Macau se apresentar como mais uma terra portuguesa: "Dir-se-á que os portugueses conseguiram modificar a própria paisagem asiática, as próprias árvores, dando-lhes expressão de terra minhota."20 Depois fica fascinado por uma particularidade de Macau: "No porto de Macau não se exige passaporte, nem se abrem as malas. (...) Ninguém quer saber quem somos. Nos nossos dias escravos de papéis de identidade, de carimbos, de vistos, de desconfianças, esta indiferença de Macau pela personalidade de cada qual talvez seja a sua principal virtude..."21 Nas ruas da cidade encanta-se com a "mistura de palavras e sinais alfabéticos"22 que se vê nas placas das lojas, embora constate que os chineses são completamente ignorantes da língua de Camões. A noite macaense e os juncos apresentam-se-lhes "grávidos de beleza e mistério"23, concluindo que "sem eles, sem as suas linhas de outrora e a sua sugestão de vida exótica, o Mar da China ficaria viúvo do seu principal encanto".24 A ritmo de passeio, vai descrevendo o que vê. E tal como o autor a quem antes me referi, Ferreira de Castro observa que "a península de Macau, não obstante a sua pequenez, é formada por duas cidades completamente diferentes: a portuguesa e a nativa".25 Chegado à Avenida Almeida Ribeiro, verifica que esta "mostra duas velhas civilizações diferentes, que jamais se fundiram, apesar de longo convívio. O primeiro troço é ocupado por casas e comércio de aspecto europeu, que terminam no Largo do Leal Senado (...), constando que este Largo do Leal Senado é como uma fronteira. Para além dele, a Avenida Almeida Ribeiro perde a sua feição europeia e torna-se chinesa."26 Penetrando no bairro chinês, atraído pelo exotismo a que várias vezes se refere, nota e anota os costumes que se relacionam com economia, religião, cultura, enfim a vida dos chineses, em Macau. E não deixa de se espantar porque "os portugueses, que amam impor seu critério onde quer que se encontram, fizeram aqui uma excepção à regra — e respeitaram a estética e os hábitos chineses".27 Talvez haja uma razão. É que, segundo o escritor, "o povo chinês, extraordinariamente inteligente, mostra-se, na sua generalidade, portador de elevadas qualidades humanas. Ele sabe, como poucos, ser vizinho e viver em colectividade".28 Percorre, também, todos os locais onde a presença portuguesa se patenteia: a colina da Guia, ("(...) onde o faroleiro cultiva, em luta com o clima, uma videira de Portugal, para matar saudades..."); a colina do Monte; a colina de Camões (onde a célebre gruta o deixou desolado — "A única coisa feia é, justamente, a gruta onde o épico teria escrito parte dos 'Lusíadas' (...)")29; igrejas e ermidas das quais se destacam as Ruínas de São Paulo vendo, de caminho, templos, restaurantes, ruas tipicamente chinesas, a propósito dos quais vai tecendo considerações onde expressa a sua simpatia pela milenar cultura chinesa. Finalmente encontra-se "na fronteira da colónia com a China", a qual há-de ultrapassar para penetrar na imensidão do "Império do Meio".

Quem chegou na segunda quinzena de Janeiro de 1905, e em Macau se manteve até Novembro do mesmo ano, foi António Sérgio.

As suas impressões sobre o território e o relato de alguns episódios aí vividos são-nos fornecidos por algumas cartas que escreveu à família e cujo interesse maior reside em fazer conhecer o quotidiano de um grande vulto da cultura portuguesa, por essas paragens. Fornecendo-nos uma imagem de alguém que se sentia "provisoriamente em", pois continua ligado à Pátria (e ao Pai), por uma correspondência com que, acima de tudo, parece preocupar-se e que lhe serve para se manter em diálogo com ela (e com ele), o autor, nessas cartas, traça uma espécie de autobiografia. Tendo viajado até Macau de barco, pela escrita volta (metonimicamente) de Macau a Portugal.

Com Macau muito pouco se relaciona, não havendo entre os dois nenhuma intimidade. Temos a sensação de que até as relações sociais que mantém, em Macau, são ditadas por influência familiar — as pessoas que visita, por exemplo, são ou foram amigos do Pai ou do Avô.

A barreira da Língua parece-lhe intransponível, embora isso o não angustie pois não lhe é essencial. Daí que as dificuldades de comunicação sejam sentidas com um certo fair-play e causa de observações se não irónicas pelo menos bem-humoradas: "Dia 23. Depois do almoço no Macau-Hotel, visitas. Primeiro, ao governador, que me convidou para jantar. Como não me entendi com o cúli, explicou-me um intérprete onde me havia de levar: sucessivamente. Mas pela ordem que ele entendeu: donde me resultou entrar nas casas sem saber quem era o dono."30

Os acontecimentos que têm a ver com a comunidade chinesa, como é o caso do "Ano Novo Chinês", passam-lhe ao lado. E mesmo um assunto de interesse geral, como é a ameaça de um terramoto e as reacções das pessoas, conhece-os indirectamente: "É isto que dizem que sucede, porque eu não falo senão com os camaradas."31 A única coisa que lhe desperta algum interesse é... um "viveiro de patos". Vejamos o que tem de importante a dizer sobre o dia 31 de Agosto: "(...) Continuo na mesma vida. De dia fico a bordo; pelas 4 e meia venho à Areia Preta ver um viveiro de patos que para ali há. São muitos, de dois tamanhos: uns muito pequerruchitos, de penugem amarela, e os outros mais crescidos, mas sem penas ainda, e ainda sem asas.

Estes vão para um tanque grande onde lhes dão comida. Os outros ficam em recintos limitados com redes baixas; os mais ágeis saltam para as celhas, os outros chafurdam na água que delas cai. Quando o sol vai baixo começa a chiadeira a diminuir; deitam-se aos montinhos, muito juntos, e de olhito fechado; alguns que estavam de fora e querem ficar quentinhos no meio do monte, desatam a empurrar os que já estavam acomodados e levanta-se uma pequena desordem. Por fim todos se deitam, sossegam todos, ouve-se apenas um ou outro que acorda sobressaltado porque o vizinho o pisa... Isto é bonito, mesmo a única bonita coisa que vejo aqui."32

Será que o autor se sentiu interessado pelo modo chinês de criar patos, quando no Ocidente ainda não se pensava em aviários? Ou menos prosaicamente, será que não estamos perante a história do "patinho feio" que inveja a sorte dos outros, todos iguais, todos juntos, num ninho acolhedor, sentindo-se ele diferente, desaconchegado, só... É ele que afirma: "Desespera-me ver passar tão inutilmente os meus dias. Procuro não pensar em tal: assim consigo estar em paz, despreocupado e, segundo me dizem, mais gordo..."33

Nem a arte oriental lhe causa nenhum tipo de prazer: "(...) não gosto do chinesismo nem dojaponesismo."34 Numa carta datada de 4 de Novembro, reflecte sobre estética chinesa, comparando-a, implicitamente, com a europeia: "Em se tratando de arte europeia não sei o gosto dos outros, mas tenho o meu ao menos: para as chinesices não tenho critério: nada me interessa, de nada percebo. Acho tudo banal e insípido; sempre a mesma coisa, sem significação e sem graça: os mesmos motivos sempre, os mesmos processos, o mesmo gosto rotineiro e estúpido. Paciência, trabalho? Sim; mas arte, beleza, gosto, não, nada disso, absolutamente nada. Quem viu há mil anos uma colcha chinesa, uma mesa, um prato, viu todas as colchas, todas as mesas, todos os pratos, de todos os artífices e de todas as épocas, in omnia secula secolorum."35

Há alguns elementos comuns que se destacam da vivência e visão de Macau por parte destes três autores. O que de imediato ressalta é o pouco tempo de estadia — 5 dias, 2 semanas, onze meses — conduzindo, logicamente, a um conhecimento superficial ou mesmo a um verdadeiro desconhecimento desse local, das suas gentes e da sua cultura específica (e quem viveu em Macau sabe que para se compreender e amar esse "espaço" é preciso "tempo"). Esse desconhecimento conduz a duas atitudes, só aparentemente diferentes — a recusa ou uma atracção por um (pseudo-)exotismo que é uma falsa atracção ou, mais ainda, uma ligação falsa.

Aquilo que todos, de imediato, notam é a topografia própria da cidade que deixa transparecer o modus vivendi dos seus habitantes — está dividida em duas. Esta divisão não significa nenhum tipo de oposição, mas é uma arrumação do espaço que diz do modo como as duas comunidades coabitam — ninguém interfere com ninguém, os portugueses não se impõem, os chineses fazem boa vizinhança (fria talvez, mas pacífica). Concluindo: se não há fusão também não há confusão — há, sim, uma espécie de soft apartheid que nenhum dos autores põe em causa. E parece que o modo de encontro inicial se repete, continua...

O exemplo de Pessanha foi, até ao momento, único e irrepetível? Não. Outros disseram de um conhecimento e de uma ligação mais profundos (ou desejo deles), como o demonstram os seus textos. Cito alguns e algumas das obras que publicaram (que nem sempre tendo grande interesse literário, têm-no, sem dúvida, do ponto de vista antropológico e histórico): Maria Ana Acciaioli Tamagnini, Lin Tchi Fá: Flor de Lótus, 1925; Emílio San Bruno, O Caso da Rua Volong e Cenas da Vida Colonial, 1928; Manuel da Silva Mendes, Excertos da Filosofia Tauista, 1931; Jaime Correia do Inso, O Caminho do Oriente, 1931, Visões da China, 1932, China, 1935, Cenas da Vida de Macau, 1941; Álvaro de Melo Machado, Coisas de Macau, 1913; António de Santa Clara, Cartas do Extremo Oriente, 1938; Francisco de Carvalho e Rego, O Caso do Tesouro do Templo de A-Má, 1949, Cartas da China, 1949, Macau, 1950, Lendas e Contos da Velha China, 1950, Mui-Fá: Flor da Ameixeira, 1951; Joaquim Paço de Arcos, O Navio dos Mortos, 1952, Circulação das Memórias (?); Danilo Barreiros, A Paixão Chinesa de Venceslau de Morais, 1955, O Testamento de Camilo Pessanha, 1961; Ernesto Leal, O Homem que Comia Névoa, 1964; José Joaquim Monteiro, Minha Viagem para Macau, 1939; Benjamim Videira Pires, O Espelho do Mar, 1986; Jorge Listopad, Novos Territórios, 1986; Graciete Batalha, Bom Dia, S'tôra, (?); Alberto Estima de Oliveira, O Diálogo do Silêncio, 1988; Altino de Tojal, Histórias de Macau, 1987; José Vale de Figueiredo, O Provedor dos Vivos, 1988; Maria do Rosário Almeida, Chü Kong, 1987; Jorge Arrimar, Fonte do Lilau, 1990, Secretos Sinais, 1992; António Rebordão Navarro, As Portas do Cerco, 1992; João de Aguiar, O Comedor de Pérolas, 1992.

Propositadamente, desta lista não fazem parte escritores de Macau. A eles gostaria, agora, de dedicar algumas, breves, palavras. São um conjunto de autores que dizem de si como consequência de um contacto luso-oriental e se apresentam como filhos de uma comunidade que, hoje, coloca a si própria problemas de identidade. Diz Conceição Júnior: "Estabelecido o entrepostozito, edificadas as primeiras construções, trazidos os primeiros indianos, malaios, a que se lhes juntariam pouco a pouco os chineses, nascia uma espécie nova, daquelas que brotam espontaneamente, fruto das circunstâncias e das conjunturas: os 'macaenses', ampla mistura genética resultante de toda essa gente que os portugueses foram encontrando pelo caminho, e a quem a Igreja, pela mão dos Dominicanos, dos Franciscanos e dos Jesuítas ia convencendo a albergar-se à sombra da cristandade (...) durante séculos, foram os macaenses, produto da terra chamada Macau, quem preservou, adaptou, usufruiu e continuou aquilo que de português — e foi muito — permaneceu em Macau."36

"Aquilo" de que fala este autor é de uma cultura específica e original que, também, transparece numa literatura cujo modo de "ser" é macaense: Luís Gonzaga Gomes com Contos Chineses, 1950, Lendas Chinesas de Macau, 1951, Chinesices, 1952, entre outras; Deolinda da Conceição com Cheong-Sam, A Cabaia, 1956; Leonel Alves com Por Caminhos Solitários, 1983; e Henrique de Senna Fernandes com Nam-Van, 1978, e Amor e Dedinhos de Pé, 1986, são um grupo de autores a quem chamarei de "veteranos" na literatura de Macau. Há outros mais jovens de quem, com certeza, a seu tempo se falará.

Bastará atentar nos títulos que referi para, de imediato, se dar conta do tal modo "macaense" de fazer literatura — um discurso em português, temas chineses ou luso-chineses. Uma escrita de miscigenação que deriva da abertura ao Outro, que deixa transparecer não o desejo de assimilar ou ser assimilado, mas diz da recusa à indiferença. Uma escrita que fala do "bom vizinho" que poderá (porque não?) tornar-se o ser amado ou o amante. Uma escrita que fala desse Desejo e é, por isso, em muitos aspectos, transgressora. Para provar o que digo, relembro, a título de exemplo, alguns textos inseridos nas obras que referi: o conto de Senna Fernandes "A Chan, a Tancareira", os poemas de Leonel Alves onde, com alegria, afirma a sua ascendência luso-chinesa, os contos de Deolinda da Conceição "O Calvário de Lin Fong" ou "O Refúgio da Saudade".

Aconteceu, num momento da história da literatura em Macau, que o "casamento" teve lugar e surgiu, assim, uma língua comum — o patois — e textos nessa língua. Hoje, está praticamente em desuso ("embora (...) uma nova génese de um novo linguajar passeia-se já por aí"37) talvez porque, tendo começado por ser língua de contacto entre as duas comunidades — a portuguesa e a chinesa —, se tenha tornado, posteriormente, a língua de um grupo que, em determinada altura, se "fechou" demasiado em si mesmo38 e, por isso, a poesia escrita nessa língua, no dizer de Graciete Batalha, "(...) foi sempre de raiz ocidental e não tem nada a ver com a poesia chinesa".39 O seu último autor que a cultivou foi José dos Santos Ferreira.

De propósito, também, na lista que antes apresentei não figuram os nomes de António Manuel Couto Viana, Eugénio de Andrade, José Augusto Seabra, Miguel Torga, Agustina Bessa-Luís, Natália Correia, Maria Ondina Braga.

Estes escritores publicaram textos que, no modo específico de cada um, de alguma maneira se relacionam com Macau. Falo do modo específico, embora haja entre eles algo de comum — todos passaram, com maior ou menor brevidade, pelo Território e deixaram as suas impressões que divergem, em muito, das feitas por Ferreira de Castro, António Sérgio ou o conde de Arnoso pois, neste final de século em que escrevem, todos falam do relacionamento de Portugal com Macau, quando se aproxima a "separação oficial" e fazem-no dizendo da sua forma pessoal e única de viver os factos e o lugar.

Couto Viana, em Até ao Longíquo China Navegou..., 1991, e em No Oriente do Oriente, 1987, fala do seu estabelecimento e peregrinação pelo Oriente e sobretudo por Macau. Aí cruza a sua escrita com a de Bocage, Patrício, Pessanha, Mendes Pinto e Camões, pois a estes poetas está "preso" e como eles "preso" ao "Oriente do Oriente" — Macau. O itinerário poético que percorre é feito das mesmas rotas — partem da realidade, "desfazem-na" e criam uma outra mais "real". Pelo caminho, a nostalgia de um tempo que foi e de um outro que poderá ser. Por isso a paradoxal vivência do "vazio-pleno" que é o sonho. E para este Poeta Macau é o último lugar do Sonho — espaço onde se vive de "troca" e não de comércio ou da imposição — trocam-se ensinamentos, trocam-se sentimentos, trocam-se linguagens, trocam-se culturas, trocam-se Histórias. É, por isso, que a sua poesia é fruto de um olhar atento e atencioso, observador delicado de uma delicada e frágil realidade pela qual foi seduzido, se apaixonou, se sente deslumbrado. É com e por esse olhar que vê não o exótico mas o idêntico no que é distinto, o igual no diferente e manifesta o desejo de se adaptar e dialogar (voltamos à situação inicial, lembram-se?).

Então, surge uma escrita de "mistura", onde o sentimento do Poeta se confronta com elementos aparentemente exteriores a si — natureza, costumes, pessoas que todavia são os "normais" aí, onde se encontram. É dessa vida comum que quer participar e fazer-nos participar — desejo de união e, como tal, "até que a morte nos separe". E, por isso, a não aceitação passiva de uma "separação" que se sente como imposta. Como refere Joaquim Manuel Magalhães: "Atravessa estes poemas o trauma do fim absoluto de um Portugal mais vasto do que o das fronteiras europeias em que Couto Viana acreditou, por que lutou, em cuja derrota se sentiu perder" e daí um "efeito de pathos" que este mesmo crítico faz notar: "Assim funcionam estes momentos cimeiros de relações que são quaisquer poemas conseguidos sobre a ligação com um outro, que é sempre uma relação a morrer. E de tanto mais pathos quando se trata da relação de uma cultura (ainda que aparentemente sentida apenas por um indivíduo) com outra cultura."40 Mas como dirá João Bigotte Chorão a propósito de Até ao Longínquo China Navegou...: "(...) alguma coisa sobrevive às tempestades, à história, aos homens, ao tempo, à dor: o Poema que é, mais do que a celebração retórica da antiga fama, a inextinguível fonte em que, atravessando o deserto, a nossa sede bebe a esperança do futuro."41

Assim, ao terminar o seu (nosso) "Breve Roteiro Lírico de Macau", o olhar se fixa no porto donde: "Brilha, do alto, a luz, a iluminar a nau, na treva do presságio, a dissipar receios dos escolhos, a rasgar-lhe um caminho certo para um futuro de bonança e de vitória"42 — o Farol, o Poema.

Talvez "no rasto de um outro Oriente", "um Oriente ao oriente do Oriente", esteve José Augusto Seabra em Macau (note-se nas dedicatória e epígrafe, aliás, como no título de Couto Viana, a presença do Outro — Poeta — Pessoa que, nunca tendo estado em Macau, um dia escreveu, heteronimamente por Álvaro de Campos, "Macau à uma hora da noite..." — a Hora em que "Navegar é possível" e as naus atravessam o Tempo-Mar, todo o Tempo e todo o Mar). Escreveu Poemas do Nome de Deus (apresentados em volume bilingue e que, assim, parecem ter sido escritos a quatro mãos, ou ditos a duas vozes): "É um livro de Amor (...)"43 onde se diz do "indizível", sob protecção dos "mares" de Camilo Pessanha que é para Augusto Seabra "a figura (...) como emblemática da presença de Portugal em Macau e no Oriente [porque] (...) encarna mais do que qualquer outro escritor moderno de língua portuguesa a nossa condição nacional de 'enraizamento' e de 'errância' (...) [e] é 'no espaço' um poeta de ligação entre o Ocidente e o Oriente [e] (...) 'no tempo' um poeta de ligação do passado e do futuro."44

Nestes poemas se diz "Do nome" — e o nome encerra a memória "Do canto", "Da epopeia", "Do vate", "Da Gruta", "Da Língua", "Da Escrita" e "Do Símbolo"; se diz "Do exílio" que é feito "Da Lealdade", "Da rosa", "Da Ogiva" e "Do Espírito Santo"; se lêem "Das Ruínas", os "Deuses", os "Mortos", as "cinzas"; se vive "Do indefinido", "Do azul", "Das sete Luas", "Do ópio", "Do jogo", "Do Tempo" e o sonho desliza pelo e "Do ritmo", "Da música", "Do jardim", "Das ilhas" e atravessa a barreira "Da muralha" e "Do cerco" para, no fim e por fim, aquando do acordar "Do Dragão", se dizer, outra vez, "Dos Nautas", "Da Rota" e "Da profecia".

Macau é aqui, neste livro, o outro nome da Epopeia, ou um "(...) resto de epopeia" e, por isso, o "vate" está presente e se fala da mítica gruta onde "Peregrinos das sombras divididas/ a desenhar os sonhos sobre as pedras/ doridas da memória, que feridas/ em bálsamo envolvemos, escondemos/ da luz amanhecida? Repartimos/ o perfume dos ramos já pendentes/ em cabelos de cinza no caminho/ mais secreto, por dentro do regresso."45, e a Língua e a Cidade nos falam da presença da História e do momento em que, aí, se "resguardou" a Pátria e o "Santo Nome de Deus"; nos diz da sua vocação para "religar" diferentes povos e deuses diferentes na Religião — a "Do Espírito Santo", do Amor. Será que da ruína e das cinzas se renascerá, pelo ópio ou pelo jogo, para um outro tempo, um indefinido azul que outrora nos faltou? Quando o Dragão despertar e tivermos de regressar seremos "(...) os nautas perdidos,/ dando três vezes a volta às margens do vago,/ imaginando. (...)"46? ou restar-nos-á "(...) a glória de sabermos/ a rota da viagem"47? E porque "tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro"48, "Da Profecia" (gerada de António Patrício)49 fica-nos outra, final, Interrogação: "Quando só formos/ a vela alta/ e diluída/ sem mastro nem flâmula ardendo,/ que âncora ainda/ anunciará,/ na desmemória/ outro Oriente?"50

1990 foi o ano da "Peregrinação" de Eugénio de Andrade a Macau. Fê-la em Outubro. No mês anterior, o testemunho de que o Encontro já tinha acontecido foi dado a público por uma antologia bilingue (português-chinês) — Com Palavras Amo. Os textos foram vertidos para chinês por Yao Jingming, que diz do Poeta Português: "E assim nos chega, de um horizonte distante, Eugénio de Andrade. Vem com a graça das fontes, o ardor da cal e o outro nome da terra. Chega, porque nunca se foi embora (...) Ele é um poeta com raízes na terra lusitana, mas o seu universo também é o nosso porque dele faz o olhar e a emoção da alma, consumindo o ser em luminosas revelações e na eterna reconciliação. Agora que nos chegou e o olhamos, ele construiu-nos já uma casa na transparência."51 Finalmente o Encontro pleno, na Casa Comum? Será que é só na hora da despedida que os "amantes" descobrem o quanto, mutuamente, se completam e pertencem? Que pela primeira vez o olhar se ilumina e deixa transparecer "(...) a plenitude do sol, o rumor da água, o ritmo das estações, o apelo dos frutos, o sorriso que abriu a porta".52 O poeta, os poetas (o português e o chinês), esses sim, farão "(...) os dias e as noites mais habitáveis".53

Os doze poemas escritos, em Macau, por Eugénio de Andrade estão reunidos num Pequeno Caderno do Oriente e são um registo-roteiro do percurso que fez por essas paragens. Cada um dos poemas é um texto fundamental para provar o Encontro de que falamos. O primeiro momento aconteceu com "Camilo Pessanha, o Mestre" da língua cuja "(...) sedução maior daquela alquimia estava na magistral capacidade de sugerir, de insinuar, de não concluir o que fora começado a dizer", como "se dizer" não fora o que mais importava. Era a indecisão tornada matéria de poesia, criando-se com esta reticência um enleio, uma subtil cumplicidade com o silêncio, uma hesitação entre pensar e sentir; o mestre, também, da vida "e havia ainda aquela vida sua vivida (ou antes: desvivida) exemplarmente à margem da impenitente e sentenciosa e sobranceira verborreia nacional, com o poeta apenas empenhado numa crítica da eternidade que era o seu caminhar para o silêncio (...)".54 O segundo momento é o do Encontro com a cidade, com o seu carácter, as suas gentes e os nomes portugueses das ruas e a conversa chinesa dos velhos e a música da rapariga-flauta chinesa e a compreensão do "Ofício de Paciência" que são os dias, em Macau.

Em seguida, passa pelo "Jardim de Lou Lim Ieoc" e de lá, com o bambu traz a sabedoria oriental. Depois atenta n'"As Pedras" que lá estão "desafiando o tempo e a sua poesia"55, sobretudo naquela "Pedra Profunda" que nasce do ar, pedra de Deus ou do seu discípulo (não Pedro mas Paulo) ao qual o poeta reafirma fidelidade e diz: "Vim de longe para tocar o fogo/ da sua geometria sem fronteiras."56 O sexto poema, feito ao viver o quotidiano, diz do avistar das "Montanhas Verdes" da China, da China de Li Bai — o reencontro. E Eugénio de Andrade é Fernão Mendes Pinto, num outro século ou mandarim, no terraço do Mandarim Oriental e a Poesia surge "(...) como se (...) não fosse senão uma inevitável e longa despedida".57 Isto porque quando os poetas fazem poesia é de separação que falam — um grande amor é sempre despedida e distância e, por isso, os que amam "(...) se vão da lei da Morte libertando".58

Assim (se) permanece no azul-verde dos bambus-céu, com Outra Sabedoria, agora encontrada no "Templo da Barra". Há, também, o enigma dos rituais como o passeio dos pássaros nos jardins de Macau, pela mão dos velhos cujo "sorriso limpo, (...) é o segredo mais bem guardado do Oriente".59

E, antes do fim, a síntese-senha "no prato da balança um verso basta/ para pesar no outro a minha vida"60-- A Palavra de todos, a Palavra Religiosa. As outras, as medíocres com as que vê gravadas na Gruta devem ser apagadas porque ofendem os Poetas. Outras devem ser reescritas, aí, que sejam "de amor e guerra e sonho entrelaçadas" (no dizer de Drummond de Andrade) para falar de Macau e do seu Poeta Maior.

No meio de luz e água se faz a "Aproximação de Coloane" — ilha — porto, outrora de piratas, hoje de azul, sombra e bruma. Antes de terminar, no cemitério, que não é, aqui, lugar de dor mas de beleza e de um outro Encontro: "Uma mulher, que andava por ali a varrer as campas, pegou numa jarra, encheu-a de água, e entregou-ma com um sorriso. Era o que o cemitério tinha de mais bonito, aquele sorriso, fresco mesmo ao sol do meio-dia."61

O círculo fechou-se. O Mestre, do primeiro momento, continua a ser a companhia do Poeta e sê-lo-á para sempre. Macau, no fim de tudo, permanecerá como casa cujas portas estarão sempre abertas à Poesia, aí, sempre viva.

Com idêntico sentido de aventura dos primeiros a partir e com o sentimento de quem aceita um desafio, sem saber bem as verdadeiras razões e fins, decidiu Miguel Torga viajar de Coimbra com destino a Macau, a 2 de Junho de 1987. Nem poderia ser outra a sua atitude como Poeta e Português: "Extremo Oriente da inquietação,/ Lá vou!/ A quê, não sei/ mas lá descobrirei/ que razão me levou,/ Lá, onde tantos que me precederam,/ se perderam,/ E aprenderam, na perdição,/ que só é verdadeiro português/ quem, um dia, a negar a humana pequenez,/ se inventa e se procura/ nas brumas do mar largo e da loucura."62 O autor, aliás como tantos outros portugueses, já antes tinha viajado pela China, em imaginação. De todos é paradigma O Senhor Ventura, o aventureiro que, em Macau, se confrontou consigo próprio, com as leis estabelecidas e com o lugar para desertar, então, para outras paragens, aí adivinhadas e pelas quais o seu sentido de liberdade ansiava.

Agora, a viagem é real e a sua causa próxima e visível participar na anual homenagem que Macau proporciona a Camões, a 10 de Junho (como falar de Camões é falar da Pátria, a razão profunda esclarece-se): "Vou a Macau falar de Camões,/ Em nome dele, e por eles,/ obreiros dum império de ilusões,/ Vou, como novo andarilho,/ Garantir ao futuro que Portugal/ Terá sempre o tamanho universal/ Da infinda inquietação de cada filho."63

No dia 6 chega e nos dias seguintes (7 e 8) dá-se a aproximação que vai registando em Diário. A experiência desse contacto leva-o a concluir: "Tudo nesta terra é simultaneamente natural e mágico, concreto e abstracto, imóvel e fugidio (...). Até o ar que se respira tem qualquer coisa de perturbante, de opiado. Não estimula, enlanguesce. Miragem tangível, desafio à nossa razão, à nossa sensibilidade e ao nosso senso comum, Macau não é uma realidade que se apreende com nitidez. É como que um sonho confuso de Portugal."64

É no dia 10 de Junho que, à mesa, ao jantar (tipicamente chinês), num ritual de "última ceia" a comunhão se estabelece: "E gostei de, pela primeira vez na vida, estar sentado a uma mesa a ingerir cada iguaria como se engolisse uma hóstia. A comungar."65 A paixão desenrolar-se-á sem que nem sempre todos os passos sejam nacionalmente entendidos: "Faço o que posso para entender esta terra, mas não consigo. É tudo tão enigmático, tão movediço, tão ambíguo, tão labiríntico, que o tino perde-se a cada passo."66 A surpresa dos primeiros a repetir-se... A surpresa e o desejo de entender. A descoberta simultânea do "Eu" e do "Outro" e a constatação: "Os exóticos, no meio da uniformidade amarela, somo nós."67 E a fatal questão a impor-se: "E, contudo, estamos aqui há quatrocentos anos. A fazer o quê?"68 A resposta é dada pela presença (historicamente provada ou não, pouco interessa) de Camões. No dia da celebração é ponto assente que "(...) Camões esteve aqui e é daqui, porque aqui chegou o espírito de todo um povo que, como ninguém, consubstancia na vida e na obra, a legitimar-nos o impulso errático, a curiosidade, a ousadia, a tenacidade, a sabedoria e as ambições (...)".69

Agora que o percurso da Paixão está prestes a concluir-se, que a "estação final se avizinha", Torga, falando no plural (como Camões, ele é nós todos), faz o testamento de Portugal: "Nós próprios, neste momento, estamos aqui a dizer adeus ao último reduto dessa extensão passada. Esta visita de amor é uma despedida."70 Mas não é o fim de tudo. O Espírito permanecerá: "Depois da nossa partida, continuaremos aqui, presentes em cada vínculo familiar, em cada apelido, em cada hábito, em cada vocábulo, em cada tempero, em cada reza, em cada momento, em cada ruína."71 Não pode ter sido impunimente que de tão longe viemos e durante tanto tempo tentamos "ser" em comum. O "(...) futuro não será de ocupação, mas de comunhão"72 e, por isso, "(...) a certeza de voltar. De voltar eternamente."73 Para nos guiar lá estará o Farol da Guia e para nos acolher as Ruínas de uma Igreja.

Na hora da separação critica a lógica política, sugerindo a vantagem que a China (e o mundo) teria em que as "coisas" não fossem como os "grandes" planeiam: "É uma pena que os orgulhos nacionais meçam todas as sombras estranhas pela mesma rasa. Enquanto que Hong-Kong é um desaforo capitalista, uma afronta colonial, que ofende o céu e a terra, Macau não passa de um discreto padrão aventureiro. E talvez não fizesse nenhum mal ao colosso chinês consentir que uma presença Lusíada, ancorada à sua ilharga, continuasse a dar-lhe notícias líricas do Ocidente."74 A obstinação de sempre ou a saudade a nascer? Como alguém disse, Torga foi um "xanã-poeta através de cujos versos falava a alma da nação"75, pois pela sua voz a Portugalidade se revela. É, assim, natural que Portugal lhe tenha conferido o poder de falar em seu nome e, por isso, foi enviado com uma Mensagem — a da despedida e a da Promessa do Eterno Retorno. Foi esse "gesto" sacramental que o poeta cumpriu nesse dia em que, em Macau, falou do outro Poeta (no seu (nosso) íntimo as palavras da Cruz: "Pai, se é possível, afasta este cálice.").

Uma escrita no feminino se tem construído, em português, para falar de uma "especial" ligação a Macau. Agustina Bessa Luís e Natália Correia percorreram as ruas da cidade, sentiram o seu mistério e magia e sobre ela escreveram textos (ainda que breves). A primeira em A Pedra Pintada76, no seu estilo peculiar de efabulação-reflexão, traça a "história" do território para colocar a seguinte dúvida: "Macau resultou dum contrato de cavalheiros e, se o culto dos antepassados vigora ainda na China, não sei que prerrogativas podem interferir na gestão e necessidade de Macau."77 É, mais uma vez, a insinuação de uma "teimosia" que, apesar das dificuldades, nos fez ficar quatrocentos anos. Não será fácil separar quem, apesar das muitas diferenças, tem também muito de igual. Para a autora a ideia de "Tempo", por exemplo, e a sua vivência é a mesma nos dois povos. Daí, a "essencial" compreensão mútua: "Os portugueses têm, como os chineses, uma particular tendência ao esbanjamento do tempo, ao seu uso sem aquela avidez do inglês e depois do americano. Para o chinês o tempo não é dinheiro. É simplesmente uma formidável actividade espiritual, um meio de troca com a eternidade, e não um meio de subsistência. Nisso, os portugueses são também artistas. O tempo é uma indiscrição de Deus. A noção de tempo é-nos dada para nos situarmos aos pés de qualquer acção que se repetirá por milénios fora com a mesma sagacidade e importância inefável. (...) Compreender este carácter do chinês não foi obra de todos. Mas os portugueses tiveram o pressentimento de que havia entre os homens um traço a ser observado, um traço de espera que é o maior parentesco entre as pessoas."78 E laços de parentesco não se desatam, assim, por decreto, com data marcada.

É interessante notar que, como Torga, Agustina nota a radical diferença entre Macau e Hong-Kong para deixar sugerir que o desenlace final só injustamente será o mesmo. Referindo o espaço, as gentes, os pássaros, diz: "(...) Macau é uma terra poética"; e da mulher chinesa conclui: "(...) sobre as mulheres de Macau, nem as vinte pedras pintadas dão decerto uma ideia. A mulher oriental é um reino à parte."79 — pela alegria, pela força, pela liberdade, pela curiosidade, durante tanto tempo atadas.

Em carta de 14.1.90 ao P.e Manuel Teixeira, dá a entender que talvez volte porque sente que é preciso, que "é justo que não deixe (...) amortalhar tais memórias. Que, se não forem escritas, não há monumento que as salve".

A literatura será testemunha de um tempo passado e edificação de um porvir, será consubstancial arquitectura que todos percorrem, cidade universal, para dizer dessa outra que sendo "Porta da Baía" é e será, sempre, "Porto de partir e Porto de chegar".80

Natália Correia, no texto Versos de Brisa Portuguesa Escritos numa Flor de Lótus, fala de uma outra escritora que em Macau viveu e aí redigiu a sua obra — Maria Ana de Magalhães Tamagnini Barbosa81 — considerando-a uma "invulgar estrela da constelação do nosso lirismo orientalista".82 Nela vê a consumação da plena união da "comoção feminil da alma lusa e desse Oriente que guarda o arcano do mistério do supramundo no mundo".83 Para Natália Correia a índole feminina estará predisposta a compreender a especificidade oriental. Relendo a obra de Maria Ana Tamagnini Barbosa afirma que "(...) a autora de Flor de Lótus dá asas à sua natureza feminina atraída pelo yin, aderindo, por isso mesmo, à mitologia de uma civilização que se rege por padrões lunares".84

Penso que este texto de Natália Correia tem especial interesse pela reafirmação da capacidade feminina de viver a relação Portugal-Macau, isto é, a ligação de portugueses e chineses nesse Espaço de Encontro. Ninguém melhor do que Maria Ondina Braga o fez e o faz numa obra, a todos os títulos, paradigmática. Esta escritora-viajante, inquieta e inquietantemente, em trânsito pela escrita e pelo(s) espaço(s) da portugalidade, fala-nos dessa atracção pelo enigma de Macau, do mistério que é Macau.

Fugindo a um destino que se queria natural e fazia da mulher um ser "sedentário", por decisão própria, saiu Maria Ondina Braga "de casa de seus pais" percorrendo o mundo de ocidente a oriente e dessa peregrinação dando testemunho. A autora pertence àquele conjunto de mulheres para quem, no dizer de Regina Louro, "(...) a errância é fruto da inquietação e do desígnio de despojamento. Deixam o seu mundo familiar para romper amarras, e as novas paisagens que atravessam são, antes de tudo, pretexto para cumprir uma viagem interior de que é impossível saber, à partida, qual será o termo."85

O último livro publicado86 por Maria Ondina Braga, Passagem do Cabo, é como que a síntese do seu percurso pelo espaço e na escrita. E diz-nos, aí, d'"As Terras Sentidas de África", da "Passagem do Índico", dos "Dias de Macau", na primeira vez, "(...) vinte e cinco anos depois" e sempre — lugares e tempos que, no íntimo, se ligam ao espaço originário — Portugal. Assim acontece desde a primeira obra, Eu Vim para Vera Terra, 1965, até esta última, que referi. De caminho outras: A China Fica ao Lado, 1968; Estátua de Sal, 1969; Nocturno em Macau, 1991, para só apontar as que mais directamente se relacionam com a cidade e que se distribuem por géneros como a crónica, o conto, a autobiografia, o romance.

A atitude de quem viaja por tão variadas paragens e escritas é de uma abertura total, uma atenção discreta, um despojamento solene e, no fim, uma sabedoria, um conhecimento que transforma e nos faz, também, diferentes na História. É que a escritora inventa histórias mas é da verdadeira História que fala e de gente que realmente — existe — "nós", em Macau. E este "nós" é mesmo plural, talvez até excessivamente, e engloba "eu", "tu", "eles" que muito dificilmente se conjugam — os portugueses (militares, professoras, freiras, mitos), os macaenses (os seus negócios, os casamentos e enredos), os chineses (homens e mulheres, a escrita, as lendas...) — mas que, também, com muita dificuldade se desligarão. A autora, citando Vivian Ling Shu, diz: "Enquanto a História se limita a registar os factos, a ficção reflecte a mente e a alma da sociedade."87 Assim, a sua obra, para além do valor estético, tem importância pela análise subtil e profunda do mundo e de Portugal repartido pelo mundo, nomeadamente no Extremo Oriente.

Estátua de Sal é no dizer da própria autora uma "autobiografia romanceada" e acrescentarei que é também um livro de memórias já que o "eu" da autobiografia se encontra na História (do sedentarismo, em Braga, e do nomadismo das viagens e da escrita). Macau é para esta autora o espaço da revelação, é o lugar onde o mistério "fica ao lado" — "Vir a Macau, o mesmo que dizer vir à China, é ter a oportunidade, ímpar talvez, de olhar frente a frente o sobrenatural"88;

A China Fica ao Lado é um conjunto de histórias de "velhas de pés atados, de vendedores de produtos exóticos, de adivinhos, de mulheres sem rumo..." figuras entre o real e o sonho, inquietas, trágicas, fantásticas, fascinantes e de um "eu" que se junta às personagens para o encontro e a cumplicidade. Daí que deixe de "ficar ao lado" para "ficar dentro". Um novo conhecimento, um novo caminho para o amor, para a amizade — a alegria de "estar", em Macau, o sentimento de "ser", em Macau. Esta obra é o texto da tentativa de conhecer: "Macau foi também a minha curiosidade e a minha inclinação pelo povo chinês, a sua História, a sua sabedoria."89

Nocturno em Macau é a escrita da transgressão assumida, da atracção levada às últimas consequências — amor e morte.

"A terra do romance é o amor, que eu considero" — diz Ondina Braga — "ser um mistério, um sonho."90 Aqui se fala da paixão de uma portuguesa por um homem chinês, do fascínio que ela sente pelos "caracteres" chineses, do desafio que faz às regras estabelecidas. Aqui se apresenta Macau como terra onde vão arribando os vários Eneias que, por qualquer motivo, são apartados dos seus lugares de origem, sofrendo, em permanência do "mal de ausência". Aqui se diz de um local favorável ao regresso do "eu" a si mesmo e de um porto onde os eternos-viajantes se preparam para partir de novo, deixando raízes e levando consigo "alimento" de que se servirão depois.

Como a personagem masculina, amada por duas mulheres, a portuguesa e a chinesa, assim Macau. Como Ester presa a um homem que para ela é um enigma, assim Portugal com Macau. E o paradoxo da morte? Macau permanecerá? Será que a partida de uma das personagens do romance, a pouca importância que a outra lhe parece prestar, o desfazer do triângulo, destruirá uma identidade que vivia de uma feliz ambiguidade?

Nas palavras da autora, "Nocturno é uma antevisão do fim do Império".91 Acrescentarei: do fim do sonho do Império mas não do fim do Império do Sonho. Talvez um dia, as duas mulheres, tão diferentes mas tão próximas, reconstituam a sua ligação — sem paredes, nem biombos — e possam viver livremente, em segurança, partilha e transparência, o amor entre os três. Então, na "Pousada da Amizade" nascerá "O Filho do Sol".92

As obras de Maria Ondina Braga falam de um modo peculiar de encarar Macau — uma perspectiva não eufórica mas de uma certa melancolia que é o resultado de uma "Sageza magoada" perante o destino do "eu" (= nós) e o de uma cidade cujos caminhos são labirintos do Eros, percorridos por silêncios indecifráveis.

Então a Utopia, a vontade de fazer frente à História, o desejo de uma "civilização de fraternidade universal", de um espaço sem solidão, onde Eros não conduza a Tanatos.

E a pergunta de Camilo Pessanha feita (explicitamente ou não) pelos primeiros a chegar — "A que foi que tão longe nos trouxeram" — ainda sem resposta definitiva, talvez possa ser a questão que faça nascer o gesto, não da posse mas da dádiva. Permanecendo, embora, o mistério (afinal o que significa este Nome — Macau?), fique a poesia, e apagadas as suspeições ao aceitar o Outro, possamos dizer com Maria Ondina Braga, em "Oriente":

"Desabrochar em flor rara. Frágil e nua como flor de qualquer jardim. Oh, quem ma arrancasse, ébria de Lua, e a desse de presente a um mandarim."93

Conferência proferida na Missão de Maca0u em Lisboa,

em Fevereiro de 1994.

NOTAS

1."Podemos, pois, avançar como data provável do contacto dos Portugueses com Macau, os anos de 1555 a 1557." SANTOS, Isaú, As Relações Luso-Chinesas Através de Macau nos Séculos XVI e XVII, "Revista de Cultura", Macau, (7-8) Out. 1988-Mar. 1989, p. 6.

2. CONCEIÇÃO JÚNIOR, António, Macau: Do Mito à Desocultação, "Via Latina", Maio 1991, suplemento, p. 21.

3."Sobre esta permanência gerou-se, ao longo dos séculos, grande querela com dois partidos: o dos que asseveram a estada de Camões [no Território] e o dos que afirmam que Camões nunca esteve em Macau. (...) A favor dos primeiros, Diogo do Couto (...) escreve no Livro V da 'Década Oitava' das suas Décadas da Ásia: 'Vindo de lá se foi perder na Costa do Sião, onde se salvaram todos despidos e o Camões por dita escapou com as suas Lusíadas como ele diz nelas e ali se afogou uma moça china que trazia, muito formosa, com que vinha embarcado e muito obrigado; e em terra fez sonetos à sua morte em que entrou aquele que diz: 'Alma minha gentil que te partiste...' esta chama ele em suas obras 'Dinamene'. N' Os Lusíadas (nem, de resto, na sua obra lírica) Camões nunca refere expressamente, Macau. Mas algumas estrofes fazem referência à China." SANTOS, Carlos Pinto, NEVES, Orlando, De Longe à China, Macau, Instituto Cultural, 1988, p. 39.

4. AZEVEDO, Rafael Ávila de, A Influência da Cultura Portuguesa em Macau, Lisboa, Biblioteca Breve, p. 34.

5."Um governo sem mando, um bispo tal, de freiras virtuosas, um covil, três conventos de frades, cinco mil 'nhons' e chinas cristãos, que obram muito mal.

Uma Sé que hoje existe tal e qual, catorze prebendadas sem ceitil, muita pobreza, muita mulher vil, Com portugueses, tudo em curral;

Seis fortes, sem soldados, um tambor três freguesias cujo ornato é pau um vigário geral sem promotor.

Dois colégios e um deles muito mau, um Senado que a tudo é superior é quanto Portugal tem em Macau."

6. Venceslau de Morais (1854-1929) chegou a Macau a 7 de Julho de 1888.

7. SANTOS, Carlos Pinto, NEVES, Orlando, op. cit., p.684.

8. Idem, p. 687.

9. Idem, pp. 692-3.

10. QUADROS, António, Contos, Crónicas, Cartas Escolhidas e Textos de Temática Chinesa, Lisboa, Europa-América, p. 16.

11. PESSANHA, Camilo, China, p. 42.

12. É interessante notar a corroboração desta opinião num texto de 1991: "Para o artista chinês, a inovação é um anátema. A sua arte é essencialmente técnica: a civilização chinesa descobriu há séculos o modo correcto de pintar uma árvore ou de compor música para 'pipa', e esse método não deve ser modificado. O artista é simplesmente o técnico que põe o método em prática. Assim, para o Ocidental, o que não é inovador não é arte, enquanto que, para o Oriental, tudo o que seja inovação não é arte." ZEPP, R. A., Ponto de Encontro das Culturas Chinesa e Portuguesa, "Via Latina", Maio 1991, suplemento.

13. CUNHA, Carlos da, "Comércio de Macau", 25 Jun. 1988.

14. Idem, ibidem.

15. Carta a Carlos Amaro, Janeiro de 1909.

16. Idem, ibidem.

17. Idem, ibidem.

18. SANTOS, Carlos Pinto, NEVES, Orlando, op. cit., vol. 2, p. 755.

19. Diz o autor: "Estamos atrasados nas crónicas que, sobre a nossa viagem, nos comprometemos a enviar para o jornal 'A Noite', do Rio de Janeiro." CASTRO, Ferreira de, A Volta ao Mundo, p. 73.

20. Idem, p. 70.

21. Idem, p. 71.

22. Idem, p. 72.

23. dem, p. 73.

24. dem, ibidem.

25. dem, p. 75.

26. dem, p. 76.

27. dem, ibidem.

28. dem, p. 79.

29. dem, ibidem.

30. PIRES, Daniel, António Sérgio em Macau: Nove Cartas Inéditas, "Revista de Cultura", Macau, (7-8)Out. 1988-Mar. 1989, p. 110.

31. Idem, p. 115.

32. Idem, pp. 115-6.

33. Idem, ibidem.

34. Idem, ibidem.

35. Idem, ibidem.

36. CONCEIÇÃO JÚNIOR, António, op. cit., p. 21.

37. Idem, p. 23.

38. É evidente que razões bem profundas de carácter antropo-sociológico explicarão a origem e desaparecimento da língua de Macau.

39. BATALHA, Graciete Nogueira, A Viragem do Século e o Escritor de Macau, "Revista de Cultura", Macau, (15)Jul.-Set. 1991, p. 185.

40."Tribuna de Macau", 15 Abr. 1989.

41. CHORÃO, João Bigotte, Couto Viana: Entre a Saudade do Passado e a Saudade do Futuro, "Revista de Cultura", Macau, (18) Jan.-Mar. 1994, p.224.

42. VIANA, António Manuel Couto, No Oriente do Oriente, 1987, p. 18.

43. SEABRA, José Augusto, Poemas do Nome de Deus, p. 13.

44."Tribuna de Macau", 4 Dez. [1982?].

45. SEABRA, José Augusto, op. cit., p. 23.

46. Idem, p. 75.

47. Idem, p. 77.

48. PESSOA, Fernando, "Nevoeiro", in Mensagem.

49."Um ancorar puríssimo, encantado,/ num Oriente mais anunciador..."

50. SEABRA, José Augusto, op. cit., p. 79.

51. ANDRADE, Eugénio de, Com Palavras Amo, p. 13.

52. Idem, ibidem.

53. Idem, ibidem.

54. ANDRADE, Eugénio de, Pequeno Caderno do Oriente, "Revista de Cultura", Macau, (18) Jan.-Mar. 1994, 34 p. [pp. 79-114].

55. Idem, ibidem.

56. Idem, ibidem.

57. Idem, ibidem.

58. CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, Canto I, est. 2.

59. ANDRADE, Eugénio de, op. cit., 1994.

60. Idem, ibidem.

61. Idem, ibidem.

62. TORGA, Miguel, Diário XV.

63. Idem, ibidem.

64. Idem, ibidem.

65. Idem, ibidem.

66. Idem, ibidem.

67. Idem, ibidem.

68. Idem, ibidem.

69. TORGA, Miguel, Camões, p. 8.

70. Idem, p. 13.

71. Idem, p. 14.

72. Idem, p. 18.

73. Idem, p. 19.

74. TORGA, Miguel, Diário XVI.

75. SANTOS, Mário, "Público", 18 Jan. 1995.

76. LUÍS, Agustina Bessa, A Pedra Pintada, "Revista de Cultura", Macau, (9) Jan.-Mar. 1990, pp. 112-3.

77. Idem, ibidem.

78. Idem, ibidem.

79. Idem, ibidem.

80. PIRES, Benjamim Videira, Espelho do Mar, p. 49.

81. Maria Ana de Magalhães Colaço Acciaioli nasceu em 3 de Julho de 1900, em Torres Vedras. Viveu em Macau durante sete anos. Morreu jovem a 5 de Julho de 1933. Dela diz Natália Correia: "(...) mantendo na morada parnasiana das Musas um lugar lírico incontestável, igualmente o conquistou num Simbolismo aliás consaguíneo do Parnasianismo (...)."

82. CORREIA, Natália, Versos de Brisa Portuguesa Escritos numa Flor de Lótus, "Revista de Cultura", Macau, (18) Jan.-Mar. 1994, pp. 220-2.

83. Idem, ibidem.

84. Idem, ibidem.

85. LOURO, Regina, "Público", 29 Maio 1992.

86. Posteriormente, a autora publicou A Filha do Juramento, Braga, Autores de Braga, 1995.

87. BRAGA, Maria Ondina, A Condição Feminina na Literatura Chinesa do Século XX, "Revista de Cultura", Macau, (15) Jul.-Set. 1991, pp. 73-8.

88. BRAGA, Maria Ondina, Passagem do Cabo, p. 125.

89. Idem, p. 158.

90. BRAGA, Maria Ondina, "Comércio de Macau", 22 Jul. 1989.

91. BRAGA, Maria Ondina, "Jornal de Letras", 30 Jul. 1991.

92. BRAGA, Maria Ondina, A China Fica ao Lado.

93. BRAGA, Maria Ondina, Passagem do Cabo, p. 99.

* Mestre em Literaturas Românicas Modernas e Contemporâneas.

desde a p. 63
até a p.