Artes

EDUARDO, AMIGO E COMPANHEIRO

Costa Pinheiro*

"— António, não me interessa envelhecer, quebrado e impossibilitado de fazer o que me apetece: é melhor cair de uma vez, e acabou-se!"

Dizia-me o Eduardo Luiz, numa noite em que conversávamos, em Yèvre-le-Châtel, algumas semanas antes da sua inesperada morte. E foi assim que acabou. A pedido da Brigitte, sua companheira de muitos anos, tinha eu chamado a sua atenção para alguns excessos face a uma quebra de saúde dos últimos meses.

Mas não é minha finalidade escrever nada que possa sobrepor-se, sentimentalmente, a um diálogo, tal como muitos outros que tivemos, durante anos, só porque a notícia da sua morte me deixou horas e horas no meu atelier de Munique, a olhar os quadros, os pincéis, a sentir uma identidade-íntima, tanto minha como sua, neste instrumentário, e a recusar-me a aceitar esta morte e este desaparecimento físico. Não é, também, meu propósito falar da pintura do Eduardo Luiz — isso teria de ser feito de outra forma, forma essa que implica um espaço de observação e de conjectura que não é este. Melhor será recordarmo-nos (e recordá-lo) nas imagens dos nossos diálogos, quando nos encontrávamos em Paris ou quando o ia ver, a seu tempo, na casa-atelier do Vaux — da qual guardo as melhores recordações — e em casa da Brigitte Salmon em Yèvre-le-Châtel.

Durante muitos anos assisti, também, aos seus estados de desespero, de dúvida, e às suas incertezas quanto ao verdadeiro reconhecimento do valor da sua pintura. Se esse seu "amor-renascentista" estaria certo, se não seria, da sua parte, uma recusa total a todas as formas mais imediatas de modernidade: (mas, no fundo, ele sabia que não estava à margem de nenhuma modernidade). Se uma certa amargura o levava, muitas vezes, a ser extremo nas considerações que fazia aos meios artísticos e a outros artistas, essa amargura, penso, ajudava-o a manter a sua linha de criação e a manter, de qualquer forma, a visão rigorosa que tinha da Pintura, sobretudo da pintura contemporânea.

Eduardo costumava contar aos amigos e visitantes do seu atelier (e eu também) a forma como nos conhecemos... tínhamos 20 anos e estávamos na parada do quartel militar de Tancos, após um dia cansativo de exercícios da recruta (dizia ele) eu estava num grupo, à parte o seu, e falava de Bela Bartok, da música de Bela Bartok, e ele cheio de espanto (como era possível um recruta, num meio como aquele, falar de Bela Bartok? Quem seria o excêntrico?), aproximou-se de mim: "— Tens alguma coisa a ver com a música moderna? Sou o Eduardo Luiz, pintor, e tu?". "— Eu sou o Costa Pinheiro, também pintor", respondi. Ficámos algumas horas, já depois das que eram permitidas, no anoitecer da parada, a falar de música, de ballet (nessa altura ele dançava e vinha de uma estada em Paris).

Uns dias depois um oficial miliciano abordou-me e perguntou, não sem algumas carantonhas, quem era aquele indivíduo-soldado, tão bizarro que, pelas horas do amanhecer, antes do toque de alvorada, dançava pelo estreito corredor das camaratas, sob os olhares de espanto e de troça dos outros soldados (?)...

Quando das minhas frequentes idas à enfermaria, encontrava-o a pintar o retrato do médico do quartel. Creio que levou meses pintando esse retrato, o que, naturalmente, lhe valeu a fuga aos duros exercícios militares, duros que eram, naquela "África branca", como se dizia, na altura, daquele quartel militar.

No final da recruta perdemo-nos de vista e voltámos a ver-nos em Paris.

Uma vez levei-lhe un petit tableau — o voo de uma gaivota rasgando um espaço-céu sobre o branco nu da tela. E ele pintou — d'après mon petit tableau — o voo da gaivota rasgando o espaço-céu, mas sobre um fundo negro. Dizia-me, não sem uma ponta de ironia:"— António, não foi minha intenção mostrar-te que sei mais de céus-pintura e de nuvens do que tu, mas a tua ideia fascinou-me..."

O pequeno estudo que tenho aqui, no atelier, fi-lo para um óleo-réplica, que pensava pintar, d'près um dos seus últimos quadros, e aí pensava, também, dizer-lhe: "— Eduardo, não foi minha intenção pintar uma natureza-morta, tal como tu a pintaste, mas a ideia fascinou-me..."

"— Posso não estar muito de acordo com algumas nuanças técnicas da tua pintura mas acredito em ti..."

Disse-me, uma vez, durante um dos nossos passeios pelos caminhos do Vaux. Chamava-me a Munique, ao telefone, e mostrava-se inquieto sobre a validade e preçário dos seus quadros (queria saber a minha opinião) ou falava-me de desajustes e incompreensão por parte da crítica de arte e do comportamento de galerias parisienses. Não estava disposto a ser escravo de ninguém. Estava farto de ver sair os seus quadros do atelier para o anonimato dos coleccionadores, ele que levava anos a juntar algumas obras.

O meu convívio com o Eduardo talvez me tenha levado a entender — de uma forma menos severa e apostólica das nossas modernidades — o espaço-poético do seu mundo de pintor, mesmo para além da linguagem pictórica. Dói-me muito sabê-lo morto. Mas dói-me, também, recordar todos esses largos anos de luta parisiense, de um "franco-atirador", no meio dos altos e baixos da Pintura, das modas e dos estilos, de pintores medíocres programados e distribuídos ao Consumo, da especialização da Arte impedindo uma visão multidimensional às várias formas da sua criação.

A Ultima Ceia — Eduardo Luiz, Victor Figueiredo, Espiga Pinto, José Escada, Vespeira, Nikias Skapinakis e Manuel Baptista. Fotografia de Manuel de Brito.

* Eduardo Luiz, Lisboa, Galeria Ygrego, 1989.

desde a p. 157
até a p.